Desvendar caso Marielle é questão de tempo, diz PF

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Foto: Renan Olaz/CMRJ

A vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes foram assas­sinados em uma emboscada nas ruas do Rio de Janeiro há cinco anos. Na segunda-feira 24, a Polícia Federal anunciou o segundo grande avanço da investigação nesse período. Um dos envolvidos, o ex-policial Élcio Queiroz, assinou um acordo de colaboração com a Justiça. Além de confessar sua participação no crime, ele confirmou que o autor dos disparos foi o também ex-policial Ronnie Lessa, que já está preso, e forneceu o nome de outros ex-policiais que atuaram no planejamento e no apoio de uma trama complexa que envolve crime e poder. As revelações do delator deram novo impulso às investigações, mas ainda são insuficientes para esclarecer o mistério sobre a identidade dos mandantes. As autoridades, porém, consideram que, diante de algumas pistas fornecidas pelo informante, isso agora é uma questão de tempo.

Élcio Queiroz contou aos policiais que ele dirigiu o veículo que levou Ronnie Lessa, o assassino, até o local do crime, deu detalhes de como foi a perseguição, a execução e a fuga — e citou o nome de um suposto intermediário responsável por contratar o matador. Num extenso depoimento, o delator reconstituiu toda a dinâmica do assassinato, do momento em que passaram a seguir Marielle até o instante em que o carro dela foi interceptado e fuzilado na região central do Rio. Queiroz também contou como a arma e o Cobalt usados na operação foram destruídos. Segundo ele, o contratante foi o ex-policial Edmilson Oliveira da Silva, conhecido como Macalé, executado ainda não se sabe por quem ou por que em novembro de 2021. Já o ex-bombeiro Maxwell Simões Corrêa, preso na segunda-feira, teria dado apoio material e logístico ao grupo. Todos os envolvidos, como se vê, são ex-agentes do Estado. Powered By Video Player is loading. PlayUnmute Loaded: 0% Fullscreen A Polícia Federal acredita que tem condições de chegar aos mandantes do crime a partir dessas novas informações. A estratégia, de acordo com um dos responsáveis pela condução do caso, é concentrar a apuração no “nível intermediário” do grupo, ou seja, priorizar os elos entre os mentores e os executores. O ex-bombeiro Maxwell, por exemplo, é considerado uma peça fundamental para atingir esse objetivo. Élcio contou que uma primeira tentativa de matar Marielle ocorreu três meses antes do assassinato. O método foi o mesmo. Os bandidos seguiram a vereadora e a interceptariam na rua. A diferença é que, na ocasião, o carro usado estava sendo dirigido por Maxwell, com Ronnie Lessa no banco do passageiro e o ex-­policial Macalé escoltando a dupla num segundo veículo. Um problema mecânico no carro dos assassinos salvou a vida da vereadora naquele dia. O delator disse que ouviu esse relato detalhado do próprio Lessa.

DELAÇÃO - Adriano e Julia: o ex-capitão do Bope, morto em 2020, teria sido convidado pelo chefe da milícia de Rio das Pedras para executar a vereadora

Logo depois de ser preso, na segunda-feira, Maxwell foi transferido para uma penitenciária de segurança máxima em Brasília. A polícia imagina que, isolado, sem contato com antigos comparsas e sem perspectiva de ser solto, ele pode decidir colaborar para a elucidação do caso — e é bem provável que tenha a resposta que se busca. O delator contou que foi chamado para dirigir o carro no dia do assassinato porque Lessa estava em dúvida sobre a disposição do ex-bombeiro, que, na primeira tentativa de execução, teria ficado com “medo” e provavelmente inventado a história do defeito no veículo. Além de Maxwell, a polícia também vai ampliar a investigação sobre Macalé. Ele era, até onde se sabe, a única pessoa que com certeza sabia a identidade do mandante. O ex-policial foi morto a tiros em novembro de 2021 em circunstâncias não esclarecidas — e, ao que consta, também não muito bem investigadas. A PF não descarta a possibilidade de o ex-policial ter sido executado como queima de arquivo. Aliás, há um ponto em comum entre os suspeitos citados até agora no assassinato da vereadora: todos são ligados a milícias — grupos formados por policiais e ex-­policiais que controlam o crime organizado no Rio de Janeiro, infiltrados tanto no poder público quanto na política. Essa simbiose, aliás, sempre foi considerada um empecilho para a evolução das investigações. Quase um quarto do eleitorado do estado vive em áreas ocupadas por milícias, ou pelo tráfico de drogas, de acordo com um levantamento realizado pela UFRJ. Durante as eleições, candidatos que não têm o aval desses grupos simplesmente são impedidos de fazer campanhas e invariavelmente sofrem ameaças se ousarem desafiar as regras impostas pelas facções. O caso Marielle já revelou que muitos dos agentes de segurança do estado trabalham ou mantêm forte proximidade com as organizações criminosas. Há trechos na delação de Élcio Queiroz que mostram que, certamente não por acaso, pistas importantes se perderam quando as investigações estavam sob a responsabilidade do estado.

A hipótese de crime político nunca foi descartada, mas até o momento não surgiram elementos para afirmar que a motivação teve a ver com os posicionamentos de esquerda da vereadora. Embora combativa, a atuação da parlamentar costumava tratar do empoderamento feminino e defesa de minorias. O caldo que mistura tráfico de drogas, jogo do bicho e milícias no Rio de Janeiro, no entanto, ronda o caso desde o início. Macalé foi citado na CPI das milícias, era segurança de bicheiros e foi acusado de tramar assas­sina­tos. Ronnie Lessa pertencia ao Escritório do Crime, grupo de matadores de aluguel. VEJA teve acesso à íntegra de uma proposta de delação premiada que associou a morte da vereadora ao crime organizado. Em julho de 2021, Julia Lotufo, esposa do ex-capitão da PM Adriano da Nóbrega, apontado como chefe do Escritório do Crime, encaminhou ao Ministério Público uma proposta de acordo. Em troca de benefícios judiciais, ela se dispôs a contar detalhes sobre a participação do marido em mais de uma dezena de homicídios encomendados pela contravenção e listou agentes públicos que receberam propina para acobertar crimes. O anexo 10 da proposta, ao qual VEJA teve acesso, tratava especificamente sobre a morte de Marielle Franco. Segundo ela, Adriano, que chegou a ser apontado como suspeito do crime, foi convidado para executar a vereadora, mas não aceitou. O autor da proposta seria “Maurição” (tenente reformado da PM Maurício Silva da Costa), chefe da milícia de Rio das Pedras, e o mandante do crime seria “Girão” (ex-vereador Cristiano Girão), chefe da milícia de Gardênia Azul — ambas na Zona Oeste do Rio. O ex-capitão teria recusado o “trabalho” por causa da “repercussão” que teria. Depois do assassinato, Julia diz que ouviu do marido a seguinte afirmação: “Foi o Lessa, é tudo modus operandi dele, o calibre da arma, a posição do disparo”. Ronnie Lessa e “Maurição” seriam amigos de longa data. Foragido da polícia, Adriano da Nóbrega foi executado no interior da Bahia, em fevereiro de 2020, em mais um crime estranho e até hoje mal explicado. A proposta de delação de Julia foi recusada. Os promotores justificaram que foram detectadas inconsistências e ausência de provas em alguns dos relatos. Espera-se que as novas evidências finalmente levem à identificação e punição de todos os culpados.

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