Damares quer ocultar crimes da ditadura militar

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Foto: Sergio Lima / AFP

Os trabalhos sobre as 1.049 ossadas encontradas na chamada “Vala de Perus”, no Cemitério Dom Bosco, em 1990, terão um dia decisivo nesta segunda-feira. Depois de quase seis anos de trabalho intenso no Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf) da Universidade Federal de São Paulo, o governo federal informou há cerca de 15 dias a intenção de transferir as ossadas para o Instituto de Pesquisa de DNA Forense da Polícia Civil do Distrito Federal, em Brasília.

No entanto, o governo depende de autorização judicial para isso e terá que debater o assunto hoje à tarde no TRF-3, em São Paulo, junto com representantes do Ministério Público Federal (MPF) e familiares das vítimas uma vez que a obrigação de identificação das ossadas é resultado de um acordo feito no Judiciário.

O impasse sobre uma eventual transferência não é a única ameaça. Até o momento, o governo também não renovou os contratos com os peritos que trabalham no caso e encerram no final deste mês. Sem a renovação, a identificação corre risco de parar de vez.

— Sinto que está em risco porque tem uma incompreensão da importância do trabalho desde a entrada da nova gestão os familiares não são consultados para o caminho da análise. A ação visa atender as demandas das famílias de encontrar os seus entes, a partir de agosto os familiares foram desconsiderados. Todas as decisões técnicas deixaram de ser feitas junto com a Unifesp. Isso cria um risco técnico. São dois problemas. Um ético e um técnico. A execução do trabalho fica em risco — afirma Edson Telles, diretor do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf).

A tentativa de transferência não é o único ponto de discórdia na condução dos trabalhos. Desde o início do ano, o trabalho enfrenta dificuldades por mudanças feitas governo federal em toda a área. Em abril, um decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro encerrou uma série de conselhos, entre os quais, o Grupo de Trabalho Perus (GT Perus). Os trabalhos então continuaram sem o acordo de cooperação que reunia a prefeitura de São Paulo, Unifesp e o governo federal.

Em agosto, a ministra Damares Alves anunciou a troca de membros da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, criada em 1995 para conduzir o trabalho de localização dos corpos de desaparecidos da ditadura. Uma das principais mudanças foi na presidência com a substituição da procuradora Eugênia Gonzaga pelo advogado Marco Vinicius Pereira de Carvalho – assessor de Damares e filiado ao PSL.

A proposta de transferência justamente apresentada por Carvalho há duas semanas e chocou familiares de vítimas. Segundo eles, todos foram surpreendidos com a proposta já que o trabalho na Unifesp está em estágio avançado e quando o anúncio foi feito o governo não apresentou programa de trabalho e custo para essa mudança. Um deles que preferiu não se identificar disse ao GLOBO que a situação é “um desrespeito”.

— Foi o estado criou que essa vala na ditadura e tem obrigação de identificar, mas eu não esperava outra coisa desse governo — disse.

O GLOBO questionou o ministério sobre a proposta de transferência, as verbas e as dificuldades mencionadas por familiares, mas não teve as perguntas respondidas. O ministério apenas enviou um release com o anúncio da transferência no qual cita como justificativa que a mudança faria uma “economia” de cerca de “R$ 216 mil com o aluguel da casa” usada para o armazenamento e “outros R$ 175 mil” com os gastos de segurança porque na Polícia Civil do DF esse custo não existiria. No entanto, o governo disse que continuaria fazendo o trabalho de identificação com o laboratório de Haia e, para isso, são necessários outros quase R$ 3 milhões, mas não mencionou se a verba está disponível ou de onde virá.

Do total, restam para análise 26% das caixas com as ossadas. Essas, porém, constituem uma das partes mais difíceis do trabalho porque a pesquisa forense de reconstituição das ossadas ainda precisa ser feita.

Segundo Edson Telles, nessa etapa será necessário coletar amostras de DNA de cada um dos ossos das caixas restantes para tentar identificar quais pertencem aos mesmos indivíduos. Só depois, será feita a tentativa de identificação com o banco de DNA dos familiares. Para essa pesquisa, chamada de “reassociação óssea”, havia uma previsão de contratação de outros seis peritos sobre a qual o ministério e a comissão também não se manifestaram se terá sequência ou não.

Em 1976, cadáveres de pessoas não identificadas e vítimas da repressão política foram depositados por policiais de modo clandestino em uma vala comum do Cemitério Dom Bosco, em São Paulo. Devido à localidade, foi denominada “Vala de Perus”, nome do bairro na zona norte de São Paulo. Só em 1990, a vala foi descoberta, e foram encontradas 1.049 ossadas. Além dos opositores políticos, acredita-se que a vala de Perus tenha restos mortais de pessoas que foram mortas em chacinas e por grupos de extermínio.

O trabalho de identificação das ossadas passou por diversos problemas ao longo dos anos e sofreu críticas pelo atraso. As ossadas chegaram a ficar 15 anos paradas no Cemitério do Araçá, no bairro do Pacaembu, na Zona Oeste. A atual pesquisa de antropologia forense começou apenas em 2014.

Naquele ano, quando assumiram o trabalho, pesquisadores do Caaf fizeram uma triagem nos ossos, reconstituindo parte dos esqueletos, e enviaram fragmentos para o laboratório International Commission on Missing Persons (ICMP), que funciona em Haia, na Holanda. A instituição foi criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) devido ao conflito na ex-Iugoslávia e acumula uma experiência com a análise de mais de 20 mil casos de identificação humana.

Até junho, o grupo conseguiu enviar amostras de 750 indivíduos para análise até junho deste ano. No ano passado, foram identificados dois opositores políticos assassinados nos anos 1971 e que estavam com os corpos desaparecidos desde então: Dimas Casemiro e Aluísio Palhano. Até junho de 2019, foram enviadas amostras de outros 200 indivíduos para tentativa de identificação. Esses resultados ainda estão sendo aguardados.

Até 2019, os trabalhos eram conduzidos com verbas de emendas de 15 parlamentares que disponibilizaram um total de R$ 2 milhões para a condução da pesquisa. Não se sabe, porém, se a comissão obteve mais verbas junto aos parlamentares para 2020.

— Eles pretendem levar para Brasília, mas continuar contratando a análise genética fora. Não faz sentido. Essas ossadas são do município, de pessoas de São Paulo. Transferir para órgão policial, é algo que contraria desejo das famílias, as recomendações internacionais de perícia e estão ressuscitando questões que foram analisadas todos esses anos. Foi falado em fazer no IML de SP e foi recusado pelas famílias. No caso de São Paulo, é quase uma afronta. Não é maneira de se tratar as vítimas — afirmou Eugênia Gonzaga, ex-presidente da comissão, ao lembrar que médicos do IML paulista emitiram laudos fraudulentos de presos políticos negando as lesões de tortura.

O Globo