Polícia paulista se defende sobre violência

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Foto: Danilo Verpa/Folhapress

A controversa operação policial que o governo de São Paulo mantém há pouco mais de um mês na Baixada Santista tenta minar, segundo autoridades de segurança, a estrutura criada pelo crime organizado na região.

A chamada Operação Escudo é uma das mais letais já ocorridas em São Paulo, com 24 civis mortos desde 28 de julho. Mais de 700 pessoas já foram presas.

No entanto, a estratégia de embate armado em áreas pobres de Santos e Guarujá tem levantado questionamentos não apenas sobre as mortes, mas sobre a real efetividade da operação.

Uma avaliação que vem sendo repetida é que esse tipo de investida pode produzir efeitos momentâneos e baixas em escalões inferiores de quadrilhas, mas que não tem poder para abalar, de fato, a rede de criminosos instalada na região.

Santos e Guarujá e, em menor escala, outros municípios da Baixada, têm uma característica muito particular na economia do crime no país.

São cidades que funcionam como uma espécie de último entreposto no Brasil do fluxo de cocaína que é transportada em caminhões e carretas desde os países produtores na região dos Andes e que tem como destino a Europa e o norte da África.

O Porto de Santos -o maior do Brasil e cujos terminais ficam em Santos e Guarujá – é, segundo autoridades brasileiras e estrangeiras, a via preferida de traficantes que usam o território brasileiro para abastecer o bilionário mercado europeu da droga.

Com base em estimativas feitas a partir do volume de apreensões, Santos aparece como o segundo maior porto do mundo de onde saem navios com cocaína que chega a Europa, de acordo com o Centro de Monitoramento Europeu de Drogas e da Dependência das Drogas (EMCDDA na sigla em inglês), órgão da União Europeia sediado em Lisboa que acompanha o mercado de entorpecentes no bloco. O primeiro, nesse quesito, é o de Guaiaquil, no Equador.

Lideranças pequenas e intermediárias são descartáveis para as organizações criminosas”
— J. Vicente Silva
Boa parte da criminalidade local – que o governo do Estado diz que busca sufocar com a operação especial – se organiza em torno dessas transações de remessa da cocaína dentro de navios cargueiros.

“Estamos falando de um sistema econômico. Não se trata de uma facção apenas, ou de uma quadrilha. É um sistema macro, do qual fazem parte pessoas que estão aqui, que tomam comunidades como reféns, pessoas que são capitalizadas por todo esse sistema”, disse na semana passada ao Valor o comandante-geral da Polícia Militar de São Paulo, o coronel Cássio de Araújo Freitas, durante uma rápida visita a Santos.

O problema é como fazer frente a esse sistema.

Desde 28 de julho, policiais militares e civis levam adiante uma operação ordenada pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) que começou como uma perseguição ao autor do disparo que, no dia anterior, havia matado um policial militar que patrulhava uma área violenta do Guarujá.

Uma semana depois, policiais já haviam matado 16 pessoas no Guarujá e em Santos. Passado pouco mais de um mês do início da operação, o total de pessoas mortas pela polícia havia chegado a 24.

O Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) concluiu a análise das imagens das câmeras corporais usadas pelos policiais militares durante a operação no litoral paulista. Segundo os promotores, todas as mortes foram de suspeitos que entraram em confronto com os policiais.

Eles tiveram acesso a mais de 50 horas de gravação. Em três ocorrências, houve confrontos com criminosos. Em duas ocorrências, as gravações não captaram os momentos das supostas trocas de tiros, mas, segundo o MP, são importantes porque revelam falhas operacionais.

Desde o início, moradores de favelas e de bairros pobres da região falam em abuso no uso da força pela polícia, invasão de casas, perseguição e mortes que poderiam ter sido evitadas.

A Ouvidoria do Estado de São Paulo, uma instituição que faz parte da Secretaria de Segurança Pública, diz que já encaminhou às polícias 18 procedimentos baseados em relatos de excessos e de mortes injustificadas que teriam sido cometidas por policiais na Operação Escudo. A PM e a secretaria negam irregularidades.

José Vicente da Silva Filho, coronel reformado da PM paulista, ex-secretário nacional de Segurança e atualmente membro do Conselho da Escola de Segurança Multidimensional da Universidade de São Paulo, é um dos que argumentam que ações de troca de tiros que levam a mortes em favelas provocadas por policiais têm pouca ou nenhuma relevância para o combate à estrutura ilícita associada ao narcotráfico internacional na Baixada Santista.

“Quanto menos trabalho de inteligência, mais operações de confronto armado são feitas”, diz.

Ele nota que, pela lógica do crime, aqueles que optam pelo confronto com policiais na região tendem a ser membros de escalões inferiores e são facilmente substituíveis. “Lideranças pequenas e intermediárias são todas descartáveis para as organizações criminosas”, diz ele.

Além de trabalho de inteligência, o especialista argumenta que robustecer a cooperação entre órgãos e a troca de informações é outra necessidade premente.

César Barreira, fundador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará e professor titular aposentado da instituição, lembra que a operação da Baixada Santista lembra outras, ocorridas no Rio de Janeiro, Bahia e Ceará. Em comum, diz ele, começam imediatamente após a morte de um policial em serviço e acabam com uma longa lista de mortos na região onde o agente foi atingido.

“São ações que às vezes parecem vingança”, diz ele. “O dado preocupante é que fica claro que confrontos desse tipo aumentam após um policial ser morto, mas eles não têm efetividade contra a estrutura criminosa em nenhuma região.”

Não se trata de defender que a polícia deva abdicar do uso da força e de operações especiais em alguns momentos, afirma ele. Mas que a polícia haja sempre nas duas frentes. “As polícias militares e civis têm um trabalho de inteligência que é muito mais efetivo do que o confronto. No entanto, em muitas situações parece que o confronto é mais usado e os ganhos têm sido pequenos.”

No que pareceu um contraste em termos de efetividade, agentes da Polícia Federal deflagraram na quarta-feira uma operação de busca e apreensão em Santos e na vizinha Praia Grande, em endereços ligados a integrantes de organização criminosa que usava o Porto de Santos para despachar cocaína para o exterior.

Além das buscas, a PF foi atrás do dinheiro auferido pelo grupo. Arrestou 12 imóveis de luxo e bloqueou contas bancárias associadas aos criminosos, num montante aproximado de R$ 2,8 bilhões. Essa organização, de acordo com a PF, é acusada de já ter enviado clandestinamente em navios cargueiros saídos do porto nada menos que 17 toneladas de cocaína. Operações desse tipo, dizem especialistas, tendem a ter mais efeito na cadeia do tráfico do que os confrontos armados com criminosos de baixa patente.

O fluxo de cocaína pelo porto de Santos acabou criando um diversificada oferta de prestação de serviços de criminosos locais.

“Aqui na Baixada a gente costuma dizer que o negócio da droga usa um modelo parecido com o das revendedoras que vão de porta em porta oferecer seus produtos. Alguém que trabalha em um dos terminais portuários vislumbra alguma possibilidade de colocar droga nos carregamentos e vende essa ideia para o crime”, disse à reportagem um servidor que atua há anos no combate ao tráfico no porto.

Dois servidores públicos que estão no dia a dia do combate aos crimes no porto dizem que a facção paulista coopta trabalhadores que atuam nos terminais e com os quais levantam detalhes sobre horários, cargas, navios.

O porto conta com 16 scanners sob os quais passam todos os contêineres com cargas com destino à Europa e ao norte da África. Milhares de câmeras pelos terminais ajudam na vigilância. Isso dificultou a atuação criminosa, mas não conseguiu impedi-la totalmente.

Além de continuar usando contêineres, recentemente o tráfico passou a recrutar um serviço mais sofisticado: mergulhadores profissionais que se encarregam de esconder em compartimentos nos cascos dos cargueiros pacotes à prova d’água contendo cocaína. Na semana passada, 247 kg da droga foram encontrados por funcionários da Receita Federal e mergulhadores da Marinha em um navio que iria para o Marrocos.

O controle de territórios também é crucial para a logística ilegal da cocaína por meio do maior porto: como os carregamentos de cocaína que chegam à Baixada Santista não são embarcados imediatamente, precisam ficar estocados por um ou mais dias. Casas vazias, galpões, terrenos em comunidades controlados pelo crime fazem as vezes de entrepostos apelidados de “chão” ou de “mocó”.

A facção criminosa que é vista pelas autoridades como a mais influente no narcotráfico internacional que passa pelo país tem no Porto de Santos uma de suas principais estruturas de envio de cocaína para o exterior, segundo o Ministério Público do Estado.

Mas a demanda firme dos europeus pela droga abriu também portas para que criminosos locais também passassem a explorar o mercado externo.

O peso da cadeia internacional da cocaína em Santos, Guarujá e região coloca nas mãos de criminosos locais armas mais pesadas, como fuzis e submetralhadoras. Coloca também mais dinheiro e mais poder. E alimenta uma demanda sempre renovada por lavagem de dinheiro.

“Traficantes lavam dinheiro aqui comprando imóveis, lojas, revenda de automóveis, restaurantes, farmácias. Até em shopping já entraram”, disse uma servidora que também trabalha no encalço dos narcos da Baixada.

É esse ecossistema ilícito armado em torno do comércio internacional e também local da cocaína que a operação mantida pelo governador Tarcísio tenta atacar e cuja efetividade é questionada.

A segurança na região e no porto em si é feita, em alçadas distintas, pela Polícia Federal, pela Receita Federal, pela Polícia Civil e pela Polícia Militar.

O coronel Freitas afirma que os 30 dias de investida policial tem “tirado energia” das ramificações do sistema criminoso na região. E que está produzindo também uma redução de roubos e homicídios.

Até o dia 30, segundo a Secretaria de Segurança do Estado, 728 pessoas, das quais 280 eram procuradas pela Justiça, foram presas na operação; e 93 armas 929,3 kg de drogas apreendidas.

“Quando a operação acabar, nós não vamos embora deixando exatamente do mesmo jeito que era”, afirma o coronel Freitas. Ele fala em investimento no 21º Batalhão da PM que cobre o Guarujá, em uma nova sede da polícia também na cidade, em transformar a base comunitária na conturbada Vila Zilda na melhor base da PM e em criar um sistema de monitoramento por câmeras. Além de incrementos desse tipo, João Henrique Martins, coordenador do Centro Integrado de Comando e Controle da Secretaria de Segurança Pública fala da necessidade de mudanças na legislação de modo a impedir que criminosos perigoso com alto poder financeiro gozem de progressão de pena.

Veterana na política em Santos, a ex-prefeita Telma de Souza, uma das fundadoras do PT, tem sido uma crítica ao que entende ser abusos da PM na Operação Escudo. Ela não descarta a ideia da necessidade de reforço na segurança, mas relembra o argumento que pauta uma abordagem de viés mais social. “A falta de políticas públicas acaba fazendo com que haja uma franja enorme da população que fica à deriva e, muitas vezes, vai para aonde pode sobrevive”, diz ela. “Onde a pobreza é mais acintosa é onde mais existe apelo do tráfico.”

Valor Econômico