Eu acuso o Supremo, os políticos e a imprensa

Crônica

 

O grau de cultura de um povo se mede sobretudo pelo

modo com que se salvaguardam os direitos e a liberdade

do imputado em um processo penal

Gian Domenico Pisapia

A citação é oportuna ante a mancha vergonhosa e inapagável que se alevanta sobre a Nação à luz da mutilação da Lei e do Estado Democrático de Direito que os dias que correm veem ser gravada com letras de fogo pelo julgamento da Ação Penal 470, vulgarmente conhecido como “julgamento do mensalão”.

Não é concebível que uma defesa individual hígida prescinda de dois pressupostos: a independência judicial – a primeira face da garantia de cautela pelo lado do desvelo, da atenção, do escrúpulo, do esmero e do cuidado do juiz – e o duplo grau de jurisdição – o reverso da garantia de cautela pelo lado da guarda, da observação, do sobreaviso, do resguardo, da prudência, da circunspeção, da vigília e da precaução de um tribunal.

O flagrante constrangimento ilegal do Direito que a transformação do pleno do Supremo Tribunal Federal em “reality show” produz nesta era de incertezas e de sobreposição do ego e da ambição sobre a Justiça advém de duas fontes primárias, amparadas por duas outras secundárias.

Das primárias, a ausência de aplicação do favor libertatis na definição da competência da Corte, em contradição ululante com o art. 8º, 2, h, do Pacto de San José da Costa Rica e da falta de decorum do ministro Joaquim Benedito Barbosa Gomes pela atitude inadequada, inapropriada e inconveniente de assumir o lugar da acusação em detrimento das funções judiciárias, e dos ministros Luiz Fux e Gilmar Ferreira Mendes por confundirem seus interesses pessoais com o caso concreto, exercendo papeis secundários, o que os impede de funcionar como juízes no caso.

Das secundárias, a desumanidade da política, infensa aos preceitos mais comezinhos de humanidade, solidariedade, pudor e repulsa à traição, como feito máximo da vilania entre iguais de chão, de língua, de cultura, de sangue e de Pátria. É da política, pois, que vem a síndrome de Pilatos, dos que tentam lavar as mãos sujas de um sangue que não sai, ou da síndrome de Barrabás, assassino covarde que ataca pelas costas até os congêneres de crimes análogos.

Ainda das fontes primárias, vem o vampirismo da imprensa amasiada à política, com sua sede irrefreável pelas vísceras expostas pelo infortúnio dos caídos em desgraça seja por moto próprio ou por ação da arapuca dos adversários.

Sob o prisma judiciário, a máxima violada é a imparcialidade do julgador e ela, mais uma vez, para que não se a olvide, se dá em dois patamares hierárquicos, a independência do magistrado e a garantia recursal como pressuposto para a revisão de erros processuais.

Sob o prisma da imprensa e dos amigos e inimigos da política, o desprezo por direitos que, ao serem negados a um só entre nós, serão negados, tacitamente, a todos.

Os pacientes da Ação Penal 470 têm, pois, o direito inalienável de serem julgados por juízes isentos, que não assumam as funções exclusivas da acusação ou, por outro lado, que não tenham interesses seus tangenciados por pessoas envolvidas, pelos fatos narrados ou pelas consequências políticas da questão sub judice.

O que resta ao cidadão cioso de seus deveres e consciente do momento histórico diante do risco insuportável à Nação de se tornar abrigo da injustiça e arena da selvageria institucional, é lutar. E é lutando que acuso os que, por atos e omissões, preparam-se para perpetrar um crime contra a garantia de cada brasileiro a, no mínimo, um processo legal hígido.

Eu acuso, então, o ministro Joaquim Barbosa por inconveniência, impropriedade, inadequabilidade, impertinência, inoportunidade, incompatibilidade, destempero e vulgaridade incomuns na condução da causa, no trato com pares, defensores e, especialmente, com pacientes, desrespeitando-os a todos do início ao fim.

Assumiu o papel da acusação abandonando a imparcialidade do julgador, voltou-se com desdém ou virulência para ministros discordantes, confrontando-os publicamente como se as teses dos colegas de Corte fossem excentricidades ofensivas ao Direito que só ele enxergara e como se não houvesse hipótese de opinião divergente e igualmente respeitável, salvo a sua, afrontando advogados, desprezando suas prerrogativas, tratando requerimentos como estultícias.

O ministro Joaquim Barbosa, a um só tempo, não tirou a beca de promotor de carreira e não vestiu a toga de juiz do Supremo.

Eu acuso, também, o ministro Gilmar Mendes. Com ele, nenhum réu, inocente ou culpado, deve sentir-se seguro. Inconsequente, parece ainda permanecer no cargo do governo a que serviu.

Após sessões do julgamento da AP 470, ainda sem trânsito em julgado da causa, foi ao lançamento de um livro chamado “Mensalão”, apelido desairoso dado à causa e usado por uma torcida para rotular e ofender adversários. Uma obra escrita por outro que será acusado no âmbito da acusação à imprensa, alguém de nome Merval Pereira, conhecido prosélito das condenações.

Eu acuso, ao fim do capitulo judiciário, aquele que teve talvez o comportamento mais indecoroso, o ministro Luiz Fux. Não bastasse a falta de decoro em si consistente na confissão pública de sua obstinada busca pela indicação ao cargo de ministro do Supremo, disse ele que durante o périplo teve contatos pessoais com um dos réus e com parte significativa da direção do partido daquele réu.

É tanto viciosa a sua indicação ao cargo quanto é viciosa a sua participação no julgamento. “Matar no peito”, disse ele. A máxima tem o claro significado de amortecer a bola, de dar conta do recado. O ânimo do magistrado estará adulterado tanto se confirmar as expectativas do réu quanto se não o fizer com a intenção de futuramente provar sua imparcialidade. Neste último caso, se o réu possuir qualquer mínima circunstância que eventualmente o beneficie perderá as chances de reconhecimento. Terá transformada a sua condição de sujeito de direito em objeto de apropriação.

Eu acuso, no capítulo da imprensa, os muitos veículos e seus estafetas que adonisam a iracúndia do ministro Joaquim Barbosa. Não estão preocupados com o decoro na Suprema Corte de Justiça e com a integridade do “due process of law”, mas com o troféu, a cabeça, a condenação a qualquer preço, mesmo que ela despreze um preceito exógeno ao interesse individual, o preceito de todo paciente de acusações de usufruir de um processo legal limpo e sereno, imperturbável pelas torcidas.

Eu acuso, no capítulo da política, a todo aquele que acusou crimes dos pares que sabe que se tornaram regra na política sem ter a decência, o decoro e a hombridade de reconhecer: acuso, mas eu também fiz.

Eu acuso os políticos de não terem se calado quanto aos adversários réus do julgamento do “mensalão” assim como os acuso de se calarem em relação a correligionários que, em sua profunda ignorância e patética covardia, não percebem que sucederão como alvos das deformidades legais e constitucionais ante as quais se calaram.

O que me resta, parafraseando Émile Zola, é concluir este brado por justiça com outra conclusão, a do histórico libelo do escritor e jornalista francês pela inocência do Capitão Dreyfus, no estertor do século XIX:

Não ignoro que, ao formular estas acusações, atraio sobre mim os artigos da Lei que se referem aos delitos de difamação. Voluntariamente, ponho-me à disposição dos tribunais, pois um só sentimento me move: o desejo de que se faça luz. Meu ardente protesto nada mais é que um grito de minha alma. Que se atrevam a levar-me aos Tribunais e me julguem publicamente. Assim espero