Derrota da esquerda não foi tudo isso

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Derrota da esquerda não foi tudo isso

Eduardo Guimarães

Parafraseando Mark Twain (1835-1910), as notícias sobre a morte da esquerda, na eleição de domingo, foram exageradas. O clima de desânimo instalou-se nessa região do espectro político e isso é até positivo, pois provoca — ou deveria provocar — reflexão.

Há meses venho dizendo aos mais chegados que ocorreria o que ocorreu, mas só recebi sorrisos irônicos e acusações de alarmismo. Não era alarmismo, a esquerda ficou muito aquém da centro e da extrema direitas. Todavia, o paciente sobreviveu e passa bem.

Sim, o PT, até agora, não elegeu nenhum prefeito na Grande São Paulo e o PSOL perdeu a única prefeitura que tinha, em Belém . Porém, a eleição não acabou.

Antes de tratar da razão pela qual é possível encontrar alento diante do fato de que o PT elegeu metade dos prefeitos que o PL, vamos entender por que a esquerda não deslancha mesmo tendo chegado à Presidência.

É inevitável tratar da brutal desconexão entre a esquerda e as camadas populares. Estudo inédito do Instituto Locomotiva, pilotado pelo inquieto Renato Meirelles*, ouviu integrantes da classe C pelo país afora e detectou que esse estrato social atravessa profunda transformação.

O mais amplo estrato social do país acalenta a ideia de subir na vida através do que acha que é empreendedorismo, cultua valores tradicionais e se vê aterrorizado pela expansão da violência, o que explica que uma classe social que também é vítima da violência policial se deixe seduzir pelos que a defendem.

Os “remediados” cultuam valores conservadores que lhes orientam o voto. A saber:

– 58% acham que a religião pregada por aproveitadores é vital na educação dos filhos

– 57% se manifestam contra a tão urgente educação sexual nas escolas

– 55% defendem a “família tradicional”, esse conceito homofóbico e reacionário

– 65% acreditam que cabe ao Estado proteger as liberdades individuais

– 56% acham que o “empreendedorismo” dos motoristas de aplicativo (entre outros) é o caminho

– 53% acham que as prisões têm muito espaço e querem penas mais longas e severas inclusive para um garoto que carregue um baseado no bolso.

– 51% pregam nada mais, nada menos do que mais violência policial em um país que tem a polícia mais violenta do mundo, especializada em exterminar negros pobres inocentes e culpados.

A maior barreira para a esquerda nesse latifúndio da classe C é o rolo compressor em que se converteu a expansão das igrejas evangélicas, que abrem dezessete novos templos por dia.

Esse exército de fiéis já corresponde a quase um terço da população e é formado, em imensa maioria, por mulheres negras que ganham até 3 mil reais, ultradependentes de serviços públicos.

O problema é que a esquerda se afastou desse contingente. Tem “nojinho” dos “crentes”, em grande maioria, e só os procura no limiar das eleições.

E ainda espera ser recebida com tapete vermelho.

O que dificulta o diálogo são as novas prioridades da esquerda — ou de sua parcela mais estridente, que, apesar de minoritária, domina os foruns de debates nas redes.

Fala-se muito de Venezuela, Ucrânia, Gaza, LGBTQIA+, mas pouco da violência que ameaça essa população muito mais do que uma polícia hidrófoba — até pela quantidade dos desesperados ou deserdados desde o berço que caem na criminalidade e a dos políciais violentos.

Enquanto o discurso fácil da violência polícial e das penas mais duras em presídios onde não não cabe nem mais um palito de fósforo prospera nas bocarras autoproclamadas “conservadoras” dos pastores de fancaria e dos políticos espertalhões, a esquerda está bradando o futuro dos Brics e os insultos ao nazista que governa Israel.

O que essa maioria esmagadora de eleitores pobres e manipulados pensa desses temas? Pensa que a esquerda quer que pobre se dane.

Mas não é só, pensa que quem se preocupa consigo é quem está lá, no dia a dia, envenenando suas mentes infantilizadas pelo fanatismo religioso e embotadas por sistemas educacionais inócuos.

Porém, a esquerda está longe de estar morta. A tão propalada vitória do centro nas eleições municipais é um exagero baseado em números que não dizem o que é preciso sobre o ambiente político e as preferências dos brasileiros.

A blitzrieg do PSD de Gilberto Kassab e o costumeiro forte desempenho do MDB decorrem de máquinas partidárias endinheiradas e estratégias eleitorais realistas, mas picaretas e enganadoras.

A esquerda não perdeu para as direitas, mas para si mesma, para um afastamento da mentalidade, dos anseios e dos medos desses setores da sociedade.

Contudo, o PT aumentou o número de prefeituras vencidas — 251 no primeiro turno de 2024 contra 182 no total de 2020. E em São Paulo, apesar de não ter um candidato, o partido é avalista e divide com o PSOL a chapa do deputado federal Guilherme Boulos, que só não venceu o primeiro turno graças a outra trapaça de Pablo Marçal, que lhe tirou cerca de 50 mil votos espalhando que o número do psolista nas urnas era 13.

Contudo, a situação não poderia ser melhor para Boulos. A vitória antecipada que a campanha de Nunes alardeia não existe. Silas Malafaia e o próprio Marçal garantiram que o prefeito paulistano morra na praia.

E Marçal precisa ajudar a eleger Boulos para poder dizer à Justiça Eleitoral que sua trapaça com o laudo falsário não prejudicou tanto a vítima — o que não irá funcionar, mas será argumento onde argumento inexistia.

Mas e se a esquerda conquistar o terceiro PIB do país, com seus 12 milhões de habitantes? A vantagem das direitas vira pó. Enquanto isso, os dois maiores extremistas de direita estarão inelegíveis e/ou presos.

* https://www.renatomeirelles.com/favela