Argentina cogita voltar a política econômica que a faliu

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Foto: Natacha Pisarenko/AP Photo/Imageplus

O tango nasceu na periferia de Buenos Aires no fim do século XIX, influenciado pelos estilos musicais de imigrantes italianos e espanhóis. No princípio, era uma música dançante e bem-humorada, mas com o tempo ganharia contornos graves e dramáticos. Não poderia haver referência melhor para definir a história da Argentina. Há 100 anos, o país chegou a ser uma das dez maiores economias do mundo, com uma vitalidade financeira e cultural que rivalizava com a pujança das metrópoles europeias. Nos últimos anos, contudo, governos desastrosos levaram a um processo de declínio que parece não ter fim. Agora, a inflação anual está em 135%, os índices de pobreza atingem 40% da população e a moeda local, o peso, desvaloriza-se velozmente. À beira do precipício, a Argentina, mais uma vez, flerta com o populismo. Depois de aventuras malsucedidas de candidatos de esquerda, é a vez do radical de direita Javier Milei liderar as pesquisas para o pleito que ocorrerá em 22 de outubro. Milei defende, entre outras propostas questionáveis, o fechamento do Banco Central e o fim do ensino público. Uma de suas ideias, contudo, merece ser levada a sério e discutida com profundidade.

arte dolarização

O candidato do partido A Liberdade Avança prometeu, se eleito, dolarizar a economia argentina. Segundo ele, trata-se do único caminho possível para acabar com a inflação no país. Em linhas gerais, seu plano é parar de imprimir cédulas do peso argentino e estabelecer que toda e qualquer transação financeira passe a ser feita em dólar. “No curtíssimo prazo, é impossível fazer isso, simplesmente porque a Argentina não tem dólares suficientes”, afirma Fabio Giambiagi, ex-economista-chefe do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e pesquisador associado da Fundação Getulio Vargas. As reservas cambiais da Argentina são consideradas baixas, perto de 26 bilhões de dólares. Para efeito de comparação, o estoque do Brasil é de aproximadamente 350 bilhões de dólares. Para engordar o cofre, Milei tem dito que vai vender parte dos títulos em poder do Banco Central no mercado secundário, mas os números que ele brande são mirabolantes, de até 60 bilhões de dólares. A questão é: quem compraria tudo isso de um país com pouca credibilidade? Ressalte-se ainda que a renúncia à gestão monetária não é bem-­vista pelo mercado internacional. “Toda vez que um país abre mão de padrões de controle, está dizendo que é tão incapaz que prefere dar para outro o cuidado de suas responsabilidades fiscais”, diz Alexandre Chaia, professor de finanças do Insper.

Na história recente, nações como El Salvador, Equador, Micronésia, Panamá, Porto Rico e Timor Leste — que estão longe de ser potências econômicas — incorporaram a moeda americana. O exemplo mais próximo é o do Equador. Em janeiro de 2000, o presidente Jamil Mahuad Witt anunciou a dolarização da economia do país. A medida promoveu a estabilidade monetária, algo que não era visto desde o longínquo 1970, mas eliminou a possibilidade de o governo utilizar políticas cambiais para responder a choques externos. Qual foi o efeito prático da iniciativa? “O crescimento econômico no Equador tem sido positivo desde a dolarização”, disse a VEJA o economista Francisco Zalles, um dos pais da medida e que atualmente apoia Milei na replicação do modelo na Argentina. Entre 2000, quando a economia equatoriana foi dolarizada, e 2022, o PIB do país cresceu, em média, 2,9% ao ano. No Brasil, a taxa anual média foi de 2,3%. Para Zalles, o processo de dolarização é simples, dado que não existe quantidade “mágica e perfeita” de dólares em reserva para se alterar uma economia nesse nível de profundidade. “Apenas é necessário que o governo aceite abrir mão de seu privilégio de imprimir dinheiro e devolva os dólares que mantém em troca dos pesos em circulação”, diz. Zalles pontua ainda que, de certa forma, a economia argentina já é dolarizada. Com a cotação do peso caindo cotidianamente, as operações em dólar são amplamente aceitas no país.

Não é a primeira vez que a Argentina flerta com a dolarização para conter a escalada dos preços. No início dos anos 1990, o governo de Carlos Menem adotou a paridade fixa entre o peso argentino e a moeda americana. A inflação foi domada e houve um breve período de expansão econômica. Mas o sistema era frágil, sem controle fiscal, e com o tempo o cenário mudou. Uma alta de juros nos Estados Unidos tornou a geração de divisas mais difícil para a Argentina. Com a economia paralisada e pouco competitiva, o país passou a depender cada vez mais de financiamento externo, o que levou muitos argentinos a enviar seus dólares para o exterior. Por sua vez, a fuga de capitais resultaria na escassez da moeda americana, processo que, afinal, tornaria a dolarização insustentável. No momento mais dramático, em 2001, a Argentina teve protestos, saques e cinco presidentes em doze dias. Em 2002, já com o peronista Eduardo Duhalde eleito, foi decretado o fim da paridade cambial.

arte dolarização

O Brasil também já flertou com a dolarização. Lançado em 1994, o Plano Real estabeleceu, de início, a criação da Unidade Real de Valor (URV), uma espécie de índice balizador entre cruzeiro e real, que tinha paridade em dólar. A grande sacada foi a dupla indexação da economia para conversão da inflação: enquanto a disparada de preços corroía o debilitado cruzeiro, a URV pouco se alterava. Quando o real entrou em circulação, a inflação do índice, que era baixíssima, foi adotada oficialmente, expurgando os efeitos da inflação passada. O resto é história.

É consenso entre especialistas que a estabilidade na Argentina, mesmo que conquistada por meio da dolarização de sua economia, seria benéfica para o Brasil. Os argentinos são nossos terceiros parceiros comerciais, atrás de americanos e chineses. No início de agosto, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, sugeriu que a Argentina passasse a pagar pela compra de produtos do Brasil em yuan, a moeda chinesa, em razão da escassez de dólares. Com a economia dolarizada, entraves como esses seriam superados. Nação de múltiplas faces, a Argentina merece destino melhor do que sugerem as crises intermináveis. Para isso, como por aqui, terá de fazer reformas e controlar as contas. Só assim seus lindos tangos talvez embalem momentos mais felizes.

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