Na TV, Damares e Heleno espalham mentiras e dados imprecisos

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O general Augusto Heleno, que assumiu o Gabinete de Segurança Institucional do presidente Jair Bolsonaro, e a advogada e pastora Damares Alves, titular da pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos, concederam entrevistas à GloboNews na primeira semana de 2019. Eles foram os primeiros ministros do novo governo federal a falar ao canal no programa Central News, que segue o modelo adotado durante as eleições e a transição de governo. A reportagem selecionou algumas das frases para analisar seu grau de veracidade. Confira o resultado:

“O que é ideologia de gênero? Um grupo de pensadores chegou a uma conclusão, alguns anos atrás, de que a criança nasce neutra. Ela nasce neutra, cresce neutra e depois escolhe o que ela quer ser”
Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em entrevista à GloboNews no dia 3 de janeiro de 2019.

O termo “ideologia de gênero” foi criado por movimentos religiosos na década de 1990 para criticar os estudos sobre gênero feitos por pesquisadores da área. Uma das primeiras aparições ocorreu na Conferência Episcopal da Igreja Católica realizada no Peru em 1998, segundo a professora Jimena Furlani, da Universidade Estadual de Santa Catarina (Udesc), que pesquisa o tema. As referências posteriores são, em geral, feitas por críticos dos debates e políticas públicas que discutem o assunto. Portanto, não há qualquer evidência de que um grupo de teóricos tenha inventado o conceito, como disse Damares.

As discussões científicas sobre gênero não negam a existência do componente biológico, mas muitos pesquisadores destacam que isso não é determinante para a definição do gênero, compreendido como uma construção social. Os estudos e análises sobre o tema na comunidade acadêmica também indicam uma pluralidade de visões.

Procurada, a ministra não retornou.

De acordo com o Datasus, em 2016, 921 crianças de zero a 14 anos foram mortas no país, o equivalente a 2,5 a cada dia. O número é ligeiramente menor do que os registrados em 2015 – 957 crianças, ou 2,6 por dia – e em 2014 – 1.066, ou 2,9 por dia -, e representa menos de 10% do citado pela ministra.

O número a que Damares se refere aparece no relatório A Criança e o Adolescente nos ODS, elaborado pela Fundação Abrinq, sobre o cumprimento das metas de desenvolvimento sustentável. Mas diz respeito a mortes de crianças e de adolescentes, ou seja, a faixa etária de zero a 19 anos. Com base no Datasus, a publicação indica que 30 crianças e adolescentes foram assassinados por dia no Brasil em 2014.

Procurada, a ministra não retornou.

“Uma a cada três meninas pode estar sendo abusada sexualmente no Brasil”
Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em entrevista à GloboNews no dia 3 de janeiro de 2019.

Os levantamentos disponíveis sobre abuso sexual de crianças de até 13 anos não indicam se as vítimas são do sexo masculino ou feminino. Além disso, os estudos sobre o tema mostram que há subnotificação, ou seja, o crime muitas vezes não chega ao conhecimento das autoridades.

De acordo com o Atlas da Violência 2018, 11.665 casos de estupro de menores de 13 anos foram registrados em 2016. Naquele ano, a população feminina nessa faixa etária era de 20.424.238 mulheres, o que indicaria a incidência de um caso de abuso a cada 1.750 meninas.

Procurada, a ministra não retornou.

“A cada 11 minutos, uma mulher sofre estupro [no Brasil]”
Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em entrevista à GloboNews no dia 3 de janeiro de 2019.

De acordo com o 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2018, 60.018 estupros foram registrados no Brasil em 2017. Isso equivale a um caso a cada oito minutos e 45 segundos – um período ainda menor do que o citado por Damares.

O dado utilizado pela ministra se aproxima do aferido pelo anuário do ano anterior, referente a 2016. Naquele ano, foram 49.497 estupros no Brasil, o equivalente a um caso a cada 10 minutos e 37 segundos.

Procurada, a ministra não retornou.

“Nós já temos muitos países no mundo que trazem o Ministério da Família”
Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em entrevista à GloboNews no dia 3 de janeiro de 2019.

Países como Alemanha, Austrália, Canadá, Coreia do Sul e Itália contam com Ministérios da Família. Mas, geralmente, eles têm finalidades distintas daquelas da pasta chefiada por Damares Alves.

Na Alemanha, o Ministério para Assuntos Familiares, Idosos, Mulheres e Jovens tem o objetivo de cuidar tanto de políticas de planejamento familiar quanto da igualdade de condições entre homens e mulheres. Na Austrália, as atribuições incluem ajuda financeira para famílias criarem filhos e apoio a políticas de saúde mental.

Já o ministro das Famílias, Crianças e Desenvolvimento Social do Canadá cuida de programas que dão apoio financeiro para os pais criarem seus filhos ou para pessoas que cuidam de doentes em estado terminal, entre outros.

A preocupação com a igualdade entre homens e mulheres está entre as principais políticas do Ministério de Igualdade de Gênero e Família, da Coreia do Sul. A pasta cuida ainda de direitos humanos, da juventude e da criação de condições melhores para a conciliação entre família e trabalho. Este último item também faz parte do papel do Ministério de Políticas Familiares da Itália, que inclusive dá apoio tanto para pais quanto para idosos.

“O número de vítimas [de automóveis] é quase igual ao número de vítimas de arma de fogo”
General Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, em entrevista à Globonews no dia 2 de janeiro de 2019

Em 2016, o número de homicídios por arma de fogo foi 32,5% maior do que o número de mortes registrado no trânsito. Segundo o Atlas da Violência, naquele ano, 44.475 brasileiros foram vítimas de armas de fogo no país. Já o número de mortos em acidentes de trânsito chegou a 33.547 pessoas, de acordo com levantamento do Estadão com base nos dados do DPVAT, o seguro obrigatório que indeniza vítimas de acidentes de trânsito.

Procurada, a assessoria do ministro informou que o general tentou estabelecer uma “ordem de grandeza” entre os dois dados.

“Hoje nós somos o maior consumidor de crack do mundo”
General Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, em entrevista à Globonews no dia 2 de janeiro de 2019

Não existe um estudo comparativo sobre o consumo de crack, especificamente, em diferentes países. Em 2012, o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas investigou o consumo de cocaína – tanto na forma intranasal (pó), quanto na fumada (no Brasil, predominantemente, crack). O levantamento indicou que naquele ano, 2,8 milhões pessoas declararam ter consumido as substâncias no Brasil nos 12 meses anteriores. Nos Estados Unidos, o número era maior: chegava a 4,1 milhões.

Os dados brasileiros foram extraídos do Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad). Mas o estudo não considera a população de rua, historicamente, uma das que mais consomem crack. Além disso, o levantamento é baseado em autodeclaração, o que, muitas vezes, resulta em números inferiores à realidade.

Procurado, o ministro não retornou.

“[O Brasil tem] 2 mil obras inacabadas”
General Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, em entrevista à Globonews no dia 2 de janeiro de 2019

Um levantamento elaborado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) com base em dados do Ministério do Planejamento mostra que, em 2017, havia 2.797 grandes obras paradas no Brasil. Essas obras integravam o Projeto Avançar, lançado pelo governo federal em novembro daquele ano. Entre elas, 1.362, ou 48,7%, eram construções de creches, pré-escolas e quadras esportivas para escolas. O estudo mostrava que o saneamento básico também sofria com as paralisações: 447 obras desse tipo estavam congeladas.

Outro relatório, feito pela Confederação Nacional dos Municípios, estimava em 8.239 o número de obras paradas no Brasil em 2017. Elas diziam respeito a contratos firmados entre as prefeituras e a União para construção de praças, quadras de esporte, habitações populares, unidades de saúde, entre outros, além de pavimentação de ruas, por exemplo.

Procurada, a assessoria do ministro informou que o dado citado foi uma aproximação. A intenção do general era mostrar o esforço que o governo Bolsonaro precisará fazer para concluir todas as obras inacabadas.

“Isso [pensão para filhas de militares] não existe mais, isso foi excluído”
General Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, em entrevista à Globonews no dia 2 de janeiro de 2019

Em 1960, a Lei 3.765 determinou que “os filhos de qualquer condição, exclusive os maiores do sexo masculino, que não sejam interditos ou inválidos” seriam os beneficiários da pensão após a morte da viúva do militar contribuinte. Assim, as filhas de militares tinham o direito à pensão vitalícia. Isso, de fato, foi alterado.

Em 1991, o regulamento indicava que as pensões deveriam ser pagas apenas às filhas de militares que fossem solteiras. Essa decisão foi considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal e, em 1993, as filhas de militares que já tinham se casado voltaram a receber o benefício.

Atualmente, vale a alteração feita em 2001. Ela determina que os filhos de militares recebam a pensão em três situações: até os 21 anos, até os 24 anos, se forem estudantes universitários, ou, caso sejam inválidos, enquanto durar a invalidez, independentemente do sexo.

No entanto, os benefícios vitalícios continuam sendo pagos a quem os obteve antes da mudança e seguirão assim para aqueles que ingressaram nas Forças Armadas até 2000. Em maio de 2018, reportagem do jornal O Globo mostrou que mais de 110 mil mulheres recebiam a pensão militar – um gasto de R$ 5 bilhões ao ano para os cofres públicos. O Exército Brasileiro estima que existirão filhas de militares recebendo o benefício vitalício até 2060.

Procurada, a assessoria do ministro reforçou que a pensão para as filhas de militares está extinta. “Todos os militares que entraram nas Forças Armadas a partir de 2002 não têm mais, por dispositivo legal, como deixar pensões as suas filhas”, afirmou, em nota. O ministro não comentou sobre as filhas de militares que ainda recebem o benefício.

Da Agência Lupa