Justiça manobrou para proteger Salles de investigações

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Foto: Brenno Carvalho/O Globo

O celular do ex-ministro do Meio Ambiente e deputado federal Ricardo Salles (PL-SP), que se tornou réu em uma ação da Justiça Federal do Pará por suspeita de facilitar o contrabando ilegal de madeira na Amazônia na última segunda-feira, foi apreendido há dois anos pela Polícia Federal, mas nunca chegou a ser periciado.

Documentos obtidos pela equipe da coluna mostram que, desde o momento em que Salles foi alvo da Operação Akuanduba, que levou à sua saída do ministério um mês depois, até hoje, o inquérito sobre o caso foi transferido de jurisdição uma vez e não foi concluído. Além disso, o celular foi mantido intacto em razão de uma série de manobras.

Durante as buscas da Akuanduba, Salles se recusou a entregar o telefone alegando que não estava com o aparelho. Ele só disponibilizou o celular para a polícia 19 dias depois, no início de junho, mas não forneceu a senha, usando como escudo a garantia constitucional de não produzir provas contra si mesmo.

O dispositivo foi, então, encaminhado para a análise pericial do Instituto Nacional de Criminalística, vinculado à PF.

Lá, a equipe técnica atestou a “indisponibilidade de ferramentas, softwares e técnicas” para obter “acesso aos dados encontrados na memória do dispositivo”.

Só que autoridades do Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos Estados Unidos — que forneceu aos investigadores as primeiras pistas para a investigação do esquema de contrabando –, informaram à PF que dispunham de meios para “quebrar” a senha do celular de Salles e garantir o acesso aos dados.

Assim, em 23 de junho de 2021, mesmo dia em que Salles pediu demissão do Ministério do Meio Ambiente, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, que relatava o caso, determinou que o telefone fosse enviado aos EUA.

Foi quando o setor de perícia da polícia enviou ofício ao então dirigente das investigações, Franco Perazzoni, dizendo que não era mais necessário mandar o celular para os Estados Unidos, já que uma atualização no software usado pela PF, o Cellebrite, agora permitia o acesso ao conteúdo do celular.

Depois disso, o delegado Franco Perazzoni, responsável pelo inquérito, foi exonerado da Delegacia de Repressão à Corrupção e Crimes Financeiros. A decisão foi vista internamente como retaliação aos responsáveis pelas investigações contra Salles. Na ocasião, os arquivos relacionados à demissão de Perazzoni foram colocados em sigilo por 100 anos.

A esta altura, como Salles havia pedido demissão, ele perdeu seu foro privilegiado e o caso foi remetido à primeira instância da Justiça paraense pelo STF a pedido da PF. Mas o superintendente da PF no Pará, Wellington Santiago, manteve Perazzoni na investigação, trabalhando desde Brasília e de forma remota.

Desde então, de acordo com fontes ligadas à investigação, a equipe de investigação pediu diversas vezes que a perícia fosse realizada, o que não foi feito. O delegado foi definitivamente afastado do caso em outubro, e o inquérito nunca foi concluído.

O Ministério Público Federal do Pará, que só teve acesso aos autos neste ano, acabou apresentando à Justiça uma denúncia contra Salles no último dia 19, sem ter um relatório definitivo da PF.

Nesta segunda-feira (28), a Justiça Federal acatou a denúncia e transformou Salles em réu pelos crimes de organização criminosa, corrupção ativa e passiva, advocacia administrativa, facilitação de contrabando e outros cinco crimes.

De acordo com a manifestação dos procuradores do Grupo de Atuação Especial ao Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Pará, a PF agora tem dez dias para finalmente dizer se tem ou não condições de quebrar a senha do celular. Caso a resposta seja positiva, os peritos terão que fornecer a informações do telefone em até 30 dias.

A novela envolvendo o celular de Ricardo Salles é um dos episódios mais simbólicos e nebulosos envolvendo o inquérito, que já sofreu diversas reviravoltas e foi congelado a partir de uma série de manobras da então direção-geral da PF, alinhada a Jair Bolsonaro.

Antes da saída de Perazzoni, o então superintendente da PF no Amazonas, Alexandre Saraiva, já tinha sido exonerado após apresentar uma notícia-crime contra Salles em razão da apreensão de 11 balsas com 131 mil m² de madeira extraída ilegalmente – o equivalente a 6.243 caminhões lotados de carga – em dezembro de 2020.

Depois da operação Akuanduba, em junho de 2021, o chefe da divisão de combates a crimes contra o meio ambiente, Rubens Lopes, foi exonerado menos de um mês após a saída do delegado Perazzoni.

Em outubro daquele mesmo ano, o superintendente da PF no Pará retirou definitivamente o inquérito de Perazzoni e transferiu o caso para um delegado regional sediado em Altamira.

Com a decisão, Santiago recuou de uma posição que ele mesmo havia adotado no mês anterior, quando acatou um pedido da delegacia da PF em Altamira para que Perazzoni permanecesse nas investigações atendendo “ao princípio da eficiência e da celeridade processual”.

Após promover as mudanças no inquérito de Salles, em outubro de 2021, Santiago foi promovido e assumiu uma adidância da PF na Colômbia, onde continua até hoje.

Nós telefonamos para o escritório de Santiago no horário de expediente informado no site da Polícia Federal, mas não conseguimos contato. Perazzoni e a PF não retornaram até o fechamento da reportagem.

O Globo