Onda de censura toma Judiciário

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Foto: Shutterstock

O Brasil escapou por pouco de um golpe de Estado e, mesmo combalida, a democracia prevaleceu. Não é possível dizer, no entanto, que as instituições estejam funcionando normalmente por aqui. Um dos índices de civilidade mais comuns em todo mundo anda em baixa entre nós: a liberdade de imprensa.

Decisões judiciais recentes e processos movidos para intimidar o jornalismo profissional ressuscitaram o fantasma da censura de uma forma que não se via desde o fim da ditadura militar. Nas últimas semanas, três veículos de comunicação foram obrigados a tirar reportagens relevantes do alcance do público.

O primeiro caso foi o do site The Intercept Brasil, obrigado pela juíza Flávia Gonçalves Moraes Bruno, da 14ª Vara Cível do Rio de Janeiro, a suprimir a série de matérias sobre alienação parental. Desde o início de junho, os leitores estão proibidos de ler e assistir o resultado de uma apuração que levou mais de um ano para ser feita.

Na série, a jornalista Nayara Felizardo revela nomes de juízes, desembargadores, promotores, psicólogos e assistentes sociais que aplicam a Lei da Alienação Parental, muitas vezes tirando filhos de suas mães para entregá-los a acusados de estupro de vulnerável ou de violência doméstica contra elas.

A ação que resultou na censura foi movida por uma pessoa que não é citada nas reportagens, sob alegação de divulgação de documentos que estão em segredo de Justiça. “A publicação de segredos judiciais é, na verdade, um elemento essencial do jornalismo, que é praticado por todos os veículos respeitáveis do país e do mundo. Sem essa liberdade fundamental, o Fantástico teria que virar Faustão e o Intercept teria que virar mais uma coluna de fofocas”, escreveu Flávio VM Costa, editor-chefe do site.

No dia 20 de junho, foi a vez do juiz Hilmar Castelo Branco Raposo Filho, juiz da 21ª Vara Cível do Distrito Federal, conceder liminar contra a revista piauí e determinar a remoção de um trecho da reportagem “O cupinzeiro”, de autoria do jornalista Breno Pires. A matéria mostra as maracutaias da agência que o governo Jair Bolsonaro criou para substituir o Mais Médicos.

A reivindicação de um casal contratado para essa agência que estava na lista de amigos de ex e atuais dirigentes do órgão foi o bastante para motivar a decisão do magistrado. Ele determinou não só a retirada da reportagem do site da revista, mas também o recolhimento da publicação física, que está à venda em 5 mil pontos espalhados por todo o Brasil. Os responsáveis pela revista recorreram da sentença, mas o desembargador Robson Teixeira de Freitas, do Tribunal de Justiça do DF, confirmou o entendimento da primeira instância.

“É notável que até hoje o preceito constitucional da liberdade de imprensa ainda não tenha sido apreendido nem em seus rudimentos por uma camada da Justiça brasileira”, comentou à coluna André Petry, diretor de redação da revista. “A piauí lamenta muito essa recorrência; não por si mesma, mas pelos leitores. Uma sociedade democrática não pode conviver com esse tipo de atraso arbitrário.”

O terceiro caso é a liminar obtida na Justiça do Distrito Federal pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), para tirar do ar reportagem do site Congresso em Foco, em que Jullyene Lins, sua ex-mulher, o acusa de ter cometido violência sexual contra ela em 2006. Além disso, Lira cobra R$ 100 mil a título de danos morais. A ação foi movida contra o UOL, que tem parceria comercial com o site que publicou a matéria.

“Pessoalmente, o que posso dizer é que a matéria teve propósito meramente informativo, sem nenhuma intenção de ofender quem quer que seja”, argumenta Sylvio Costa, fundador do Congresso em Foco. “Também não me parece correto impedir que chegue a conhecimento público uma acusação grave envolvendo violência de gênero. Espero realmente que essa decisão seja modificada pela Justiça.”

O presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Octávio Costa, lamenta que os magistrados de instâncias inferiores estejam em desacordo com o entendimento da principal corte do país. “Há juízes que não entendem que esse tema está pacificado,que existe toda uma jurisprudência, várias decisões e manifestações do Supremo Tribunal Federal (STF) contra qualquer tipo de censura”, observa ele. “Quando chegar no Supremo o veículo ganha a causa, mas já há um transtorno, uma intimidação”.

Além da censura, há uma outra ameaça. “A reivindicação de indenização por dano moral, como o Arthur Lira tem feito, é uma arma de intimidação. Em um dos casos, ele pede R$ 300 mil. O processo vai correndo e o jornalista e a empresa ficam com a ameaça daquele processo de um valor altíssimo”, explica Costa.

A reivindicação de R$ 300 mil por danos morais é feito por Lira contra o programa do YouTube ICL Notícias. Contra a Agência Pública ele reivindica indenização de R$ 100 mil.

Em tempos de bolsonarismo, é sempre bom explicar que esses casos de censura judicial nada têm a ver com a retirada de conteúdos mentirosos, determinada nos últimos meses pelo STF e pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Sites delinquentes que nasceram unicamente para divulgar mentiras contra adversários políticos não podem ser comparados ao jornalismo profissional.

Até aqui, a sociedade reagiu com apatia às decisões judiciais que impedem o público de conhecer informações importantes sobre personagens e instituições de destaque. Notas institucionais de repúdio são um recurso interessante, mas, como se viu recentemente, não são exatamente a forma mais eficaz de protestar.

Proibir a circulação de matérias jornalísticas é uma decisão que, uma vez tomada, faz o Brasil retroceder instantaneamente.

Pela necessidade de o país tirar o pé do passado e voltar a olhar para o futuro, é preciso que os brasileiros defendam agora direito à informação e repudiem a censura.

Se deixarmos para depois, poderá ser tarde demais.

Uol