Direitos Humanos para quem precisa
“Há 2.500 Sakinehs no Brasil”, disse Mahmoud Ahmadinejad, presidente do Irã, sobre o voto deste país na ONU favorável ao envio de inspetor àquele país para apurar violações de direitos humanos. Sakineh, caso alguém não saiba, é a iraniana acusada de assassinato do marido e condenada à morte. Tornou-se símbolo da campanha internacional que os Estados Unidos desencadearam em sua guerra política contra o país do Oriente Médio.
Nada contra investigarem direitos humanos no Irã. Investigação não é condenação. E, quando um estado é acusado de promover torturas, sejam de criminosos ou de presos de consciência, a investigação se torna imperativa.
Que se investigue, pois, se o estado iraniano promove tortura. Acredito até que aconteça, pois castigos desumanos são comuns em muitos países, entre os quais os Estados Unidos, que não usam (?) a tortura em seu sistema prisional comum, mas usam em suas bases militares espalhadas pelo mundo, como em Guantánamo, em Cuba, ou em Abu Ghraib, no Iraque.
O que torna incompreensível a investida da ONU contra o Irã, porém, não é a mera determinação de envio de inspetor para apurar violações de direitos humanos naquele país, mas a omissão da Organização em relação a ditaduras no Oriente Médio que possuem máquinas estatais de continuada violação de direitos humanos, tais como a Arábia Saudita, o maior fornecedor de petróleo dos Estados Unidos.
A monarquia saudita dispõe de polícia especial que persegue muçulmanos moderados e cristãos. Por essa razão, a Arábia Saudita é tida como o segundo país mais intolerante em matéria de liberdade religiosa.
No Ocidente, devido ao desinteresse da mídia por ditaduras amigas dos Estados Unidos, poucos ouviram falar na Muttawa, a polícia religiosa da Arábia Saudita responsável por inúmeros casos de violações de direitos humanos.
Um dos casos mais conhecidos é de 2005. John Thomas, um indiano de 37 anos, foi detido no trabalho e levado para casa, onde foi torturado diante do filho de cinco anos. A acusação: prática de proselitismo religioso, pois praticar religiões não-oficiais, na Arábia Saudita, é considerado ato “subversivo” e “perigoso”.
Não há nenhuma novidade nestas informações. Estão amplamente disponíveis na internet e ninguém as nega. O próprio estado saudita admite a tortura e as violações de direitos humanos como prática endossada pela monarquia que governa o país com mão de ferro, e que, por suas boas relações com os Estados Unidos, é poupada pela mídia mundial, que prefere expor casos iranianos de violações muito menos claros do que os sauditas.
Ao perguntar aos gritalhões contra o Irã por que a ONU e a mídia ignoram tantas ditaduras aliadas dos EUA no Oriente Médio e em toda parte, porém, só se obterá evasivas. Simplesmente porque não há resposta que os que comemoram o envio de relator de direitos humanos ao Irã, mas não dizem um A contra a Arábia Saudita, possam dar sem reconhecer que o discurso pungente pró direitos humanos que entoam é produto da mais deslavada hipocrisia.
Aliás, em se tratando de direitos humanos, o Brasil não tem lições a dar a ninguém simplesmente porque o Estado brasileiro usa a tortura inclusive em suas dependências.
As torturas mais comuns, no Brasil, são de espancamento, mas passam por instrumentos como pau-de-arara, afogamentos, choques elétricos, chegando até a assassinato. Os que praticam tais atos são policiais civis e militares, agentes penitenciários e até delegados de polícia. As vítimas vão desde meros suspeitos de delitos até detentos, e os castigos que sofrem visam obter informações, confissões ou castigar. E ocorrem em delegacias, unidades prisionais e até na via pública.
Os responsáveis mais altos por tais práticas são os governadores de Estado, que comandam as polícias militares e que fazem de conta que não vêem as barbaridades que se pratica, e que permitem que as prisões brasileiras constituam-se em masmorras medievais, tais como as definiu recentemente um ministro da Suprema Corte de Justiça deste país.
Ou seja: o Estado brasileiro viola direitos humanos tanto quanto o iraniano, o cubano, o americano, o saudita ou qualquer outro.
A questão da tortura no Brasil, aliás, vem sendo regularmente acompanhada por organizações de direitos humanos nacionais e internacionais, mas o documento mais revelador foi o relatório apresentado no início da década passada por um Relator Especial da ONU que veio investigar os direitos humanos em nosso país, o inglês Sir Nigel Rodley.
O relator da ONU esteve no Brasil entre agosto e setembro de 2000. Durante sua missão, visitou o Distrito Federal, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco e Pará. Em todas as cidades, à exceção de Brasília, visitou carceragens policiais, centros de detenção pré-julgamento e centros de detenção de menores infratores, além de penitenciárias.
As visitas aos estabelecimentos policiais, prisionais e de internação de menores eram sem prévia comunicação, sem monitoramento por parte do governo ou dos funcionários da prisão e sem restrições quanto a unidades e ambientes a serem visitados.
O Relatório elaborado por Sir Nigel Rodley foi apresentado em abril de 2001 à Comissão de Direitos Humanos da ONU. Tem mais de duzentas páginas, com 368 casos individuais. Vale reproduzir alguns de seus trechos.
“O Relator Especial visitou várias delegacias de polícia. Em todas elas, a superlotação era o principal problema. Em todas as delegacias visitadas, os detentos eram mantidos em condições subumanas, em celas muito sujas e com forte mau cheiro, sem iluminação e ventilação apropriadas. O ar estava completamente saturado na maioria das celas. Os detentos tinham de compartilhar colchões de espessura fina ou dormir no piso de concreto descoberto e, muitas vezes, dormir por turnos de revezamento, devido à falta de espaço”.
(…)
Em todas as carceragens das delegacias de polícia o Relator Especial recebeu os mesmos testemunhos dos detentos, dando conta de espancamentos com pedaços ou barras de ferro e de madeira ou “telefone”, particularmente durante sessões de interrogatório, com a finalidade de se extraírem confissões, após tentativas de fuga ou rebeliões e com o propósito de se manter a calma e a ordem”
De 2000 para cá, alguém tem coragem de dizer que essa situação mudou de forma significativa no país? Mais de uma década se passou e o Estado brasileiro continua violando os direitos humanos no melhor estilo saudita ou iraniano, ao gosto do freguês. E o trecho final do relatório em questão explica por que há tantas violações de direitos humanos no Brasil, violações que atingem desde bandidos notórios a meros suspeitos, sob as barbas omissas da mesma mídia que critica o Irã:
“Existe uma inquietação pública generalizada acerca do nível de criminalidade comum, o que gera um senso de insegurança pública amplamente difundido, que, por sua vez, resulta em demandas por uma reação oficial draconiana, às vezes sem restrição legal. Tem havido uma prática, por parte de alguns políticos e partidos políticos, de explorar esse medo para fins eleitorais”.