Judiciário brasileiro quase não tem magistradas negras
Mulheres negras são mais que minoria no Judiciário brasileiro. Elas são a menor parcela dentro de dois grupos minoritários: o das mulheres e o das pessoas pretas e pardas. Elas são a minoria da minoria.
Em alguns espaços do Judiciário, nem isso. O STF (Supremo Tribunal Federal), criado em 1891 como órgão máximo da Justiça nacional, teve 3 ministros negros em toda a sua história. Também teve 3 ministras, das quais 2 integram a corte atualmente. Mas nunca teve uma mulher negra em sua composição.
O tema ganha destaque porque o presidente dos EUA, Joe Biden, reafirmou recentemente sua promessa de indicar a primeira mulher negra para a Suprema Corte de seu país. De acordo com ele, já passou muito tempo sem que o tribunal tivesse alguém com esse perfil.
Karen Luise Souza Pinheiro, 52, única mulher negra entre juízes e juízas de Porto Alegre, lembra que, no Brasil, a questão entrou em pauta em governos anteriores, quando se abriram vagas no STF. “Mas, nos últimos tempos, embora existam bandeiras levantadas nesse sentido, parece que essa discussão se enfraqueceu bastante”, diz.
Titular da 1ª Vara do Júri de Porto Alegre, ela diz ser evidente a necessidade de problematizar a ausência de representatividade nos tribunais superiores. Segundo um estudo de 2021 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), há registro de apenas 1 mulher negra num total de 88 ministros e ministras dessas cortes.
“[Temos no Brasil] uma construção de política judiciária, de gestão e de jurisdição propriamente dita a partir de um olhar de homens brancos, na sua maioria”, afirma.
“Uma mulher negra no poder é sempre uma esperança de igualdade de gênero e raça. Uma mulher negra no STF, com representatividade crítica e argumentativa, será propulsora de igualdade racial”, diz Karen.
A desigualdade é grande no Judiciário. Numa sociedade com equilíbrio racial, a proporção de homens e mulheres na Justiça seria parecida com a proporção de homens e mulheres na população como um todo. A mesma coisa aconteceria com pessoas brancas e negras.
No caso do Brasil, isso significaria que, entre todos os magistrados, haveria um pouco mais de mulheres do que homens e um pouco mais de pessoas negras do que brancas.
De acordo com outra pesquisa do CNJ, a realidade é bem outra. Uma pesquisa sobre o perfil sociodemográfico dos magistrados brasileiros publicada em 2018 mostra que as mulheres são 38%, e os negros, 18%.
Na intersecção desses dois grupos, as mulheres negras são 7% do total de magistrados. Se houvesse alguma correspondência com seu peso populacional, essa fatia saltaria para perto de 29%.
Os dados do CNJ também indicam que a proporção de mulheres negras é ainda menor na segunda instância. Entre desembargadores e desembargadoras, responsáveis por julgar a maioria dos recursos judiciais, elas são apenas 2%.
As explicações para essa discrepância remontam ao legado da escravidão e passam por fatores como a falta de acesso à educação (que afeta negros mais do que brancos) e a jornada extra do trabalho doméstico (que afeta mais as mulheres do que os homens).
Nos tribunais superiores, porém, esses fatores não entram em jogo, porque as vagas são ocupadas por meio de indicação da Presidência da República.
“Aí existe um histórico de racismo que não [permite] ver mulheres negras como sujeitos de direito capazes de estarem nesses lugares. Embora sejam um espelho de parcela substancial da nossa sociedade, elas não são vistas como uma possibilidade de serem a Justiça encarnada”, afirma Karen.
O problema não está apenas nos tribunais. A juíza Adriana Cruz, 51, titular da 5ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, diz que o Judiciário reflete uma realidade presente em todos os segmentos da sociedade brasileira.
“Se for olhar o setor privado, a gente vai encontrar o mesmo desenho. Há uma ausência de mulheres negras em espaços de decisão, em espaços de poder, e uma sobrerrepresentação nos estratos mais baixos das carreiras.”
Quando se trata da Justiça, porém, essa desigualdade tem efeitos potencializados. “Como a gente pode pensar num espaço de poder que decide sobre a vida das pessoas em que as pessoas não estão ali?”
Ela faz um paralelo com órgãos internacionais, que têm sua legitimidade garantida pela participação dos países-membros.
“Ninguém concebe que o Tribunal Penal Internacional seja composto por juízes de um único país”, afirma. “Então por que a gente não consegue enxergar a mesma racionalidade em relação aos espaços de deliberação de conflitos internos?”
De acordo com ela, não se trata apenas de uma questão de representatividade. Trata-se também da capacidade de o Judiciário entender melhor os problemas de uma sociedade complexa como a brasileira.
“As instituições são mais pobres e mais ineficientes quando são monocromáticas, quando são monoculares, quando as pessoas que [as compõem] só saem de um determinado estrato social, com vivências muito parecidas”, afirma.
Adriana lembra que todos os indicadores mostram a população negra com os piores acessos a serviços públicos como saneamento, saúde e educação, além de menor inserção no mercado de trabalho e maior participação nas estatísticas criminais.
“Como os espaços que vão decidir esses conflitos não estão acessíveis a esse grupo?”, questiona Adriana.
Duas mulheres negras posam para a foto; uma delas passa o braço por trás da outra, num abraço
As juízas Adriana Cruz (esq.) e Karen Luise Souza Pinheiro durante Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros de 2018 – Divulgação
Ela não está exagerando. De acordo com Karen, juíza em Porto Alegre, em todas as capitais brasileiras, há apenas duas mulheres negras titulares de varas especializadas em crime: ela e Adriana.
Há alguns anos, as duas integram um coletivo que promove reuniões para debater a questão racial nos tribunais, o Enajun (Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros). Mas elas esbarram num obstáculo inicial, que é a falta de dados completos.
No levantamento de 2021, o CNJ afirma: “A falta de informações sobre raça/cor de magistrados(as), servidores(as) e estagiários(as) nos tribunais brasileiros foi tão significativa que se constituiu em um dos maiores achados de pesquisa”.
O conselho encontrou informações sobre 68% dos magistrados, percentual pouco superior ao do estudo de 2018, que, com outra metodologia, teve índice de resposta de 62,5%.
Outra dificuldade é a lentidão. Segundo a dissertação “Onde estão os (as) juízes (as) negros (as) no Brasil?”, de Adriana Avelar Alves, as mulheres (brancas e negras) eram 2,3% dos magistrados no final dos anos 1960, passaram para 8% na década seguinte, chegaram a 22% nos anos 2000 e atingiram 38% em 2018.
Em relação aos negros, porém, a caminhada é ainda mais longa. O CNJ, ao avaliar a atual política de cotas no Judiciário, projetou esse segmento corresponderia a pelo menos 22% de todos os tribunais somente dentro de três décadas.
Segundo a juíza Karen, um longo histórico de lutas permitiu que questões de gênero sejam discutidas abertamente dentro do Judiciário. Mas ela diz: “Discutir questões de raça ainda é um tabu. Por que a questão de gênero hoje já pode ser discutida e a questão de raça não pode? Por que isso não é considerado ainda algo relevante?”
E, de novo, na intersecção entre os dois temas estão as mulheres negras.
Folha de SP