Assassinatos de pessoas trans cresce 66% em SP

Todos os posts, Últimas notícias

Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

O número de assassinatos de pessoas trans saltou de 14 para 51, um aumento de 66,7% de 2018 para 2019, no estado de São Paulo. O índice nacional teve redução de 24%: foram 163 casos de pessoas trans mortas em todo no Brasil em 2018 e 124 no ano passado.

Os dados são do Dossiê Trans, uma pesquisa organizada pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) e pelo IBTE (Instituto Brasileiro Trans de Educação), assinada pelas pesquisadoras Bruna Benevides e Sayonara Nogueira.

Diante disso, pelo 11º ano consecutivo, o Brasil lidera o ranking mundial de país que mais mata transexuais e travestis no mundo. Para se ter uma ideia, em 2019, o México, segundo colocado no ranking, registrou 63 casos, seguido pelos Estados Unidos com 30.

O dossiê também traça um perfil das vítimas: jovens negras de 15 a 29 anos, que reivindicam ou expressam o gênero feminino (mulheres trans e travestis) e que tem como fonte de renda a prostituição. Mortes por arma de fogo totalizam 43 assassinatos em 2019, seguido por 28 assassinatos com uso de faca.

Em entrevista à Ponte, a pesquisadora Bruna Benevides, 40 anos, que é militar da Marinha e secretária de comunicação da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos), não podemos comemorar a diminuição dos assassinatos em 2019, pois eles não representam mudanças.

“É importante observar que 2017 foi um ano fora da curva. Na história do Brasil foi o ano com mais números de assassinatos, então não pode ser o parâmetro. Para nós, que lutamos para a queda real da violência, o parâmetro é o ano que teve menos números e não o que teve mais. A média anual é de 118 assassinatos”, explica Benevides.

Bruna também cobra uma análise do governo sobre os assassinatos da população LGBT. Ela argumenta que políticas públicas só são feitas se há dados que as justifiquem. “Estimamos que seja pelo menos o dobro de números de assassinatos se os dados fossem levantados por esferas governamentais”.

“A partir disso entendemos que a omissão do estado frente ao levantamento de dados, de certa forma, se torna muito confortável, porque, se ele não levanta os dados, se ele não reconhece essa violência que é específica, ele não tem que tomar ações específicas”, aponta Benevides.

Para a pesquisadora, o dado mais importante do dossiê é o perfil das vítimas, pois, a partir dele, é possível pensar em políticas públicas que protejam essa população. “A questão da violência não pode ser tratada apenas com medidas que enfrentem as consequências, tem que enfrentar as causas e de forma preventiva, alinhada a campos que não só o da segurança pública”.

“Elas morrem trabalhando nas ruas, não por ser uma atividade perigosa, mas por que não conseguimos que elas desenvolvam a sua atividade profissional sem sofrer violência. Mesmo uma menina trans que está trabalhando em um emprego formal, muito provavelmente ela vai passar por outros processos de violência, simbólicos e psicológicos”, argumenta Bruna.

Benevides chama a atenção para o paradoxo de São Paulo, estado que mais acolhe as lutas LGBTs, em determinados momentos do ano, como a semana da Parada da Diversidade, que reúne milhões de turistas e move a economia da capital paulista, e é, ao mesmo tempo, o local em que pessoas LGBTs mais são assassinadas.

“É extremamente assustador. Porque, embora seja um local que é friendly em alguns períodos do ano, é um local com índices populacionais muito altos e que sofre processo de sucateamento das políticas públicas. Esse aumento é decorrente da falta de ações e, óbvio, a eleição de governos que tem um viés antidemocrático e autoritário”, critica.

Além de trazer dados sobre os assassinatos da população trans, a 3ª edição do Dossiê Trans também chama atenção para outro tipo de assassinato: o social. Essa é a expressão usada na pesquisa para falar da falta de acesso à educação, saúde, emprego, uso do banheiro e respeito ao nome social.

“Nós, ativistas, dizemos que qualquer pessoa trans no Brasil já nasce morta pela dificuldade de acesso a qualquer tipo de política pública. As nossas lutas ainda são muito primárias. Somente em 2018 tivemos a garantia do direito ao nome. Se fizermos uma analogia com o restante da população, direito ao nome é o primeiro direito que qualquer cidadão recebe depois do direito à vida”, explica Bruna Benevides, pesquisadora do Dossiê.

Os discursos do governo federal, como a fala de Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, que meninos deveriam vestir azul e meninas, rosa, afirma a pesquisadora, auxiliam para que os assassinatos sociais de pessoas trans continuem.

“Se formos analisar, quando o espantalho da ideologia de gênero é amplamente difundido neste governo, ele se torna uma bandeira de luta contra a existência das pessoas trans. A ministra não está falando de cores, ela está falando de meninos que vestem rosa e meninas que vestem azul que não podem conviver pacificamente, já que não existem campanhas, por exemplo, para enfrentar o bullying LGBTfóbico nas escolas”, critica Benevides.

Discursos como esses, para Bruna, são responsáveis pela falta de discussão dentro das casas, que é responsável pela expulsão de crianças e adolescentes transexuais e travestis. “Quando os pais se deparam com a possibilidade de ter um filho trans, muitas vezes a reação é expulsar de casa. A expulsão acontece, em média, aos 13 anos e é aos 13 que as pessoas começam na prostituição. É um ciclo de violência que vai se somando ao longo da existência, da sobrevivência e na tentativa de resistência dessa pessoa”, explica.

Outro ponto destacado no Dossiê é o tratamento que a mídia dá aos casos de assassinatos de pessoas trans. Segundo a pesquisa, em 2019, 29% dos casos notificados não respeitaram a identidade de gênero das vítimas e 91% dos casos expuseram seu nome de registro.

Para Benevides, não respeitar a identidade de gênero e o nome social de pessoas mortas é cometer um duplo assassinato. “Assim se apaga a história e a própria existência daquela pessoa. É um processo violento que a mídia precisa rever. A exposição do nome de registro é extremamente desnecessária, pois, quem deveria ter o nome exposto, são os assassinos. Mas não vemos a mesma proporção”, pontua.

“Ficamos preocupadas, porque expor o nome de registro de uma pessoa corrobora para um processo de violência e naturalização de uma identidade que não reflete de fato o que essa pessoa é”, finaliza.

Ponte