Crítica a “ideologia de gênero” abre espaço para atacar grupos sociais
O cientista político Javier Corrales, do Amherst College, em Massachusetts, lançou há quase uma década Dragon in the Tropics (Dragão nos Trópicos), um livro que mostrava como Hugo Chávez estava, pouco a pouco, afrouxando o sistemas de pesos e contrapesos da democracia assim como Vladimir Putin fazia na Rússia. De lá para cá, o fenômeno que ele chamava de regimes híbridos ou “democracias iliberais” só cresceu. No ano passado, o professor lançou um segundo livro, Fixing Democracy (Oxford Press, 2018), sobre as reformas constitucionais na América Latina nos últimos anos e seus impactos.
O professor, que também estuda a mobilização por direitos LGBT na América Latina, diz que a retórica usada pelo novo Governo brasileiro contra a “ideologia de gênero”, um termo pejorativo para iniciativas de promoção da diversidade sexual e de gênero, não deve ser minimizada. “Quando se critica a ‘ideologia de gênero’, se declara um grupo nacional como inimigo”.
Pergunta. O senhor e outros acadêmicos já apontaram semelhanças entre Chávez e Bolsonaro, especialmente a maneira como chegaram ao poder e os discursos de “a minoria deve ser curvar à maioria”. Vê um novo dragão nos trópicos, com vontade de afrouxar pesos e contrapesos?
Resposta. Existem muitas diferenças, sem dúvida, mas há muitas semelhanças. Comecemos com as semelhanças. A semelhança principal é que são movimentos que não colocam a democracia liberal como prioridade. Democracia liberal significa respeito aos freios e contrapesos que são responsabilidade do poder executivo e respeito à oposição. Bolsonaro e Chávez não acham que o propósito de seus mandatos é fortalecer a democracia liberal. Acham que seus mandatos são para agradar seus seguidores e castigar e ignorar seus opositores. Outra semelhança é uma agressividade aberta contra o status quo, contra tudo o que foi feito no passado, e vontade de refundar o sistema político. Isso os leva a ser mais impacientes com a questão da reforma e a querer se impor. Existe também um desejo de romantizar o papel das Forças Armadas. Chávez desde o começo falou de uma aliança cívico-militar. Foi horrível ver a esquerda da Venezuela e da América Latina ser tão tolerante com a mensagem tão militaróide de Chávez. Para Bolsonaro, a aliança cívico-militar proposta terá propósitos diferentes (combater a criminalidade, enquanto para Chávez era impulsionar e melhorar a prestação de serviços por parte do Estado), mas na hora da verdade, eram movimentos alinhados às forças de segurança. Por último, os dois movimentos enfatizam muito a luta contra a corrupção. Colocam a culpa pela corrupção na ideologia e nos partidos anteriores, e não à falta de freios e contrapesos. Ou seja, para Chávez, a corrupção da Venezuela era produto do neoliberalismo, que em si, era produto de partidos em decadência. Para Bolsonaro, a corrupção é produto do esquerdismo, e certamente do PT em decadência. A solução, portanto, é exterminar essas ideologias / partidos. Não é criar sistemas de freios e contrapesos ao executivo.
P. E as diferenças?
R. A primeira é que Bolsonaro procura melhor relação com os EUA. Isso irá fortalecê-lo. Bolsonaro também tem uma equipe econômica melhor do que a de Chávez, apesar de existirem divisões internas. Bolsonaro tem mais apoio dos evangélicos, que são mais fortes no Brasil do que eram na Venezuela há 20 anos. Essas são as diferenças que ajudarão Bolsonaro. As diferenças que irão enfraquecer Bolsonaro estão relacionadas às instituições, que não estão desprestigiadas no Brasil como eram na Venezuela em 1999, após duas décadas de crises econômicas profundas. A outra diferença é que a oposição a Chávez praticamente acabou na eleição presidencial de 1998 e durante o período da assembleia constituinte de 1999 na Venezuela. Ela se fragmentou demais e muitos aderiram ao chavismo. No Brasil, Bolsonaro tem uma oposição forte. O PT perdeu as eleições, mas não acabou. Há um melhor entendimento no Brasil hoje dos perigos de se perder a democracia liberal do que existia na Venezuela em 1999, quando as pessoas pensavam que a democracia participativa era melhor do que a liberal. Por fim, Bolsonaro nunca terá uma mina de ouro, como é a indústria do petróleo na Venezuela, em poder do Estado e que foi transformada por Chávez em seu talão de cheques pessoal.
P. O senhor diz que essa aliança entre evangélicos e partidos de direita é um “casamento perfeito” não só no Brasil e está revolucionando a balança da política na região, por dar à direita um caminho para acessar os eleitores mais pobres. O que é o “modelo brasileiro” e por que é tão bem-sucedido?
R. Porque no Brasil os evangélicos fazem tudo o que se espera das ONGs mais bem-sucedidas e muito mais. Têm presença em todos os setores da sociedade, de pobres a ricos, brancos e não brancos, urbanos e não urbanos. Prestam serviços sociais aos seus fiéis, com os quais recebem muitos agradecimentos por parte deles. Predicam sua mensagem semanal, e quase sem ser criticados dentro de seus âmbitos de discussão – não há pluralismo interno. Mobilizam enormes recursos econômicos quase sem prestar contas. Eles se uniram em relação a várias questões fundamentais: sexualidade, criminalidade, o que lhes dá força política. Têm presença nas redes sociais e na imprensa. Além disso, têm presença no Congresso, que é muito mais do que conquistaram os evangélicos no restante da América do Sul.
P. Qual o papel dos católicos e do papa Francisco nisso?
R. O Brasil tem uma tradição de católicos progressistas, que agora precisa coexistir com o renascer de um catolicismo mais conservador, mais evangélico, menos tolerante com a diversidade. Acho que o Governo de Bolsonaro dividirá os católicos mais do que qualquer outra religião.
P. Existem sinais de que o novo Governo irá explorar mensagens religiosas de maneira muito central. Essa cruzada tem potencial para afetar os direitos já conquistados da comunidade LGBT e das mulheres?
R. Acho que sim. Por todos os lados vemos mensagens contra a “ideologia de gênero”. É preciso ser claro. Quando se critica a “ideologia de gênero”, se declara um grupo nacional como inimigo: aquele que representa e defende a diversidade de gênero e sexual. Para mim, criticar a “ideologia de gênero” ocupa o mesmo lugar que a questão dos “imigrantes ilegais” de Trump. Dá permissão ao Estado para atacar esse grupo. Virá um ataque no Brasil contra feministas e grupos pró LGBT, que será um ataque defendido por setores religiosos.
P. Antes de ser uma questão mainstream, o senhor estudou os “regimes híbridos”, como os de Chávez e Putin. De seu livro para cá, o fenômeno só cresceu. De onde vem essa onda “iliberal”? Existem fatores que os unem atravessando territórios e espectros ideológicos?
R. Acho que a questão se espalhou por duas razões: primeiro, a maneira como os regimes híbridos crescem. Esses governos não suspendem a democracia liberal de uma vez, o que seria escandaloso em todos os lugares. Eles o fazem, como diz a canção, despacito (devagarzinho). E além disso, o fazem com medidas complementares, como gostam, e que alguns chamam de participativas. Ou seja, tiram e põem simultaneamente. Chávez concentrava poder, mas gastava em programas sociais. Muita gente, portanto, não vê claramente a gravidade do assunto da erosão do sistema de freios e contrapeso no começo. É um pouco como a velhice. As pessoas não se dão conta do que acontece enquanto está acontecendo.
Outra razão é que os regimes iliberais geram polarização, e essa polarização no final acaba ajudando o poder executivo. No começo, a polarização enfraquece esses regimes, mas depois os ajuda. E essa é a explicação. Os partidos da oposição se tornam aborrecidos. A única coisa que fazem é criticar, criticar e criticar. O que é necessário. Mas as pessoas se cansam de tanta crítica. Além disso, começam a se dividir entre quanto criticar, o que criticar e, certamente, sobre o que fazer. Vemos então que nos regimes híbridos há um ponto em que a oposição, mesmo começando forte, começa a se dividir, a gerar repúdio, e termina se enfraquecendo. Se não conseguirem tomar o poder no Congresso, perdem o jogo.
Do El País