Argentina flerta com o desastre
A América Latina vai se recuperando dos tremores da crise econômica internacional de 2008/2009. Por estar afastada do epicentro da crise, originário no mundo rico, a região já chega ao ritmo econômico pré-crise. Mas nem tudo são flores, como se verá adiante.
Na semana passada, estive na Argentina a negócios e pude constatar que o Brasil não é o único, nesta parte do mundo, que experimenta uma explosão econômica. O país vizinho está com a economia impressionantemente aquecida.
Apesar das diferenças macroeconômicas entre os dois países, vale a pena uma reflexão que explique as medidas do governo Lula de contenção do consumo, obviamente adotadas agora para poupar Dilma de ter que tomar medidas impopulares logo no início de seu governo.
Justiça seja feita, a grande imprensa antecipou, logo após a eleição, que tais medidas sobreviriam.
Foram tomadas medidas de contenção da expansão do crédito no Brasil, tais como imposição de entrada nos financiamentos de automóveis e aumento do recolhimento compulsório dos depósitos à vista nos bancos.
Apesar de não enxergar com bons olhos a ortodoxia macroeconômica, não posso deixar de reconhecer que as medidas fazem sentido justamente por ter visto, in loco, o que está ocorrendo na Argentina.
Há uma mistura explosiva sendo cozinhada naquele país. Os ingredientes dessa mistura são:
1 – Eleição presidencial em 2011
2 – Demanda aquecida
3 – Oferta expressiva de crédito
4 – Inflação fora de controle e manipulação dos índices oficiais
5 – Manipulação do preço do dólar
Cada um desses tópicos, separadamente, é sinônimo de problemas. Juntos, podem produzir outra hecatombe econômica em um país tão castigado na década que vai chegando ao fim. Analisemos, pois, o conteúdo de cada um e, ao fim, a receita de que fazem parte.
Eleição presidencial
À diferença do governo brasileiro, o argentino não hesita em enfrentar a direita midiática. Ano que vem, haverá uma guerra eleitoral no país vizinho que fará a eleição deste ano no Brasil parecer um chá entre velhinhas. Nesse processo, a beligerante Cristina Fernández de Kirchner, a quem a morte do marido gerou dividendos eleitorais, deve utilizar qualquer arma que julgue necessária para derrotar os adversários, sobretudo o grupo Clarín.
Demanda aquecida
O estímulo ao consumo que o governo argentino vem dando tem claro viés eleitoral e, diferentemente do que acontece no Brasil, tem alicerces de barro. A situação do país não permitiria o nível de consumo que vi. O comércio e a indústria estão lavando a égua. O povo está comprando automóveis como louco, por exemplo. Eu mesmo, de forma surpreendente, vendi como nunca por lá.
Oferta expressiva de crédito
Juros baixos, política salarial generosa, programas sociais, tudo isso está organizando, para 2011, uma festa consumista ainda maior do que a que vi neste ano. Uma festa que os convivas esperam pagar em suaves e longas prestações.
Inflação fora de controle e manipulação dos índices oficiais
Tive que pedir dinheiro emprestado a um cliente para arcar com os custos da viagem. Táxi, hotel, alimentação, tudo isso custou muito mais caro do que previ baseado na viagem que fiz àquele país no fim do ano passado. A diária do mesmo hotel pulou de 60 para 90 dólares, as refeições, de 30 para 50 pesos (em média), e as corridas de táxi, de 30 dólares ao dia, pularam para uns 80, no mínimo. Os índices oficiais dizem que a inflação foi de 8% no período.
Manipulação do preço do dólar
O dólar, diante desse quadro, deveria ter se valorizado. Contudo, continua praticamente na mesma cotação do ano passado. Como a desvalorização do peso está sendo contida, pois a moeda perdeu 75% do valor na década que se encerra, os preços estão subindo em dólares.
Política à parte, portanto, não posso deixar de dizer que fiquei assustado com o que vi. Até porque, fui vítima da hecatombe argentina de 2001 – perdi qualquer quantidade de dinheiro naquela crise, o que me abala a vida financeira até hoje.
A vida do povo argentino melhorou sob a dinastia Kirchner? Seguramente que sim. Os governos de Néstor e de Cristina Kirchner solucionaram os problemas de fundo do país herdados da crise de 2001? Definitivamente não.
Néstor Kirchner impôs aos credores internacionais uma recompra da dívida externa por cerca de um terço do valor de face e isso deu fôlego à economia. Sempre digo que ele chegou ao poder para fazer o que o povo queria, ou seja, dizer à comunidade internacional que o país não aceitaria mais sacrifícios e para transferir a ela o problema.
Com a guerra política e o decorrente assédio da direita midiática se o governo argentino adotasse medidas de austeridade, não se sustentaria. O interesse político desse governo, portanto, é o que está governando a Argentina.
No médio prazo, até por força do calote em anos anteriores, será possível organizar a festa que presenciei na semana passada. Mas quanto tempo irá demorar até que a conta seja apresentada ao povo?
A situação do Brasil é muito diferente. Estamos montados em cerca de três centenas de bilhões de dólares de reservas, o nível de investimento sustenta o nível de crescimento e o Banco Central não hesitou em subir os juros em pleno ano eleitoral.
A gestão da economia brasileira é responsável.
Ainda assim, nosso país experimentará um crescimento econômico “chinês”, neste ano – cerca de 8%. São bem vindas, pois, as medidas de contenção do consumo. Apesar de impopulares, ainda não há capacidade instalada na indústria brasileira para fazer frente ao nível de demanda atual.
Já há escassez de mão-de-obra no mercado brasileiro, o que significa salários maiores e, conseqüentemente, maior incentivo ao consumo. Devido à solidez dos fundamentos macroeconômicos do Brasil, entretanto, não corremos riscos. E a responsabilidade do governo Lula é um fator de tranqüilidade.
Infelizmente, os argentinos estão indo por outro caminho e isso preocupa.
Outra crise na Argentina criaria um péssimo ambiente econômico na América Latina. Ainda que tenhamos esse colchão de reservas e fundamentos econômicos sólidos, é bom colocarmos as barbas de molho. A Argentina está flertando com o desastre. De novo.