Jurista Pedro Serrano diz que Brasil caminha para ditadura

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Pedro Serrano é advogado, professor de Direito Constitucional da PUC-SP e mestre e doutor em Direito do Estado, formado por essa universidade com pós-doutorado pela Universidade de Lisboa.

Procurei Serrano recentemente para tratar de situação surgida após ameaças da Globo e da Operação Lava Jato a este que escreve por ter denunciado que a própria Operação tem feito vazamentos.

Eu e outros advogados ligados a Serrano mantivemos reuniões sobre a conjuntura política. O advogado que constituí acaba de me dar uma entrevista extremamente preocupante e que exorto todos a lerem com extrema atenção.

Quando este blogueiro diz que o Brasil já deixou de ser uma democracia, é uma coisa. Quando um jurista do porte de um Pedro Serrano diz isso, é caso para ligar o alerta vermelho.

Confira, abaixo, a entrevista.

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Blog da Cidadania – Quero começar pedindo a você uma análise de conjuntura.

Pedro Serrano – O que eu percebo é o amesquinhamento, a erosão dos direitos fundamentais dos investigados e dos réus da Operação Lava Jato. Nesse último episódio da escuta telefônica do ex-presidente Lula, o que me estarreceu não foram nem as principais interceptações que foram objeto de polêmica na mídia; o que mais me surpreendeu foi a divulgação de alguns áudios contendo conversas íntimas dele. A lei determina que esse tipo de áudio tem que ser incinerado, tem que ser destruído, é o que determina a lei. Não se trata, a meu ver, apenas de invasão de intimidade, mas, também de uma ação política absolutamente contrária ao que dispõe a lei e a constituição para investigações desse cunho. Eu não estou falando das principais interceptações [envolvendo conversa com a presidente Dilma], Eduardo. É divulgação de conversas chocantes pela falta de relação com a investigação. É que as pessoas não notaram. Aquilo não podia ser divulgado. É proibido, a lei não permite… O sujeito que está interceptando, ele ouve uma série de coisas íntimas que não têm nada que ver com a investigação. O que a lei determina é que ele destrua esse tipo de áudio. Porém, o que aconteceu é que divulgaram o que jamais deveria ser sequer mantido no processo. Há, também, a questão de terem conduzido coercitivamente – e indevidamente – o ex-presidente Lula. Isso vai erodindo os direitos fundamentais dos investigados. Estão tratando esses investigados como inimigos e não como cidadãos que têm direito a um conjunto mínimo de direitos, a uma proteção jurídica mínima.

Blog da Cidadania – É importante essa frase, sobre a Lava Jato encarar os investigados como inimigos…

Pedro Serrano – Pois é, parece encarar como inimigos. Encarar alguém como inimigo tem um sentido no Direito. É você encarar o ser humano como desprovido dos direitos mínimos inerentes à condição humana. A impressão que me dá é que querem prender o ex-presidente Lula de qualquer jeito. Não interessam os motivos, a razão. Querem prender. Isso não existe na relação indivíduo-Estado. O inimigo do Estado só pode ser outro Estado, não o ser humano…

Blog da Cidadania – Pedro, há pouco tempo, aqui no Blog, eu fiz uma ponderação no sentido de que talvez fosse o caso de a presidente Dilma, como chefe de Estado, fazer uma denúncia internacional. No limite, até na ONU, pois o que está acontecendo no Brasil pode ter implicações geopolíticas na América Latina, nos países vizinhos, alguns bem menos desenvolvidos inclusive institucionalmente… O que você acha disso?

Pedro Serrano – Eu acho que valeria, pelo menos no plano político, fazer uma abertura para que a imprensa internacional entenda o que está acontecendo no país. Afinal, o problema é muito maior do que o caso do Lula, da Lava Jato. O Brasil está se transformando em um Estado policial. Em todas as áreas, não só na área criminal. Na área tributária, em todas as áreas. E isso é muito ruim. É um déficit civilizatório do Brasil…

Blog da Cidadania – Você tocou em um ponto importante. O Brasil tem uma elite que não deveria querer um Estado policial porque temos uma elite extremamente sonegadora, que não quer pagar impostos e efetivamente se evade de pagá-los até de forma meio desabrida. Você não acha que a elite está apoiando a criação de um monstro que vai se voltar contra ela mesma?

Pedro Serrano – Pode ser que sim, pode ser que não. Porque isso que está acontecendo eu chamo de medidas de exceção no interior da democracia. Aliás, eu chamo, não, muitos autores chamam. A característica do século XXI é você não ter mais governos de exceção, ditaduras. Você não tem mais isso. Você tem medidas típicas de exceção. Medidas típicas de ditaduras dentro da democracia. E a característica típica desse tipo de medida é ela ser seletiva politicamente. Ou seja, ela busca perseguir o inimigo. A exceção reside em suspender os direitos de algumas pessoas a título de “garantir o direito da sociedade”. Então essa exceção ataca aquelas pessoas “eleitas” como sendo “o inimigo”. Nesse aspecto, é preocupante porque “o inimigo” do Estado a característica dele é não ter direitos por não ser considerado humano. Isso está sendo feito contra o ex-presidente Lula. Ninguém é contra a que ele seja investigado, mas não como se fosse um inimigo de Estado, sem direitos.

Blog da Cidadania – Como você encara essa narrativa de que o ex-presidente Lula teria sido nomeado ministro e aceita essa nomeação para se evadir da lei através do dito “foro privilegiado”?

Pedro Serrano – Evadir-se do quê? O Lula não é réu em nenhum processo, ainda. É mero investigado. Acusam-no de “se evadir” do quê? Quer dizer que o Moro irá prendê-lo? Como as pessoas sabem disso, a ponto de fazerem essa acusação? Veja a deturpação que há no país, hoje. Não há nenhuma base para prenderem Lula, atualmente. Ele nem sequer foi indiciado em processo algum. Como podem prender alguém contra quem não há nem mesmo uma denúncia concreta aceita pela Justiça? É muito frágil, portanto, esse argumento de que Lula vai para o ministério de Dilma para obter foro privilegiado e se evadir de uma sanção que nem base para ser aplicada tem…

Blog da Cidadania – Porém, segundo o Datafolha 80% das pessoas estariam achando que Lula foi para o ministério de Dilma para fugir da lei…

Pedro Serrano – Não importa o que dizem as pessoas. O Supremo – não um ministro, mas o conjunto do Supremo – vai ter que se manifestar sobre isso. Acho que o Supremo tem que tomar uma atitude porque o Judiciário não pode ser “a voz da maioria”. O Judiciário tem que ser contra-majoritário. O Judiciário só é voz da maioria na ditadura, como foi no nazismo, que propunha isso, de a Justiça ser a “voz do povo”. O Judiciário não tem essa função. Quem é “voz do povo” é o Legislativo, o Executivo através dos eleitos. O que torna alguém ou algum colegiado “voz do povo” é eleição e juízes não são eleitos por ninguém.

Blog da Cidadania – Como explicar isso à maioria em um país que está clamando por truculência, por abusos, por esse tipo de atitude da Justiça? Esses 80% que julgam que Lula quis “se evadir” da lei ao aceitar cargo que lhe faculta ser julgado pelo Supremo evidencia isso, que a sociedade quer uma truculência que nem sonha que amanhã vitimará qualquer um… Como informar a sociedade sobre como deve ser o Judiciário em uma democracia?

Pedro Serrano – Eu acho que isso é uma luta que, aliás, vocês da “imprensa alternativa” estão fazendo, que muita gente da área jurídica vem tentando falar… Uma coisa, porém, é certa: ou a sociedade incorpora esses valores, direitos fundamentais como um patrimônio dessa sociedade ou então iremos para a barbárie de Estado. Espero que a nossa cultura acabe incorporando esse que é um avanço civilizatório. Função jurisdicional e policial não é para ser exercida com paixão, é para ser excercida com racionalidade. O problema é que o povo, Eduardo, nessas horas se manifesta com paixão e justiça não se faz com paixão. Justiça se faz com razão. É por isso que não dá para o Judiciário ser voz da maioria. Porque, senão, ele vira um instrumento de linchamento, não de julgamento.

Blog da Cidadania – Há quem enxergue que hoje há avanços no Estado de Direito no Brasil em relação ao passado. Evidentemente que após a ditadura houve progressos, senão não teríamos saído da ditadura. Mas se tirarmos os períodos ditatoriais, se considerarmos só os períodos democráticos, a impressão que se tem é a de que o Estado de Direito no Brasil avançou muito pouco, porque a tortura continua em qualquer delegacia, as prisões são masmorras medievais, o punitivismo que agora se quer implantar contra a política já existe contra crimes de pobres, de modo que gostaria de sua análise sobre isso, sobre se este país obteve algum avanço nos direitos e garantias fundamentais em relação ao passado.

Pedro Serrano – Na minha visão, o Brasil, como país periférico do capitalismo, você tem um Estado jurídico formal, que é o Estado Democrático de Direito, aquele que está na nossa Constituição. Esse estado é um Estado de fato para os segmentos incluídos da população, mas as parcelas do nosso território que são ocupadas por segmentos excluídos da nossa população são governadas por um estado de exceção, a meu ver. Ou seja, uma força policial militar de ocupação trata esse território como zona de guerra ocupada. A título de combater o inimigo criou-se a figura do tal “bandido”, que serve para qualificar todo pobre como suspeito de cometer crime, diferentemente do que acontece com o rico, tratado como o homem que erra, mas que pode fazer “delação premiada” para escapar da lei.

Blog da Cidadania – Pedro, tudo isso que você diz é muito preocupante e remete a uma questão inescapável. Aonde vai dar tudo isso?

Pedro Serrano – Eu acho que ninguém sabe ao certo no que vai dar – estou falando do país. Temos, porém, dois caminhos: ou vamos seguir no trilho da Constituição, da democracia, dos direitos fundamentais ou vamos para o caminho obscuro da ruptura dos direitos fundamentais. Não uma ruptura assumida, mas uma ruptura “de facto”. Uma ditadura não assumida que já se pronuncia. Estamos no caminho da exceção, do Estado policial e isso é muito triste.

Blog da Cidadania – Você acha que estamos chegando a isso?!

Pedro Serrano – Acho que, neste momento, estamos entre essas duas opções, a do caminho da democracia e o da ditadura. E acho que estamos tendendo ao pior caminho. Se a sociedade continuar agindo sem reflexão, o caminho obscuro da exceção será inevitável. Lembre-se de que Hanna Arendt, quando analizou o fenômeno do nazismo naquele caso do julgamento do nazista Adolf Eichmann, em Israel, falava isso, que a natureza do mal, o que faz o ser humano cometer o mal extremo não é o fato de ele ser um monstro. O ser humano comum comete o mal extremo quando ele acha que está fazendo o certo e age por impulso, age com ódio, age com o fígado. Aí o ser humano comum, aquele ser normal, afetivo, transforma-se em um monstro (…)