Junho de 2013 preparou impeachment de Dilma

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Foto: Givaldo Barbosa/Agência O globo

A televisão estava desligada no Palácio da Alvorada quando a presidente Dilma Rousseff foi comunicada, no começo da noite de 17 de junho de 2013, do que acontecia na Praça dos Três Poderes, segundo o relato de um assessor. Uma turba tentou entrar no Congresso e subiu na laje do Palácio. Senadores e deputados ligavam para o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que assistia perplexo da janela de seu ministério o avanço da multidão e tentava identificar faixas e bandeiras que permitissem saber quem era e o que pediam os manifestantes. “Vão matar a gente aqui dentro”, disseram a Cardozo, que afirma hoje não se lembrar de quem ouviu este alerta.

O ato em Brasília estava longe de ser isolado. Aquele era o 12º dia de manifestações que sacudiam o país, desde que entraram em vigor aumentos da tarifa de transporte coletivo nos grandes centros urbanos. Mas foi só aí, naquele fim do dia, que o governo federal entendeu que havia mais do que questões locais envolvidas.

O Valor ouviu, ao longo das últimas semanas, dez ex-ministros, assessores e dirigentes partidários que foram protagonistas da crise de junho de 2013. Apenas três pediram para falar sob reserva. Todos confirmaram a absoluta surpresa e o desnorteio das autoridades de então para entender o que se passava e administrar uma das maiores explosões de descontentamento popular da história do país. Procurada, Dilma Rousseff não concedeu entrevista.

O primeiro sinal de que as pessoas não estavam nas ruas apenas pelos 20 centavos de aumento da tarifa aconteceu diante de Dilma, dois dias antes, durante a abertura da Copa das Confederações, no Estádio Mané Garrincha, em Brasília. Era a prévia para a Copa do Mundo, que seria realizada no ano seguinte no Brasil. Uma imensa vaia impediu Dilma de discursar na abertura do evento. Incomodado, o então presidente da Fifa, Joseph Blatter, reclamou da “falta de educação” da multidão. O episódio não foi visto como grave. Um dos assessores de Dilma lembrou uma famosa frase do dramaturgo Nelson Rodrigues, a de que brasileiro em estádio “vaia até minuto de silêncio”.

Aquilo terminou e não conseguimos entender o que movia tudo. Era algo novo”
— Ideli Salvatti
Quem levou a sério, e muito, a manifestação, foi o então ministro dos Esportes, Aldo Rebelo. Ele viu risco de cancelamento da Copa no Brasil caso os protestos se agravassem. Defendeu que o governo colocasse a tropa na rua e reprimisse as manifestações, hipótese descartada por Dilma. Conta hoje que o cancelamento quase aconteceu. No dia 20 de junho, dois dias antes do jogo entre Brasil e Itália na Fonte Nova, em Salvador, manifestantes tentaram entrar no hotel onde estava a delegação da Fifa.

Aldo foi então comunicado por um assessor que o então secretário geral da entidade, Jérôme Valcke, afirmou que havia uma determinação para que as delegações embarcassem de volta para seus países e a Copa das Confederações fosse cancelada. Já havia uma sondagem para que os Estados Unidos substituíssem o Brasil como país organizador do certame de 2014. Alarmado, o ministro dos Esportes ligou para a presidente. Ficou acertado que Dilma daria uma garantia expressa de segurança para a Copa no pronunciamento que faria à nação no dia seguinte, como de fato ela fez, de modo enfático. A Fifa ficou satisfeita com a garantia e manteve o torneio.

“O governo vivia um processo de desorientação, porque setores de dentro do governo apoiavam aquilo tudo que acontecia, para disputar as ruas com a esquerda radical. Eu fiquei isolado”, reclama. E relembra algo noticiado à época: a Polícia Civil do Distrito Federal conseguiu evidências que ex-funcionários do Palácio do Planalto tinham comprado pneus para queimar na frente do estádio.

O diagnóstico no governo federal de que as jornadas de junho eram essencialmente um problema de prefeitos e governadores era firme. Até hoje alguns dos integrantes daquele governo creem nisso. “Tudo havia começado com uma situação de uma elevação de tarifa em São Paulo, uma situação regional que tinha gerado uma reação violenta das forças policiais. Que acabou gerando protestos e uma onda de manifestações pelo Brasil. Talvez algumas das maiores que nós vimos na nossa história”, afirma Cardozo.

Um ponto de inflexão na crise de junho aconteceu no dia 13, quando a Polícia Militar de São Paulo reprimiu com violência a manifestação no centro da capital. Nos dias anteriores, já havia a ação de “black blocs” entre os manifestantes, com episódios de depredação no centro da cidade. O então governador Geraldo Alckmin, à época no PSDB, chegou a afirmar que os protestos eram “caso de polícia”.

Em atos tão difusos como as Jornadas de Junho é exagero falar em “fogo amigo”, mas, durante as reuniões de Dilma com sua equipe para organizar a reunião, ministros receberam relatos por telefone de que seus filhos estavam misturados à multidão, protestando.

O dia 20 de junho foi o ponto culminante da crise. Dois dias antes, Dilma havia viajado a São Paulo para encontrar-se com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Era normal a presidente buscar conselhos com seu antecessor em momentos de crise, ainda que a relação entre os dois tivesse ruídos desde o início do governo. As conversas entre Dilma e Lula culminaram em pressões para que o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, voltasse atrás no aumento das tarifa, pressões que já eram intensas por parte do PT.

O prefeito resistia, afirmando que não daria esse passo sem combinar com Alckmin. Ele só cedeu, afirma um dirigente, quando o então prefeito do Rio, Eduardo Paes, anunciou sua decisão de restabelecer a tarifa anterior.

Hoje novamente prefeito do Rio, Paes afirma que a decisão de revogar o aumento foi combinada com Haddad. O prefeito carioca diz ter ficado incomodado com declarações da então ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, de que o governo federal já havia feito desonerações e que cabia aos prefeitos reduzir as tarifas. Paes considerou uma tentativa de Dilma “tirar da reta dela” o turbilhão político. “Liguei para o Haddad e falei que não ia segurar aquela situação com a Dilma e a Gleisi fazendo graça”, relembra. Haddad, Gleisi e Alckmin foram procurados, mas não deram entrevistas.

Aumento revogado, as manifestações em vez de encolherem cresceram ainda mais. Em 20 de junho, protestos violentos aconteceram em todo o país. Em Brasília, manifestantes tentaram invadir o Palácio do Itamaraty, novamente o Congresso Nacional e o Banco Central. Dilma cancelou uma viagem prevista ao Japão e passou a noite em reuniões para preparar um pronunciamento à nação e um lance ousado para conter a crise.

O pronunciamento durou dez minutos, e sua forma foi decidida pelo marqueteiro João Santana, que atuava como um estrategista informal do governo. O principal ponto do conteúdo, entretanto, não foi de sua lavra e deixou parte da equipe de Dilma surpresa. Em meio a panelaços dos telespectadores, Dilma prometeu uma “ampla reforma política, que amplie a participação popular”.

O que seria essa “ampla reforma política” só seria divulgado no dia 24 de junho, uma segunda-feira, em reunião de Dilma com governadores e prefeitos de capitais: a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, seguida de plebiscito.

Fora do círculo do governo, apenas uma pessoa fora consultada, durante o fim de semana: o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ouvido pelo ministro da Justiça, entusiasta da ideia. O ex-presidente disse ser contra. Achava mais adequado chamar plebiscitos para pontos específicos da reforma política. Ainda assim foram em frente.

É difícil determinar de quem foi a paternidade da proposta abraçada por Dilma e descartada logo no dia seguinte, depois de a ideia ser bombardeada pelos ministros do Supremo, pelos presidentes da Câmara e do Senado e pelo então vice-presidente Michel Temer. O então presidente do PT, Rui Falcão, diz hoje que esta é uma pauta tradicional do partido. O então ministro da Educação, Aloizio Mercadante, foi quem mais se expôs na ocasião em defesa da ideia. Procurados, Temer e Mercadante não deram entrevistas.

As demais propostas do que a presidente chamou de “cinco pactos” eram programas que já estavam sendo preparados pelo governo, como o “Mais Médicos” ou a ideia de se destinar 100% dos royalties do petróleo para a educação, e outros que vieram das pesquisas de opinião como “pauta das ruas”, como o combate à corrupção.

Fora da arena pública, outra providência foi tomada: o governo passou a estudar e monitorar as redes sociais. Foi só na ocasião que o Planalto começou a pensar que talvez as redes sociais tivessem alguma influência sobre tudo o que aconteceu.

“Aquilo terminou e não conseguimos entender o que movia tudo. Era algo novo, mas não sabíamos que algo novo era. Foi só no ano seguinte, em 2014, que a ficha caiu. Constatamos, no âmbito do Ministério dos Direitos Humanos, o crescimento absurdo, exponencial, do incentivo a posturas violentas. Só então que a gente fez o link”, comentou a ex-ministra Ideli Salvatti, que cuidou da articulação política em 2013 e da área de Direitos Humanos no ano seguinte. “Havia pouquíssimo trabalho digital, a Dilma não gostava disso. Eu insistia muito”, reconheceu João Santana.

É grande a crença no meio político, tanto à esquerda quanto à direita, de que os eventos de junho de 2013 de alguma forma criaram um clima que fomentou um sentimento de aversão à política na sociedade, o que teria contribuído para a vitória de Jair Bolsonaro, de extrema-direita, cinco anos depois. A tese é controversa.

A então oposição ao governo Dilma Rousseff em junho de 2013, representada em especial pelo PSDB, partido que protagonizou uma disputa com o PT por quase duas décadas, recebeu as Jornadas de Junho de 2013 não muito diferente das autoridades do Executivo: o sentimento também era de perplexidade.

Ex-lideranças tucanas lembram que, assim como o governo, elas também não “estavam entendendo nada” sobre os protestos que eclodiram primeiro em São Paulo, antes de ganharam as ruas de centenas de cidades pelo país.

À época senador, Aloysio Nunes Ferreira considerou “vazia” a proposta dos cinco pactos de Dilma. “Ela estava governando e deveria decidir. Basta de pactos, precisávamos de medidas concretas”, afirmou Nunes Ferreira. O senador seria candidato a vice de Aécio Neves na eleição de 2014, quando a chapa acabou derrotada para Dilma, reeleita não obstante todo o desgaste do ano anterior.

“A crise já estava acontecendo naquela época [junho de 13] e foi fundamental para a queda dela depois”, lembra Nunes Ferreira, referindo-se ao processo de impeachment iniciado a partir de 2015. Para ele, os eventos de junho de 2013 estão na origem do processo que levaria, anos depois, à chegada da extrema-direita ao poder.

Para Arthur Virgílio, ex-senador e prefeito de Manaus eleito em 2012, o PSDB já era um partido “enfraquecido” em 2013. “O partido não conseguiu se reinventar”, disse.

A ausência dos eventos de junho de 2013 no processo eleitoral do ano seguinte foi uma surpresa para a equipe de Dilma. “Um dos maiores medos que eu tinha era o da exploração da oposição dos protestos. Mas a oposição não tocou no assunto. E nem nós obviamente mencionaríamos. Todo mundo achou melhor ignorar”, constatou João Santana. “Todos nós fizemos de conta que não era com a gente”, confirma José Aníbal, atualmente integrante da Executiva Nacional do PSDB, à época secretário de Energia do governo paulista do então tucano Geraldo Alckmin.

Valor Econômico