Moro quer gravar conversas entre presos e advogados; sigilo é direito básico da democracia

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O pacote de reformas penais apresentado pelo governo na segunda-feira (4/2) quer permitir a gravação de conversas entre advogados e clientes presos, mesmo que o defensor não seja investigado. A medida, porém, desrespeita a inviolabilidade da comunicação entre advogado e cliente e o direito constitucional à ampla defesa. A Ordem dos Advogados do Brasil pretende contestar a regra.

O projeto do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, altera a Lei 11.671/2008, que regulamenta os presídios federais de segurança máxima. O texto do ex-juiz estabelece que essas cadeias “deverão dispor de monitoramento de áudio e vídeo no parlatório e nas áreas comuns, para fins de preservação da ordem interna e da segurança pública, sendo vedado seu uso nas celas”. Além disso, a proposta prevê que “as gravações de atendimentos de advogados só poderão ser autorizadas por decisão judicial fundamentada”.

A Constituição, no artigo 133, fixa que “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. Já o Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/1994), em seu artigo 7º, determina que é um direito do advogado “a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia”.

Dessa maneira, a conversa de um advogado com um cliente só pode ser grampeada se houver indícios de que o profissional está cometendo crime. Entretanto, a redação do projeto de Moro permite que magistrados autorizem a gravação de qualquer conversa entre advogado e cliente.

Para o advogado Juliano Breda, coordenador do grupo criado pelo Conselho Federal da OAB para estudar o pacote de reformas penais, a medida viola o sigilo profissional previsto no Estatuto da Advocacia e o direito constitucional à ampla defesa. Ele afirmou à ConJur que a Ordem irá contestar o dispositivo e, se aprovado, pedir a declaração de inconstitucionalidade dele no Supremo Tribunal Federal.

O presidente da seção do Distrito Federal da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim-DF), Michel Saliba, avalia que a proposta viola não só direitos do advogado, mas também do cidadão.

“Não há como um réu formular a sua defesa e as razões da sua defesa se ele não tem o necessário sigilo da tese jurídica que ele vai aproveitar. A acusação vai saber antecipadamente da sua defesa. Por mais que ele seja réu confesso, dentro da estrutura da defesa há estruturas — lícitas, éticas e morais — que só cabem ao advogado ou ao réu. E com o réu preso, isso tudo é estabelecido dentro do presídio.”

Saliba também tem receio do trecho da proposta que estabelece que “as gravações das visitas não poderão ser utilizadas com meio de prova de infrações penais pretéritas ao ingresso do preso no estabelecimento”. Embora o texto de Sergio Moro afirme que o uso desses grampos como prova configura o crime de violação de sigilo funcional (artigo 325 do Código Penal), o advogado diz que não dá para descartar esse risco.

“Uma estratégica que é lícita — como deixar de ouvir uma testemunha, pedir uma produção de prova pericial — pode ser entendida como delito de obstrução à Justiça. Nessa situação de hoje, em que tudo é punível, pode se interpretar de diversas funções essa conversa. Pode-se colocar em xeque a atuação do réu e do advogado”, opina.

Para o presidente da seccional fluminense da OAB, Luciano Bandeira, é inadmissível a proposta de autorizar a gravação de conversas entre advogados e clientes presos. “Nossa profissão é essencial à Justiça e a inviolabilidade dessa relação constitui pedra de toque da ampla defesa.”

“Moro está colocando na lei o que ele praticou durante anos no parlatório do presídio federal de Catanduvas (PR)”, destaca Juliano Breda. A partir de 2007, a cadeia passou a gravar em áudio e vídeo conversas entre presos e seus advogados.

Em 2010, Breda, que era secretário-geral da OAB na época, denunciou ao comando da entidade decisão em que Sergio Moro — então juiz da 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba — e outro juiz autorizam a prorrogação das gravações no presídio de Catanduvas por 180 dias. O despacho atendeu a um pedido do diretor da penitenciária, Fabiano Bordignon, para “monitoramento ambiental do contato entre presos do Presídio Federal de Catanduvas e os seus visitantes, inclusive advogados, além da realização de outras escutas ambientais no presídio”.

O monitoramento não incluía defensores públicos, autoridades públicas e membros do Ministério Público e do Poder Judiciário, que segundo o então juiz federal não estavam “sujeitos a cooptação com os criminosos”, por não terem “vínculo estreito” com os detentos e poderem não retornar mais ao presídio em caso de pressão das organizações.

De acordo com Moro, a medida protegia os próprios advogados, já que evitava que eles fossem “pressionados a servir como mensageiros” e fechava a brecha mantida aberta pela legislação mesmo nos presídios federais, onde o contato com o mundo exterior é restrito.

Embora reconhecesse que a medida é de exceção, o atual ministro da Justiça afirmou que sua manutenção era necessária devido ao “perfil dos criminosos nos presídios federais”. “Eles estão sob regime de exceção, todo presídio de segurança máxima precisa ter controle do contato do preso com o mundo exterior”, disse.

Em sua decisão, Moro alegou que a escuta em parlatório não é regulada pela Lei de Interceptações Telefônicas (Lei 9.296/1996). Portanto, pode ser prorrogada por 180 dias — como fez na ocasião —, e não apenas por 15 dias, renováveis por igual período, como determina a norma.

As escutas, na opinião do então juiz federal, não violam o direito dos presos à ampla defesa. “O objetivo é prevenir a prática de novos crimes, e não investigar os passados”, explicou. Segundo ele, provas colhidas durante as gravações não podem ser usadas nos processos em andamento. “O conteúdo vai para o Judiciário, que resolve se encaminha ou não ao Ministério Público, se houver a prática de novos crimes. Até hoje, isso tem sido resguardado, e nenhum advogado reclamou. Pode-se dizer que é feito com concordância das partes, porque ninguém se opôs.”

Com o argumento de que as gravações de conversas entre ele e um cliente preso em Catanduvas são ilegais, o advogado Aury Lopes Jr. — colunista da ConJur — impetrou Habeas Corpus em setembro de 2012 no STF. A corte aceitou o pedido do Conselho Federal da OAB para ingressar como assistente no caso. O HC ainda não foi julgado.

A OAB também apresentou reclamação contra Moro no Conselho Nacional de Justiça. Mas o órgão nem sequer analisou o pedido. A então corregedora nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon, arquivou em 2011 a reclamação com base na decisão do Plenário do CNJ de extinguir um pedido de providências sobre o mesmo fato.

A decisão era que as gravações de conversas entre presos e advogados foram feitas no âmbito de processos judiciais. O caso, portanto, esbarrou na “incompetência do CNJ para rever questões já judicializadas”.

Havia também um pedido para que o CNJ regulamentasse o monitoramento dos parlatórios, que também foi negado. A ementa da decisão afirma que “providência sujeita à análise de especificidades locais. Inviável a fixação de critérios uniformes”.

Como juiz responsável pelos processos da operação “lava jato” na primeira instância do Paraná, Sergio Moro autorizou a interceptação do ramal central do escritório Teixeira, Martins e Advogados, que defende o ex-presidente Lula no caso.

A interceptação dos telefones da firma foi revelada pela ConJur em 2016. Sergio Moro declarou que não sabia dos grampos no ramal central do escritório. Mas a operadora de telefonia responsável pela linha havia informado ao juízo que um dos telefones grampeados pertencia ao escritório em duas ocasiões.

Após ser repreendido pelo ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal, Moro prometeu destruir os áudios. Segundo Valeska Teixeira Zanin Martins, uma das defensoras do ex-presidente, lembra que isso só ocorreu dois anos depois.

“Fomos surpreendidos por uma decisão em que Moro disponibilizou todos os mais de 400 áudios nossos que foram gravados. Chegando lá, havia um ‘organograma da defesa’, desenhando a estratégia dos advogados do Lula. Ele foi baseado em conversas dos integrantes do escritório com outros advogados, como o Nilo Batista. Não há nenhum precedente de uma atitude tão violenta, tão antidemocrática como essa em países democráticos.”

Do ConJur