Se jesus voltasse hoje, seria chamado de comunista
Gosto de andar de ônibus dentro da cidade. Como jornalista, acho importante ver e ouvir as pessoas comuns. Quem usa o transporte público, por exemplo aqui na pequena e bela cidade de Saquarema, na região dos Lagos fluminense, costuma pertencer às classes menos favorecidas. São os sem-carro e os sem possibilidade de pagar um táxi. São também os que passam despercebidos.
Nesta manhã, junto a um ponto de ônibus do bairro comercial de Bacaxá, uma mulher com pelo menos 70 anos, que por seu modo de olhar devia sofrer de catarata avançada, estava sentada num engradado de madeira, desses que os mercados põem fora, ao lado de onde se forma a fila para subir ao ônibus. Oferecia para vender, apoiados em seu regaço, três modestos e banais pacotes de quiabo.
Fui resolver uns assuntos e, ao voltar, duas horas depois, a mulher ainda estava lá, sob o sol, esperando que alguém comprasse sua pequena mercadoria. Olhava cada passante como o joalheiro perscruta possíveis compradores de uma pedra preciosa. Já no ônibus, veio-me à memória um comentário que Henrique Rocha Melo deixou dias atrás na página deste jornal no Facebook. Perguntava-se: “Se Jesus viesse hoje, seria chamado de comunista ou seria recebido à bala pelos cidadãos de bem?”. A pergunta era sintomática do clima político e religioso que se vive no Brasil, onde o tema Deus foi colocado no centro do poder.
Refletindo sobre a pergunta do leitor, e com a imagem da mulher dos três pacotes de quiabo ainda na minha retina, pensei que, se Jesus estivesse voltando, como se anuncia às vezes até na traseira dos caminhões de carga, teríamos uma surpresa. Não se trata de saber se seria visto como comunista ou liberal. Sem dúvida, estaria do lado da idosa tão pobre que precisa sair à rua para vender três punhados de hortaliças.
Mas poderíamos nos fazer outra pergunta ainda mais inquietante: se Cristo voltasse, ao lado de quem não estaria? A resposta tampouco é difícil. Não andaria, sem dúvida, de braços dados com quem permite que continuem existindo pessoas abaixo do nível de pobreza. Não estaria ao lado dos que, como acaba de dizer o papa Francisco, “melhor seria se fossem ateus em vez de irem à igreja e continuarem odiando”. Odiando e também se esquecendo da caravana dos excluídos, vítimas do novo capitalismo excludente que vai deixando um rio de “inúteis” à sua passagem. É assim que o autor de Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, Yuval Noah Harari, se refere em seu último livro, 21 Lições Para o Século 21, aos novos proletários da era da inteligência artificial, os que já não servem nem para consumir.
Alguém me perguntará com que direito escrevo que Jesus, se voltasse, estaria do lado da mulher pobre dos quiabos e não dos que se gabam de serem os donos de Deus. Digo isso à luz de evangelhos hoje tão citados em templos e congressos neste país. Escrevo-o recordando como Jesus se comportava com o poder, seja o político ou o religioso, quando tramavam sua morte. Vou recordar apenas dois episódios emblemáticos narrados pelos evangelhos canônicos, autorizados pela Igreja, que os evangélicos e católicos devem conhecer muito bem.
Em Lucas 13, 31 e ss., os amigos de Jesus o aconselham a ir embora da pobre e rural Galileia onde pregava, já que o rei Herodes queria matá-lo. Não explicam o motivo do ódio do tetrarca contra ele, mas fica claro na resposta de Jesus: “Ide, e dizei àquela raposa que continuarei expulsando demônios e curando doentes”. Herodes temia uma insurreição dos pobres e marginalizados que seguiam e aclamavam o profeta.
Na outra passagem, narrada nos quatro evangelhos, é o poder religioso que enfrenta Jesus. Quando viajou à rica e intelectual Jerusalém e entrou no Templo, notou que o local, que devia ser “casa de oração para todas as gentes”, tinha se tornado um “covil de ladrões”. Referia-se aos vendedores de animais para os sacrifícios dos fiéis pobres, e também aos cambistas que traficavam com moedas. Foi a primeira vez que o profeta da paz perdeu a paciência e “derrubou as mesas dos cambiadores”. A reação foi imediata: “Os escribas e príncipes dos sacerdotes, tendo ouvido isto, buscavam ocasião para o matar; pois eles o temiam” (Marcos 11, 15 e ss.). Por que esse medo do poder frente ao desarmado profeta dos últimos?
Hoje, mais de 2.000 anos depois, mais do que querer matar Jesus, o que o poder no Brasil está fazendo é mais sutil e perigoso. É apropriar-se dele, domesticá-lo, usá-lo para seus interesses. O perigo de hoje é que Jesus, em vez de aparecer ao lado de quem precisa vender algo na rua para sobreviver, pareça à vontade nos corredores onde se cozinha a política. Ou nos templos onde se ensina aos humildes e aos pouco escolarizados que Jesus está ao lado dos que triunfam, e não dos perdedores.
Não sei se o profeta galileu, que acabou cravado em uma madeira como um criminoso comum, era ou não anticapitalista. Certamente era anticonsumista. Nem casa tinha. Não deveriam se esquecer disso os religiosos que o profanam ao oferecê-lo como talismã aos governantes. Mais do que nunca, o poder religioso deveria recordar aqui, no Brasil do “Deus acima de todos”, que Jesus tinha pedido a seus seguidores que separassem o trono do altar: “Deem a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Lucas 20, 25). Misturar os dois poderes, colocar Deus como fiador da impunidade, significa montar novas cruzes para poder continuar sacrificando inocentes. A idosa que vendia três pacotes de quiabo na rua, e o que ela simboliza, julga a todos, esquerda e direita, cristãos e ateus.
Do El País