Indenizações por terras indígenas vão virar mega confusão
Foto: Carlos Moura/SCO/STF
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que deu aval à demarcação de terras por indígenas, independentemente de marco temporal, pode gerar uma série de outras ações na Justiça. Especialistas preveem que a indenização a ser paga aos produtores rurais que compraram tais terras de boa-fé poderá gerar novos processos judiciais. A tese do marco temporal determinava que a comunidade indígena só teria direito às terras que ocupavam ou já disputavam em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição Federal. Na quinta-feira (21), em julgamento considerado histórico, o STF decidiu afastar a aplicação dessa limitação no tempo, por 9 votos a 2. Embora o mérito tenha sido definido, ficou em aberto como será feito o cálculo, qual o prazo para pagar e por qual meio deve ser requerida a indenização aos fazendeiros.
O cálculo pode ser feito com base no valor da terra nua ou só das benfeitorias. O pagamento pode ser exigido previamente, antes da retomada da posse, ou apenas depois. O pedido de indenização pode ser feito na própria ação de demarcação de terra ou por ação autônoma. Desdobramentos devem gerar ainda vários outros processos” — Daniel Cavalcante Os ministros da Corte devem analisar a questão na semana que vem, mas já anteciparam algumas propostas na quinta-feira. O voto mais preocupante para os povos originários é o do ministro Alexandre de Moraes. Ele propôs o pagamento prévio da indenização pela União e sobre o valor total do imóvel, não só em relação às benfeitorias realizadas, no momento da desocupação. Já o ministro Cristiano Zanin, em agosto, havia proposto que a responsabilidade civil seria também dos Estados, mas por meio de ação autônoma, paralela à ação sobre a demarcação. Para Daniel Cavalcante, especialista em direito público atuante em grandes ações sociambientais, “o marco temporal foi definido no seu mérito, mas desdobramentos disso devem gerar ainda vários outros processos”. Segundo ele, na prática, a comunidade indígena teme que condicionar a quitação antecipada da indenização aos produtores rurais, para que os indígenas tenham direito à terra, e estabelecer o cálculo dessa indenização com base no valor da terra nua, além das benfeitorias, dificulte novas demarcações. Para a comunidade indígena, segundo Cavalcante, deve ser aplicado o artigo 231 da Constituição Federal. “Terras tradicionalmente ocupadas são das comunidades indígenas, sem condicionamento à previa indenização”, diz. O advogado também defende que há ampla e recente jurisprudência no sentido de que o cálculo da indenização deve ser feito apenas sobre as benfeitorias, tanto do Superior Tribunal de Justiça (AREsp nº 1941095/DF) quanto do STF (Petição 3388/RR). Mesmo a avaliação de benfeitoria pode gerar novas discussões administrativas ou judiciais. “A Funai, dentro do seu poder de polícia, junto com o Incra, poderia tentar fazer uma avaliação oficial e, se os ruralistas trouxerem outro valor, caberá ao Judiciário definir”, diz Cavalcante. Pela regra atual, do artigo 231, parágrafo 6º, da Constituição, explica Juliana de Paula Batista, advogada do Instituto Socioambiental (ISA), o que se indeniza é a benfeitoria realizada de boa-fé – considerada aquela feita até a edição da portaria declaratória do Ministério da Justiça determinando a demarcação. Segundo especialistas, essa indenização pode ser paga em dinheiro ou por títulos da dívida agrária. “O STF terá que definir se há direito à indenização e quais as balizas”, diz a advogada do ISA. Mas ela pondera que não é qualquer ocupante de terra indígena que deve ter esse direito. Nas situações em que os indígenas não estavam na terra em 5 de outubro de 1988, deve ser avaliado, segundo Juliana, se não foram expulsos à força e se o particular tem título emitido pelo governo. Nesse caso, explica, será necessário verificar se a matrícula originária foi emitida pelo Estado ou pela União. “A indenização pelo valor da terra nua não é para qualquer pessoa que tenha título. Há áreas sobrepostas em que só há posse”, frisa. Quanto ao possível estabelecimento de pagamento prévio da indenização, Juliana alerta que “a demora [na desocupação] aumenta o conflito e ameaça o direito dos povos indígenas, que têm o direito originário”. Segundo Ana Alfinito, pesquisadora da FGV Direito SP, “se prevalecer [as condições propostas por Moraes], nós podemos esquecer a demarcação de terras indígenas no Brasil”, diz. “Seriam os mesmos efeitos do marco temporal’, acrescenta. Já a possibilidade de as ações relativas à indenização poderem correr em paralelo às de demarcação é destacada de forma positiva por Ana. Se esse entendimento for confirmado pelo STF, contudo, segundo ela, poderá provocar uma enxurrada de ações judiciais de produtores contra Estados e a União. Cada caso teria que ser analisado individualmente. “A obrigação de reparar se origina de um ato ilícito do poder público que teria atraído particulares de boa-fé para a terra”, diz a pesquisadora. “Não tem a ver com a demarcação, é um processo diferente”.