Estão tentando tirar PF do caso Marielle

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Foto: Cristiano Mariz/O Globo

A reentrada da Polícia Federal (PF) na investigação que tenta esclarecer as mortes de Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, é alvo de questionamentos por uma suposta falta de prerrogativa constitucional para a instituição atuar em homicídios, que não são crimes federais.

Advogados, policiais civis e federais e magistrados ouvidos pelo Valor admitem que o assunto é controverso e que há possibilidade de judicialização, que seria provocada pela defesa dos acusados pelas execuções.

As críticas ao modo como a instituição voltou ao caso se chocam com os argumentos do ministro da Justiça, Flávio Dino, que elaborou um ofício em fevereiro com uma justificativa jurídica para a medida.

“Espero que a PF chegue a um resultado, mas a entrada no caso, da forma que se deu, é temerária. A investigação pode ser derrubada depois”, afirma o delegado Vinícius George, atualmente na Corregedoria da Polícia Civil do Rio. George conheceu e trabalhou ao lado de Marielle, ambos assessores do então deputado estadual Marcelo Freixo, na CPI das Milícias, realizada em 2008 na Assembleia Legislativa fluminense.

O inquérito da morte da vereadora do Rio de Janeiro e de seu motorista é um dos tantos em que a PF passou a atuar por determinação direta de Flávio Dino. No caso específico do crime ocorrido em março de 2018, é a segunda vez que o órgão subordinado ao Ministério da Justiça entra no caso por ordem de um ministro.

No ano em que o crime ocorreu, a PF passou a “investigar a investigação” da Polícia Civil do Rio por ordem do então ministro da Segurança Pública do governo de Michel Temer, Raul Jungmann. À época, a federalização ainda não tinha sido proposta, o que só ocorreu oficialmente, em decorrência dessa apuração, em setembro de 2019, por ordem da então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, no seu último ato no cargo.

O pedido encaminhado para o Superior Tribunal de Justiça (STF), responsável por analisar o instituto de deslocamento de competência, acabou negado por unanimidade, e o caso continuou sob a responsabilidade das autoridades estaduais.

No novo governo, chegou-se ao consenso do modelo de cooperação: a Polícia Federal criou um inquérito próprio para trabalhar em parceria com o MP-RJ, e a jurisdição segue na Justiça fluminense. Cabe ao magistrado Gustavo Kalil, da 4ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio, dar as decisões relacionadas ao caso, além de fixar as prováveis penas de Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz, que irão a júri popular.

Se caso for resolvido, será impraticável questionar isso”
— Luiz Eduardo Soares

Como o Valor mostrou em reportagem publicada na semana passada, cerca de dez policiais federais trabalham de forma exclusiva para desvendar o mandante da morte da vereadora. Lotados na superintendência fluminense da PF, os agentes têm entre eles nomes com profundo conhecimento do submundo do crime do Rio.

No documento enviado ao diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, determinando a abertura do inquérito, Flávio Dino diz que o homicídio decorreu de motivos políticos, tratando-se de “crime que atinge a ordem política em pontos essenciais”.

Ele deu outros argumentos, como o direito violado das famílias das vítimas em contar com uma investigação célere, além do Artigo 144 da Constituição, que prevê a participação da PF em infrações de ordem política ou “outras cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional”, e uma lei de 2002 (nº 10.446) que prevê a participação da PF, sem prejuízo das polícias Militar e Civil, em casos de flagrante violação aos direitos humanos.

Dentro da própria PF, a decisão causou estranheza, já que o órgão costuma atuar somente em homicídios cujas vítimas são servidores federais. Um ex-diretor da instituição lembra do debate ocorrido em 2003, no início do primeiro governo Lula, quando se discutiu se o órgão deveria ou não entrar na investigação do caso Celso Daniel, prefeito do PT de Santo André assassinado em janeiro de 2002.

Uma parte defendia a atuação baseada na mesma lei usada agora por Dino, mas prevaleceu a opinião contrária de não contar com a Federal no caso Celso Daniel, sobretudo para não provocar choques com o governo de São Paulo, à época chefiado por Geraldo Alckmin, atual vice de Lula.

“A Polícia Federal, em casos específicos, delineados, pode investigar em auxílio à elucidação de um problema de grande apelo sobre a opinião pública, de repercussão internacional. Para fins de competência penal, não é uma federalização, mas uma atuação de suporte. O inquérito está registrado na Justiça estadual e quem atua nele é o Ministério Público estadual”, disse Raquel Dodge ao Valor.

O modelo de cooperação colocado em prática no caso Marielle é citado por investigadores como uma tendência moderna, plenamente justificável. Algumas defesas, no entanto, já deixam claro nos bastidores que vão questionar a atuação da PF no futuro, numa tentativa de travar a investigação para além do mérito das acusações. Essa é a previsão dos advogados que defendem alguns dos acusados pelo crime.

“Se o inquérito chegar a uma conclusão, será impraticável recorrer a esse problema formal”, opina o antropólogo Luiz Eduardo Soares, ex-subsecretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro e estudioso da área. Ele, no entanto, diz não ter competência para discorrer sobre a natureza legal da competência da PF.

Procurados para comentar os questionamentos, o ministro da Justiça, Flávio Dino, e o diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, não quiseram se manifestar a respeito.

Valor Econômico