“Bandido bom é o ressocializado”, diz sobrevivente do Carandiru
No dia 4 de junho de 2019 Sidney Sales quebrou uma promessa de 26 anos. Por volta das 9h da manhã, entrou em uma unidade prisional.
Sales havia jurado não voltar para uma prisão desde que deixou sua cela, em uma tarde de 1993.
À época, com 27 anos, já havia se envolvido com tráfico, participado de roubos milionários de cargas, virado cadeirante após um tiroteio e sobrevivido a um dos episódios mais sangrentos da história recente do Brasil: o Massacre do Carandiru.
Agora pastor evangélico, diretor de seis casas de reabilitação para dependentes químicos no interior de São Paulo e defensor dos direitos humanos, entrava a convite do governo no presídio de Pedrinhas, em São Luís do Maranhão. A penitenciária, por sua vez, foi palco de outro massacre há apenas cinco anos, quando cabeças foram arrancadas durante uma rebelião e mais de 60 detentos morreram.
Sales esteve na UPSL 2 (Unidade Prisional de Ressocialização 2), antiga Cadet (Casa de Detenção), onde aconteceram alguns dos eventos de 2013. Hoje a unidade, reformulada, abriga cerca de mil detentos. E Sales foi até lá para conhecê-los.
“Em dois dias os presos haviam construído uma rampa para minha cadeira passar”, conta, admirado com a política carcerária sendo implementada no Maranhão. Nos últimos anos, unidades prisionais receberam oficinas de trabalho e capacitação.
O convite para a visita surgiu meses antes, nos Estados Unidos. Sales conheceu o governador Flávio Dino (PCdoB) em Harvard, quando esteve na instituição de elite norte-americana para a Brazil Conference. Lá participou de uma mesa sobre o sistema carcerário brasileiro, ao lado de Dino, do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Luís Roberto Barroso, e Maria Laura Canineu, diretora da Human Rights Watch no Brasil.
“O pessoal mente no currículo que faz Harvard, mas eu estive lá mesmo”, brinca. No encontro, falou sobre o assunto ao qual se dedica: a ressocialização de presos.
Ao UOL, Sales criticou a política carcerária no Brasil, a Lei de Drogas, o pacote anticrime apresentado pelo juiz Sergio Moro no começo do ano e o discurso de “bandido bom é bandido morto”, reproduzido pelo presidente Jair Bolsonaro e aliados.
“Hoje, eu faço mais que o governo pela segurança no Brasil. A culpa dessa calamidade pública que nós temos é a ausência do Estado no sistema carcerário”, afirma Sales. “As necessidades básicas dos presos, quem fornece são as facções criminosas. Os detentos estão nas mãos das facções.”
Preso pela primeira vez aos 19
Sales nasceu em São José, extremo sul de São Paulo, de pais mineiros que mudaram para a cidade em busca de emprego. A mãe tornou-se empregada doméstica e o pai, armador de ferramenteiro. Era o filho do meio, entre quatro irmãs.
Aos 14, arranjou um bico de faz-tudo em uma escola particular na região. Foi quando se deu conta que o salário recebido por limpar a piscina, varrer o pátio e auxiliar o motorista da kombi a deixar as crianças em casa jamais seria o suficiente para viver em uma das residências vistas pela janela da perua.
Foi preso pela primeira vez em 1989, após participar do roubo de um caminhão de AZT em Pedreira, também na zona sul. “Era o remédio que o Cazuza usava na época, para HIV”, explica. A carga valia mais de 700 mil cruzados novos [cerca de R$ 1,7 milhão em valores atuais]. Aos 19 anos, foi encaminhado para a Casa de Detenção de São Paulo, então a maior da América Latina e também conhecida como Carandiru.
Sales estava no Pavilhão 9 havia três anos quando uma rebelião começou. Na época, considerava conhecer bem o local. Responsável por distribuir as refeições, era dos primeiros a sair da cela, às 5h, e dos últimos a voltar, às 23h. Percorria todo o presídio, levando no serviço também mercadorias e informações. “Lá você vale aquilo que você pesa. Se você não tem nada, você não vale nada.”
Ele não acreditou que eram tiros de bala de verdade que ouvia quando a tropa de choque adentrou as galerias, no dia 2 de outubro de 1992. “Disse que era de borracha, como usam em greve de metalúrgico. E me responderam que não, tavam matando mesmo.”
Da ventana, olhou para baixo e viu corpos amontoados no chão.
“Eu sou o menino do Salmo 91”
“Lembro que cada um estava rezando para seu deus.” Desapegado de religião, Sales correu para a cela buscar um salmo que sua mãe havia lhe dado dias antes. “Eu sou o menino do Salmo 91 no filme ‘Carandiru'”, diz, sobre a versão do massacre que foi para os cinemas.
Nas horas seguintes, foi um dos convocados para carregar os corpos de presos mortos. Calcula ter levado mais de 30 deles para carros do IML (Instituto Médico Legal). Carregou corpos até se dar conta de que um estava vivo a seu lado havia pouco, fazendo o mesmo serviço.
“Eles estavam dando queima de arquivo nas pessoas que estavam carregando os cadáveres”, diz. Sales correu para o quinto andar, e se deparou com três policiais.
“Um deles disse que ia acontecer um milagre na minha vida. Que ia escolher uma chave do molho que estava segurando, se abrisse o cadeado da cela, eu poderia entrar, se não abrisse, ele iria me executar na hora. Eu fechei o olho e recitei o salmo. Quando ele bateu a chave, o cadeado abriu, acredita?”
Seis tiros durante um assalto: paraplégico
No dia seguinte, Sales foi transferido para Mirandópolis. Em 1993, ganhou a liberdade e foi, como diz, para a porta do mercado de trabalho.
“Mas por ser negro, semianalfabeto, sem nenhuma qualificação e egresso do sistema penitenciário… Não tinha chances. Sem contar que não conhecia Excel, Power Point. Como a sociedade não me quis, eu também não quis a sociedade.”
Em quatro meses de liberdade, havia voltado a participar de roubos e assaltos. Em um deles, foi atingido por seis tiros que o deixaram paraplégico aos 26 anos de idade. “Foi quando senti a dificuldade da minha condição que comecei a usar drogas.”
Devendo para traficantes, chegou a roubar com cadeira de rodas, conta, mostrando o recorte de um jornal da época, que registrou sua nova detenção. Foi preso mais tarde, com meio quilo de crack, meio de cocaína.
Um missionário, estudos, defensor de direitos humanos
Quando solto pela segunda vez, Sales recebeu a visita de uma missionária que o convenceu a ir para uma casa de recuperação (abrigo para dependentes químicos e moradores de rua), em Jundiaí. “Vim para ficar 30 dias. Tem 26 anos, nunca mais voltei.”
Nos anos seguintes, se aproximou do desembargador Antônio Carlos Malheiros, leu livros de teoria jurídica e tornou-se defensor dos direitos humanos. Passou a dar palestras em escolas e universidades, contando sua história e sua visão sobre o sistema penitenciário brasileiro. Abriu também seu primeiro centro de recuperação para dependentes químicos e moradores de rua e tornou-se pastor evangélico.
“Sou desacreditado da Justiça. Estamos num buraco sem fundo”
Sales recebeu a reportagem em sua casa em Vargem Paulista, interior de São Paulo, onde vive hoje com a mulher, a filha mais nova, a sogra, a cunhada, os sobrinhos e um gato. Na tarde de quarta-feira (3), cerca de cinco moradores de suas casas de recuperação estavam lá separando caixas de alimentos recém-chegadas do Ceagesp. As frutas e legumes são doados toda semana e servem para alimentar as cerca de 150 pessoas que Sales abriga.
À noite e aos finais de semana, lidera o culto na igreja próxima, e se dedica ainda a escrever seu segundo livro. O primeiro, “Paraíso Carandiru”, de publicação própria, conta a história de sua vida na prisão.
No final do ano passado, viu a Justiça de São Paulo manter a anulação da condenação de 74 policiais militares envolvidos no massacre de 92, que nunca cumpriram pena. O relator, na ocasião, defendeu a remarcação de um novo julgamento, por ora sem data.
Quanto ao decorrer do processo, Sales não tem expectativa: “Sou desacreditado da Justiça. Estamos num buraco sem fundo.”
Ao término da entrevista, repara: “Você não me perguntou qual é meu sonho”. E responde: “É ver os presídios serem transformados, com políticas para que as pessoas possam ter segunda chance. Mas não oferecidas por entidades, mas oferecidas pelo Estado”.
Do UOL