ONU diz que Brasil pode ser afetado por corona vírus
Foto: EPA
Descoberto em dezembro na China, um novo tipo de coronavírus já infectou milhares de pessoas e provocou dezenas de mortes no país, além de ter chegado a mais de uma dezena de outros países, o que colocou autoridades de todo o mundo em estado de alerta.
O 2019-nCoV, como é chamado oficialmente, faz parte de uma ampla família de vírus dos quais sete podem ser transmitidos a seres humanos por animais e causar desde um resfriado comum até problemas respiratórios que levam à morte.
Os coronavírus estiveram por trás de duas epidemias graves recentes. A Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars, na sigla em inglês) matou 774 das 8.098 infectadas em 2003. Já a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers, na sigla em inglês) matou 858 dos 2.494 pacientes identificados, em 2012.
Mas, até o momento, o novo coronavírus parece ser menos letal que seus antecessores e ter uma capacidade limitada de transmissão entre pessoas, explica o médico sanitarista e epidemiologista brasileiro Jarbas Barbosa.
Barbosa presidiu a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) entre 2015 e 2018 e atualmente é diretor-assistente da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), braço regional nas Américas da Organização Mundial da Saúde (OMS), agência especializada em saúde pública da Organização das Nações Unidas (ONU).
À BBC News Brasil, Barbosa diz que o fato de ser um vírus novo e desconhecido até há pouco tempo é motivo de preocupação, porque cientistas ainda não podem afirmar ao certo como ele continuará a se comportar após ter infectado seres humanos.
“Já vimos que os coronavírus têm uma capacidade de sofrer mutações rapidamente, porque, no intervalo de 16 anos, é o terceiro desta família de vírus que surge”, diz.
Mas Barbosa explica que, desde o início dos anos 2000, novos regulamentos sanitários internacionais foram colocados em prática, o que permite uma reação mais rápida e eficaz a surtos deste tipo — o que é vital, por ser considerado provável que mais epidemias causadas por novos vírus eclodam num futuro próximo.
Confirma a seguir os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil – Este coronavírus era desconhecido até dezembro passado. Desde então, o que descobrimos sobre ele?
Barbosa – Esse coronavírus é um novo membro de uma família muito grande de vírus, que já são conhecidos há muito tempo. Normalmente, são vírus que circulam em animais, mas, em algumas ocasiões, determinadas variedades saltam a barreira entre as espécies e infectam humanos. Já tivemos duas situações de surtos importantes com coronavírus no passado. Desde 31 de dezembro, quando este novo coronavírus foi comunicado pelo governo da China à OMS, estamos acompanhando de perto, porque se trata de uma nova variedade e é preciso olhar com atenção as informações que surgem.
Mas algumas características dele já estão bem estabelecidas. Primeiro, é possível haver transmissão entre pessoas. Segundo, esse vírus é capaz de produzir um espectro amplo de doenças, desde casos leves que se assemelham a um resfriado comum até casos mais graves em que há um quadro de pneumonia que pode levar à morte.
Terceiro, parece ser menos letal do que eram os vírus da Sars e da Mers. Para este esse novo vírus, estamos falando em 3% de letalidade enquanto que com os da Sars e Mers chegava a 30% ou mais. E quarto, pessoas de mais idade e quem têm doenças crônicas, como problemas cardiovasculares e diabetes, são mais vulneráveis a desenvolver formas mais graves de doenças.
BBC News Brasil – E o que não sabemos sobre ele ainda?
Barbosa – Precisamos ter mais informações sobre a real capacidade de transmissão. Para este vírus, com os dados que temos hoje, uma pessoa é capaz de infectar uma ou duas outras pessoas. Isso aponta para uma capacidade limitada de transmissão, quando comparamos com outros vírus que têm uma capacidade de dispersão muito maior como os de sarampo e alguns tipos de gripe.
Mas ainda é cedo para afirmar isso com segurança. Já há quem fale em capacidade de transmissão de duas a cinco pessoas. Mas são previsões com um intervalo de confiança alto. Inclusive, existe a hipótese de que transmissão possa ocorrer no período de incubação [entre o contágio e o surgimento dos primeiros sintomas], mas precisamos de mais tempo para estabelecer se isso é possível e o impacto disso em saúde pública, porque pode ser algo que ocorra apenas com uma minoria dos casos.
Só poderemos fazer afirmações a respeito disso com mais certeza após recebermos os dados que estão sendo coletados na China. Há centenas ou milhares de casos de contatos no país sendo monitorados, e, provavelmente, em duas ou três semanas vamos ter números mais confiáveis, porque, quando uma pessoa é infectada, ela pode levar de uma a duas semanas para apresentar sintomas. Esse rastreamento vai permitir estabelecer melhor a intensidade da transmissão desse novo vírus.
Vemos ter mais casos confirmados nos próximos dias? Com certeza. Mas isso não significa que são novos casos de contaminação, mas casos suspeitos em que houve resultado positivo nos exames. A capacidade de fazer testes é cada vez maior, porque há mais laboratórios e máquinas dedicadas a isso, e isso eleva o total de casos.
Também vai aumentar esse total porque a transmissão segue ocorrendo, e não há nenhuma evidência de que foi interrompida. Então, o número de casos vai crescer nos próximos dias, infelizmente. Mas não há como fazer uma previsão confiável neste momento de qual será a escala desse aumento.
BBC News Brasil – O que torna este coronavírus preocupante?
Barbosa – Como é um vírus novo e o surto ainda está muito no começo, temos que observar por mais tempo para ver se ele mantém o comportamento observado hoje. Nos últimos dias, por exemplo, a taxa de letalidade caiu, porque o número de casos aumentou muito, mas o número de mortes, apesar de ter crescido, não ocorreu na mesma proporção. Em uma doença como essa, no começo, vemos apenas os casos mais graves, que apresentaram sintomas e procuraram os serviços de saúde, por isso as estimativas são sempre provisórias em um estágio como esse.
Além disso, como esse vírus começou a circular em uma região muito povoada da China, há muito trânsito de pessoas de lá para outros países do mundo. Então, o risco de se ter casos importados em qualquer país do mundo é muito alto. Essas características chamam atenção e tornam necessário que os sistemas de saúde de países de todo o mundo estejam em alerta. No mundo globalizado de hoje, é possível que chegue em qualquer país do mundo algum viajante que veio de uma área onde há transmissão.
É importante estar alerta para detectar precocemente um caso e prevenir que se transmita para outras pessoas para evitar que haja surtos em outros países. Por enquanto essa transmissão ocorre apenas na China, em Wuhan, mas aparentemente já há transmissão em outras províncias. Temos uma comissão na China que está avaliando os dados e, uma vez confirmada a transmissão, todos os países do mundo serão informados ao mesmo tempo.
BBC News Brasil – Até o momento, a OMS não determinou esse surto como uma emergência global. Por quê? E o que é necessário para que seja configurada uma?
Barbosa – Pelo regulamento sanitário internacional, uma emergência internacional deve ser decreta só após ser ouvido um comitê de especialistas que faz uma recomendação para o diretor-geral. O comitê se reuniu duas vezes e concluiu que são necessárias mais informações que comprovem ser necessária uma coordenação internacional de esforços para conter o surto e que a China sozinha não teria condições de fazer isso. Foi reconhecido que há uma emergência de saúde pública na China.
Há também uma situação de risco no mundo inteiro, porque hoje temos um grande intercâmbio de pessoas por viagens internacionais. Mas o fato de não ter decretado a emergência global não significa que a OMS não esteja atuando em alerta máximo. Por se tratar de uma doença nova, que exige uma busca por novas informações diariamente, foi emitido um alerta para todos os países. Não é necessário esperar a formalidade de decretar uma emergência global para que estejam preparados para agir. O alerta está dado.
BBC News Brasil – O Brasil pode ser afetado por este surto?
Barbosa – Nenhum país está protegido de receber um viajante que tenha o vírus, inclusive o Brasil. Os países precisam estar preparados, prestando informações aos viajantes e alertando seus serviços públicos e também os privados, porque muitas vezes viajantes internacionais recorrem aos serviços privados. É importante que os países tenham capacidade de realizar os exames para confirmar ou descartar um caso e, ao detectar um, tomar as medidas de contenção para evitar que o vírus se propague e que um caso importado se torne o primeiro caso de transmissão local.
Mas, por enquanto, em todos os outros países, houve apenas casos importados, o que é uma boa notícia e um sinal de que os sistemas de vigilância estão alertas e atuando para fazer uma detecção precoce, que é chave para evitar que o vírus entre no país e provoque surtos.
BBC News Brasil – Enquanto alguns países decidiram fazer a triagem de passageiros, o governo brasileiro descartou essa medida por considerá-la ineficaz. O senhor concorda?
Barbosa – Todos os dados que acumulamos no mundo depois da Sars, da pandemia de influenza em 2009 e da Mers demonstram que a triagem em aeroportos consome muitos recursos materiais e tem uma eficácia baixíssima. Por exemplo, no caso da pandemia de 2009, estudos mostram que países que implantaram a triagem não tiveram nenhuma diferença em relação a outros países que não fizeram isso.
É claro que dar informações nos aeroportos é importante. Mas o Brasil, até onde eu saiba, não tem voo direto de Wuhan. É uma situação diferente de países que têm, como os Estados Unidos. Embora nenhuma triagem de aeroporto seja 100% eficaz. A pessoa pode passar pela triagem sem ter sintomas, porque o vírus ainda está em período de incubação (quando não apresenta sintomas). É muito mais eficaz os serviços de saúde estarem alertas.
BBC News Brasil – A China foi no passado recente o epicentro de epidemias de novos vírus. Por que estamos vendo mais uma vez a eclosão de um novo surto no país?
Barbosa – A China tem determinadas características que favorecem esse tipo de surto de vírus que circulam em animais e que ocasionalmente contaminam seres humanos. É um lugar densamente povoado e onde há hábitos culturais que levam a um grande contato de pessoas com animais vivos. Tanto que o que se considera que pode ter sido o epicentro do surto é um mercado onde há circulação, abate e venda de animais muito intensos. Então, em países com estas características, é mais provável que haja esse salto da barreira entre espécies.
Mas é importante lembrar que a pandemia de 2009 começou no México e que a de ebola também não teve nada a ver com a China. Precisamos ter cuidado para não caracterizar a China como a única fonte. Qualquer país pode ser fonte de uma nova doença.
BBC News Brasil – Em 2003, a China foi criticada por ter demorado a informar a real gravidade da epidemia de Sars. Como o senhor avalia a reação do país desta vez?
Barbosa – Até aqui, a China tem colaborado com a OMS. Notificou os casos, disponibilizou logo no começo de janeiro o sequenciamento genético do vírus, o que possibilita que vários países possam imediatamente fazer o diagnóstico para confirmar ou descartar casos. A China também recebeu uma comissão de técnicos da OMS, que está em Wuhan e em outras cidades para coletar novas informações e evidências.
Mas não é muito apropriado comparar aquela situação com o que ocorre agora porque foi aprovado em 2005 um novo regulamento sanitário internacional. Até então, um país não era obrigado a informar quando detectava uma doença nova. Havia uma lista muito curta de doenças, como peste, cólera, varíola, em que a notificação era obrigatória. Depois disso, qualquer nova enfermidade que possa ser uma ameaça e se disseminar globalmente deve ser notificada. As regras do jogo mudaram.
BBC News Brasil – Existem muitos vírus ainda desconhecidos?
Barbosa – Ah, sim, infelizmente temos, porque há vírus que têm a capacidade de ter pequenas mutações e criar ramos com características diferentes. Por isso, em locais onde há mercados com presenças de animais, é preciso ter um cuidado especial e tratar a possibilidade de transmissão de doenças entre animais e humanos de uma forma mais abrangente. Neste caso, é um vírus novo. Ele provavelmente surgiu no ano passado, ele já existia e deve ter produzido poucos casos e casos leves em uma região distante e que ninguém percebeu.
BBC News Brasil – O que podemos esperar desta epidemia nos próximos meses?
Barbosa – Nossa expectativa é que as medidas extraordinárias e inusitadas que a China tem tomado sejam capazes de controlar esse surto na fonte. O país está fazendo um esforço tremendo de mapeamento de contatos, fechou o mercado em Wuhan. A China praticamente colocou em quarentena uma região que tem perto de 40 milhões de habitantes. É uma medida que está sendo tomada pela primeira vez na história. Nunca se fez isso no mundo nesta escala. Nunca vimos uma cidade inteira em quarentena como agora. Mas precisamos ser prudentes, porque se trata de uma situação nova. Temos que vez se essas ações serão eficazes para conter ou cessar a transmissão e se serão sustentáveis ao longo do tempo.
BBC News Brasil – É possível prever quanto tempo este surto vai durar?
Barbosa – Não, é completamente impossível fazer qualquer previsão agora.
BBC News Brasil – Veremos a eclosão de novas epidemias num futuro próximo?
Barbosa – Possivelmente, sim. Não é algo que acontece todo dia, mas, quando olhamos para os últimos 30, 40 anos, vemos que há a possibilidade de que isso ocorra mais para frente. Os vírus vão continuar a existir. Novos vírus de influenza aparecem todos os anos, porque têm a característica de sofrer mutações muito rápido — e também já vimos que os coronavírus também têm, porque, no intervalo de 16 anos, é o terceiro desta família de vírus que surge. Então, é possível que isso ocorra de novo daqui a um ano, 10 anos ou 50 anos, é impossível prever exatamente quando. E não há nenhuma medida que possa eliminar essa possibilidade.
BBC News Brasil – Estamos preparados para combatê-las?
Barbosa – Creio que o mundo está muito melhor preparado do que no passado. Aprendemos muito com os surtos anteriores, mudamos o regulamento sanitário internacional, os países fortaleceram suas capacidades de vigilância epidemiológica e de diagnóstico laboratorial. Mas é preciso nos manter alerta e fazer revisões dos planos nacionais de emergências de saúde pública para que, quando ocorra uma emergência real, tudo esteja pronto para ser colocado em prática de forma eficiente.