STF decide se desestimula ou não golpismo

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Foto: Carlos Moura/SCO/STF; Vinicius Schmidt

Está nas mãos, ou nos votos, do Supremo Tribunal Federal a manutenção da disciplina democrática, com todas as suas óbvias imperfeições, ou o convite ao vale-tudo. O que se deu no dia 8 de janeiro no Brasil foi de tal sorte grave que o julgamento em curso e os que ainda virão revestem-se de um caráter didático-civilizatório. O que se decide, no fim das contas, é a forma do exercício da divergência. É aceitável que se rasguem a Constituição e as leis e que se exortem as Forças Armadas a um golpe de Estado? Se depender do ministro Alexandre de Moraes, os que fizeram essa escolha podem pegar 17 anos de cadeia ou mais. Se depender de Nunes Marques, o criminoso levará um puxão de orelha em liberdade, claro! Quem sabe à espera da próxima oportunidade.

As peripécias de Aécio Lúcio Costa Pereira, em julgamento, estão em todo canto. Foi preso em flagrante no Senado e gravou vídeos da invasão, que publicou nas redes, orgulhoso de seu feito. A investigação sobre sua conduta não deixou a menor dúvida sobre o seu propósito, evidenciado em muitas outras provas: depor o presidente legitimamente eleito e entronizar o candidato que havia sido derrotado, com o concurso da intervenção armada — no caso, dos militares. Não se limitou a proclamar nos botecos as suas convicções golpistas. Ele resolveu pôr em prática seus intentos dolosos.

E, por isso, em seu voto, Moraes defendeu uma pena de 17 anos, 15 anos e meio dos quais em regime fechado. Imputou-lhe os crimes de tentativa de abolição violenta do Estado democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado, deterioração do patrimônio tombado e associação criminosa armada. O ministro foi até generoso na dosimetria. Pelo topo, renderiam 33 anos de cana.

O voto do relator tem um eixo, a saber:
“Não existe aqui liberdade de manifestação para atentar contra a democracia, pedir a volta da tortura, para pedir a morte dos inimigos políticos, os comunistas, e para pedir intervenção militar. Isso é crime. Houve a entrada criminosa e golpista em um prédio onde havia bloqueios, em dinâmica de vandalismo e violência, com ações organizadas que se estenderam muito além do ingresso no edifício, e não houve recuo, porque o objetivo era claro: obter uma intervenção militar, conseguir o golpe de Estado e derrubar o governo democraticamente eleito”.

Que o tal Aécio Lúcio tenha concorrido para dano qualificado e deterioração do patrimônio, bem, isso aprece claro até para Nunes Marques. Mas e a abolição violenta do Estado democrático e golpe de Estado? Bem, então é preciso consultar a lei e os fatos. Reproduzo os Artigos 359-L e 359-M do Código Penal:
“Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito)
anos, além da pena correspondente à violência.”

“Artigo 359-M. Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze)
anos, além da pena correspondente à violência.”

Não sei se percebem — e isto será importante ao comentar o vergonhoso voto de Nunes Marques —, mas os tipos penais não punem propriamente a abolição do estado de direito e o golpe consumado. Fala-se da tentativa. Até porque, por uma questão lógica que o “ministro 10%” de Bolsonaro não deve alcançar, se o criminoso fosse bem sucedido, não seria punido, não é? Passaria a integrar o poder. Suas vítimas é que pagariam o pato.

Já tratei desse raciocínio estúpido aqui e no programa “O É da Coisa”. O próprio Moraes observou:
“Várias pessoas defendendo que o crime não ocorreu porque não conseguiram dar o golpe de Estado. Ora, não existe crime de golpe de Estado porque se tivessem dado um golpe de Estado, na verdade, quem não estaria aqui seríamos nós para julgar o crime. Quem dá golpe de estado não é julgado porque ganhou na violência o que democraticamente perdeu. Por isso que as elementares do tipo são bem claras: tentar depor.”

Nunes Marques não decepcionou os reacionários de todos os quadrantes. Votou pela condenação do réu a dois anos e meio, em regime aberto, apenas por dano qualificado e deterioração do patrimônio tombado. Isso, bem entendido, se a maioria da Corte entender que ele deve mesmo ser julgado pelo Supremo. O doutor abraçou a tese da defesa e quer que o caso migre para a primeira instância.

Ignorando a letra da lei, o ministro entendeu que os demais crimes seriam impossíveis porque os meios empregados não se mostraram eficazes — lembrou que não havia sinal de que as Forças Armadas poderiam intervir. O valente magistrado se mostraria disposto a punir apenas golpistas bem-sucedidos, se é que me entendem… É uma aberração.

Aécio Lúcio foi preso no Senado. Mas poderia ter sido flagrado no STF, justamente o tribunal integrado por Nunes Marques. Também nesse caso, pois, o luminar veria não mais do que as duas imputações leves. Seu voto começa por desrespeitar a Casa que o abrga: a Corte Constitucional. Não tivesse havido danos ao patrimônio, então não haveria — seguindo o seu, por assim dizer, de raciocínio — crime nenhum. Ou por outra: milícias poderiam se organizar para impedir o funcionamento do Supremo, por exemplo, cobrando a deposição armada de todos os ministros, desde que fossem educados e não quebrassem nada.

Vamos ser claros? Este senhor não estava julgando o réu do dia. Ele já está desenhando o voto que dará quando chegar a hora de Bolsonaro sentar no banco dos réus. E ele vai.

Respondendo ao desembargador aposentado do TJ-DF Sebastião Coelho da Silva, que se apresentou como um dos advogados da defesa, Moraes anunciou “a responsabilização legal de todos, absolutamente todos, os autores, coutores e partícipes dos atos criminosos, atentatórios ao estado democrático de direito”. Destacou: trata-se de “atos golpistas”. E emendou:
“Às vezes, o terra-planismo e o negacionismo obscuro de algumas pessoas fazem parecer que, no dia 8 de janeiro, tivemos um domingo no parque. Então as pessoas vieram, pegaram o ticket, entraram na fila, assim, como fazem no Hopi Hari, em São Paulo, ou na Disney… ‘Agora nós vamos invadir o Supremo, vamos quebrar alguma coisinha aqui. Agora, vamos invadir o Senado. Agora vamos invadir o Palácio do Planalto, agora vamos orar da cadeira do presidente do Senado’… Presidente, é tão ridículo ouvir isso que a Ordem dos Advogados do Brasil não deveria permitir (…) A Ordem dos Advogados do Brasil que é uma defensora intransigente da democracia”.

É isto: a Constituição não abriga o direito ao golpe de Estado, e a democracia só pode punir as tentativas de golpe e de abolição do estado democrático e de direito. Se os fascistoides fossem bem-sucedidos, os punidos seriam os democratas. Nunes Marques falou em “crime impossível”. Está errado, como quase sempre. Ele, sim, se nega a defender a condenação possível em nome da condenação impossível.

É seu voto mais vergonhoso numa já longa lista de vergonhas.

Uol