Algoz do PT, Joaquim Barbosa dá pitaco na sucessão de Lewandowski

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Foto: Carlos Moura/STF

Há exatos 20 anos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em seu primeiro mandato, indicou, de baciada, três nomes para o Supremo Tribunal Federal: Carlos Ayres Britto, Cezar Peluso e Joaquim Barbosa. Este último seria o único negro da história da Corte.

O ex-ministro lembrou-se da efeméride, em 7 de maio, durante conversa ao telefone, com o Valor, de Nova York, onde passa uma temporada. Graças às duas décadas de sua indicação, o ex-ministro, normalmente avesso a comentar a atuação de ex-colegas e a pauta de julgamentos, abriu uma brecha. Isso porque está em curso o preenchimento das vagas, aquela já aberta com a saída do ministro Ricardo Lewandowski, em 11 de abril, e a que estará disponível em outubro com a saída da atual presidente, a ministra Rosa Weber.

“Lula foi ousado ao me nomear 20 anos atrás, quando o Brasil ainda vivia o mito da democracia racial. Seria um paradoxo que, hoje, depois do avanço nas políticas de igualdade racial iniciadas precisamente no governo dele, nenhuma das duas vagas venha a ser preenchida por um negro”, diz Barbosa.

Faz nove anos que Joaquim Barbosa deixou o STF. Se não tivesse antecipado sua aposentadoria, a PEC da Bengala aprovada no governo Dilma Rousseff permitiria que lá permanecesse até 2029, quando completará 75 anos. Mantém-se próximo de ministros como Edson Fachin e Luiz Fux. Em janeiro, fez uma visita a Rosa Weber, em solidariedade pela depredação da Corte de 8 de janeiro.

Desde que saiu, recuperou a saúde da coluna, estraçalhada no julgamento do Mensalão, do qual foi relator. Em entrevista concedida ao Valor, em 2017, vivia o auge do assédio para disputar a Presidência da República. Garantiu que não seria candidato. E não foi. Em 2022, para acabar com as especulações em torno de seu nome, desfiliou-se do PSB às vésperas do prazo para o registro de candidaturas, mas gravou vídeo de apoio a Lula.

A linha divisória traçada em relação à política partidária não o impede de se posicionar no Twitter de forma contundente sobre o escândalo das joias sauditas do ex-presidente Jair Bolsonaro ou sobre a desmilitarização da política.

Em janeiro, ao comentar crítica do senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS) à demissão do comandante do Exército, Julio Cesar Arruda, arregaçou as mangas: “Poupe-nos de sua hipocrisia, do seu reacionarismo, da sua cegueira deliberada e do seu facciosismo político! Fatos são Fatos! Mais respeito a todos os brasileiros! Péssimo para o país seria a continuação da baderna, da ‘chienlit’ e da insubordinação claramente inspirada e tolerada por vocês, militares”.

A contundência não o impede de cobrar mais “sobriedade” do governo e de suas lideranças, a quem recomenda que não sigam o “foguetório” de Bolsonaro. O que vê hoje é a confirmação do dito de Lima Barreto, seu escritor predileto, sobre um Brasil que não tem povo, tem público. Barbosa fez este advertência na entrevista de sete anos atrás, a viu se confirmar com a eleição Bolsonaro e teme que custe a se dissipar.

O rechaço à ameaça autoritária tampouco o impede de cobrar moderação a um governo que, em sua opinião, precisa compor mais para governar em harmonia com o Legislativo. “Há uma sobrerrepresentação do partido do presidente no governo”, diz.

Aos 69 anos, o ex-ministro mora no Rio e fechou o escritório de Brasília, mas não o de São Paulo, de onde vem a demanda por pareceres. A atividade não impede temporadas no exterior como aquela que está em curso. Entre “plantões” na Filarmônica de Nova York e shows de jazz, Barbosa teve, com o Valor, a conversa a seguir:

Valor: Quatro meses depois da posse, o governo do presidente Lula já enfrenta dificuldades no Legislativo. O senhor vê com preocupação esse bloqueio da pauta?

Joaquim Barbosa: Presidencialismo é isso mesmo, um sistema de múltiplos terrenos de negociação. É raro ver uma situação em que um partido domina o Legislativo e o Executivo e efetiva toda sua pauta. Isso é coisa de parlamentarismo. Aqui nos Estados Unidos o presidente é democrata e a oposição a seu governo é feita por um partido republicano que se radicaliza cada vez mais. Isso não impede que [Joe] Biden encontre terreno para negociação e, com habilidade, tenha conseguido passar reformas importantes. Agora vai aprovar o teto de gastos.

Valor: O Legislativo ganhou musculatura a partir do impeachment e hoje empareda o Executivo, demanda mais espaço na execução orçamentária. Não é um impedimento para uma agenda ambiciosa como a de Lula?

Barbosa: O partido do presidente tem 11% das cadeiras na Câmara. É minoritário, mas pode governar. Basta que o presidente exerça a liderança e seus negociadores tenham boa interlocução. No parlamentarismo você só governa com maioria e aprova medidas que mudam profundamente uma sociedade de uma hora para outra. No presidencialismo é o contrário. Você pode ser minoritário e conseguir, com liderança presidencial apropriada e com boa escolha dos membros do governo, moderação das propostas.

Valor: Lula é acusado de ter um discurso e montar um governo mais à esquerda do que a estreita vitória e a frente ampla que o elegeu permitem. O senhor concorda?

Barbosa: Sim, há uma sobrerrepresentação dos membros do partido do presidente e dos partidos associados na formação do governo. O governo também precisa um pouco mais de sobriedade. Tá seguindo a linha do Bolsonaro com muita propaganda. É preciso sentar e, com moderação, tomar as decisões importantes para o país sem necessidade de todo esse foguetório.

O país não deve assumir nenhuma responsabilidade, por razões ideológicas ou de camaradagem, com a Argentina porque os governos têm sintonia política”
Valor: Mas esse foguetório, que hoje está nas redes sociais, não está entranhando na cultura política? O senhor gostava de citar Lima Barreto e sua definição de um país que não tem povo, tem público…

Barbosa: Reconheço que isso é sinal dos tempos… já faz de 40 a 50 anos que governar se tornou um espetáculo. O governo é palco constante. Os atores estão o tempo todo em encenação. Mas um país que está saindo da truculência dramática como foi o governo Bolsonaro merece um pouco mais de calmaria e sobriedade.

Valor: Que ruídos mais têm incomodado o senhor?

Barbosa: Tudo é uma grande festa. O próprio [Flávio] Dino, que, por sinal, admiro muito, dá seus shows semanais, o presidente continua soltando o verbo. Não é bom. Deveria haver um contraste com a balbúrdia anterior.

Valor: Mas quando o governo se recolhe é acusado de não disputar as redes com o bolsonarismo…

Barbosa: O governo pode ter operadores de rede eficazes sem que suas lideranças assumam esta operação. Meu modelo de presidente é o François Mitterrand, que só ia à televisão duas vezes por ano.

Valor: O senhor vê, nesse confronto recalcitrante com o bolsonarismo, um 8 de janeiro insepulto, a despeito de toda a proatividade do Judiciário?

Barbosa: O bolsonarismo não é um movimento isolado. É uma manifestação forte e transcontinental de um movimento de extremismo político calculado e oportunista. Nos EUA essa manifestação extremista barulhenta está tomando conta do partido que governou os EUA durante a maior parte da sua história, que é o partido Republicano. As práticas são as mesmas. O bolsonarismo tem uma constante troca de orientações e comando com os provedores ideológicos desse movimento populista da direita internacional. A classe política tem que estar atenta para saber impedir que essa gente volte ao poder, mas não sei se há clareza dessa natureza multipolar concertada desse populismo barulhento, violento, irresponsável e incompetente que está brotando em várias partes do mundo.

Valor: Por outro lado, não é difícil enfrentar esse populismo de direita com as restrições fiscais de hoje? Não foram só os ricos que votaram em Bolsonaro. Como é que se conquista esse eleitorado com uma taxa de juros de 13,75%?

Barbosa: Aí é que entra a função pedagógica da liderança. Esta elevação de juros é uma necessidade temporária. O Brasil por anos seguidos esteve para perder o controle do processo inflacionário. A taxa de juros está nesse patamar por uma necessidade incontornável da inflação, fomentada pela pandemia e pela escassez. O mundo inteiro está convivendo com isso. Nos EUA já são dez meses seguidos de alta de juros. A pergunta que se deve fazer é a seguinte: o Brasil prefere a volta do descontrole inflacionário ou é melhor enfrentar essa taxa de juros temporariamente? A inflação já está se ajustando aos poucos. Seria um erro abandonar medidas corretas em nome da ideologia.

Valor: O senhor tinha grandes expectativas em relação às mudanças da política externa. Como vê sua condução hoje?

Barbosa: No geral, o Brasil vem restabelecendo suas posições histórias na cena internacional. Teve aquele entrevero da guerra da Ucrânia mas já foi corrigido. Paulatinamente, Lula vem colocando em prática, de novo, a chamada diplomacia presidencial. E isso é muito importante.

Valor: A política externa está mais à esquerda do que foi chancelada?

Barbosa: Em linhas gerais está correta. O que o Brasil não pode fazer é se deixar levar pela ideologia. Uma coisa é ter uma política externa regular com países que não jogam por sua cartilha. Outra coisa é fazer proselitismo em favor de ditaduras ou países que violam direitos humanos. Sobriedade na política externa significa isso. Manter nossa tradição diplomática.

Valor: A falta de sobriedade tem se estendido à política externa?

Barbosa: Não, mas vejo alinhamentos automáticos. Por exemplo, sabemos o que a Argentina quer do Brasil. É um dos grandes parceiros e temos que ser solidários, mas o país não deve assumir nenhuma responsabilidade, por razões ideológicas ou de camaradagem, com a Argentina porque os governos, no momento, têm sintonia política.

Valor: O senhor foi um dos primeiros a denunciar os desvelos do impeachment de Dilma Rousseff. Há quem veja sinais de lavajatismo na atuação do STF contra o bolsonarismo. O lavajatismo que derrubou Dilma é o mesmo que segura Lula?

Barbosa: Não foi o lavajatismo que derrubou Dilma. Foi o golpismo de algumas lideranças partidárias. Foi uma substituição de lideranças políticas que haviam ganhando a eleição por aquelas que eram as perdedoras. O impeachment começou a ser ruminado em 2015 nos primórdios da Lava-Jato. O que disse e continuo a sustentar é que como todo mecanismo radical e desestabilizante, o impeachment tem que ser usado com toda a cautela, ou melhor, tem que ser evitado e não incentivado com aquela ligeireza e aquela irresponsabilidade com que se efetivou. Não é por outra razão que o país que inventou o impeachment nunca o fez e não o fará num futuro próximo. Esse mecanismo foi concebido para situações extremas, e não para a substituição de um grupo político por outro. O impeachment está na raiz desse desarranjo profundo pelo qual o Brasil tem passado. Bolsonaro é a mais grave ilustração disso.

Valor: Mas foi quando Dilma não conseguiu sufocar a Lava-Jato que essas lideranças decidiram tirá-la. Como o senhor vê o Supremo no combate ao bolsonarismo?

Barbosa: Não acompanho o Supremo no dia a dia. Está fazendo 20 anos de minha escolha, em 7 de maio de 2003.

Valor: Não o incomoda a ausência de um negro no plenário?

Barbosa: Lula cometerá um grande erro se não escolher um ministro ou uma ministra negra. Lula foi um ousado ao me nomear. O Brasil ainda vivia o mito da democracia racial. Seria um contrassenso e um paradoxo que, 20 anos depois, quando houve avanço nas políticas de igualdade racial iniciadas no primeiro governo Lula, e que também levaram a iniciativas privadas, que este governo não nomeie pelo menos um negro.

Valor Econômico