Joaquim Barbosa, nosso Maquiavel
Aproveitemos o interlúdio entre o fim do primeiro turno e o começo do segundo para analisar episódio que furtou ânimo de comentá-lo aos dois lados da guerra política entre centro-esquerda e centro-direita que o Brasil vem travando desde a última década do século passado. Refiro-me à recente entrevista do ministro Joaquim Barbosa à Folha de São Paulo.
Uma observação antes de prosseguir: se você não leu essa entrevista, não está bem informado sobre política. De qualquer forma, reproduzo o material ao fim do post.
Quem leu a entrevista, sabe a que me refiro. Barbosa conseguiu, em uma tacada só, fazer como o ex-presidente Fernando Collor quando confiscou a poupança dos brasileiros lá em 1990, deixando a esquerda perplexa e a direita indignada – ainda que, com o relator do mensalão, possa ser o contrário…
Ou não, porque talvez o novo “herói” da mídia tenha deixado esquerda e direita, simultaneamente, tão perplexas quanto indignadas.
Não deixa de ser alentador que alguém como Barbosa demonstre inteligência tão brilhante em um momento em que, como em 2010, o racismo, o preconceito e a hipocrisia afloram por ação do acirramento da guerra político-ideológica que, a partir deste momento, travará sua batalha mais renhida na Capital Bandeirante.
Barbosa desmonta teorias que a mesma ultradireita nazifascista que saiu da toca em 2010 volta a espalhar sobre negros e nordestinos. Inclusive, escrevo logo após ter visitado um site de evidente teor neonazista – ainda que não aluda a esse movimento degenerado – e que tece teorias malucas sobre inferioridade intelectual e comportamental dos negros.
Outra observação: se algum membro do Ministério Público ou qualquer outra autoridade competente vier a ler este post, para conhecer o tal site racista basta clicar aqui.
Essa teoria pervertida se torna ainda mais delirante quando se vê alguém como Joaquim Barbosa, o garoto pobre, filho de pedreiro, que se tornou uma sumidade do Direito e um dos brasileiros mais cultos do cenário público.
Não é por outra razão que sou daqueles que tentam se conter diante do desempenho decepcionante que esse vencedor, essa verdadeira sumidade intelectual, esse guerreiro destemido está tendo em relação à parcela dos réus do julgamento do mensalão cuja presunção de culpa continua amparada em mera subjetividade, ainda que a parcela maior desses réus tenha culpa que esta página jamais negou por sempre ter dito que, nesse processo, há inocentes e culpados.
Preocupa-me, entretanto, muita coisa que tenho lido sobre Barbosa nas redes sociais. Em alguns momentos, a indignação (justa) com a fúria condenatória indiscriminada de Barbosa descamba para a seara do preconceito, de forma que sugiro a quem esteja criticando o relator do mensalão que pense no que vai dizer antes de criticá-lo.
Mas o que foi que esse homem intrigante disse à Folha para merecer análise tão cuidadosa? Como foi que ele deixou os dois lados (mídia tucana, PSDB, PT e militância petista) tão cheios de dedos diante de suas palavras?
Barbosa conseguiu provar que não faz o que faz por medo da mídia. Surpreendeu o jornal que, desavisado, deu-lhe espaço: declarou que a imprensa adota “dois pesos e duas medidas” ao se referir a escândalos de corrupção petistas e tucanos e declarou que, após analisar todo o inquérito do mensalão, votou em Dilma Rousseff.
E que, mais importante, antes votara duas vezes em Lula, a quem encheu de elogios.
Barbosa, pois, mandou um recado aos amiguinhos oficiosos do tal site neonazista. Agora, sabem que não devem contar consigo para envolver Lula no mensalão 2 com o qual andam sonhando.
Todavia, agindo assim Barbosa adquiriu certa respeitabilidade para sua fúria condenatória, a qual este blog jamais atribuiu ao medo da mídia que assola seus pares e que não afeta a si, como fica sobejamente provado pela entrevista que deu, sendo sua motivação, na opinião do blogueiro, absolutamente personalista, revelando desejo de se projetar no cenário político nacional.
Com a entrevista desconcertante que deu, entretanto, Barbosa, sabiamente, afastou-se de grupos midiáticos de ultradireita como a revista Veja, que tem em seu quadro societário um grupo empresarial sul-africano, o grupo Naspers, estreitamente vinculado ao Partido Nacional, que legalizou o regime do Apartheid na África do Sul.
Sábia decisão de Barbosa, que apareceu na última capa da Veja como “super-herói” das elites brancas brasileiras. Afinal, o último “herói” dessa publicação, o “mosqueteiro da ética” Demóstenes Torres, não colheu bons frutos de sua aliança com ela…
Não posso, por essas e por outras razões, deixar de me encantar com a inteligência privilegiada de Joaquim Barbosa. Estou me divertindo com o “silêncio” ensurdecedor da mídia golpista (inclusive da própria Folha) diante da acusação de ser tucana que seu “herói” lhe fez do alto da isenção que seu comportamento ao julgar o mensalão lhe confere.
A verdade sobre esse personagem interessantíssimo que é Joaquim Barbosa? Fica difícil decretar “verdades” sobre personalidade tão complexa, mas o que se pode dizer é que sua inteligência, sua coragem e seu maquiavelismo o credenciam para altos voos políticos. Só não posso garantir que venha a votar nele um dia…
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Leia, abaixo, a entrevista do ministro do STF Joaquim Barbosa à Folha de São Paulo
FOLHA DE SÃO PAULO
7 de outubro de 2012
Joaquim, o anti-herói
Relator do mensalão revela voto em Lula e Dilma, diz que a imprensa trata escândalos com dois pesos e duas medidas e que o racismo está estampado na TV.
MÔNICA BERGAMO
COLUNISTA DA FOLHA
O “dia mais chocante” da vida de Joaquim Benedito Barbosa Gomes, 57, segundo ele mesmo, foi 7 de maio de 2003, quando entrou no Palácio do Planalto para ser indicado ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A ocasião era especial: ele seria o primeiro negro a ser nomeado para o tribunal.
“Eu já cheguei na presença de José Dirceu [então ministro da Casa Civil], José Genoino [então presidente do PT], aquela turma toda, para o anúncio oficial. Sempre tive vida reservada. Vi aquele mar de câmeras, flashes…”, relembrava ele em seu gabinete na terça-feira, 2.
No dia seguinte à entrevista com a Folha, e nove anos depois da data memorável de sua nomeação, Joaquim Barbosa condenou Dirceu e Genoino por corrupção.
Para conversar com o jornal, impôs uma condição: não falar sobre o processo, ainda em andamento no STF.
O TELEFONE TOCA
Barbosa diz que foi Frei Betto, que o conhecia por terem participado do conselho de ONGs, que fez seu currículo “andar” no governo.
“Eu passava temporada na Universidade da Califórnia, Los Angeles. Encontrei Frei Betto casualmente nas férias, no Brasil. Trocamos cartões. Um belo dia, recebo e-mail me convidando para uma conversa com [o então ministro da Justiça] Márcio Thomaz Bastos em Brasília.” Guarda a mensagem até hoje.
“Vi o Lula pela primeira vez no dia do anúncio da minha posse. Não falei antes, nem por telefone. Nunca, nunca.”
Por pouco, não faltou à própria cerimônia. “Veja como esse pessoal é atrapalhado: eles perderam o meu telefone [gargalhadas].”
Dias antes, tinha sido entrevistado por Thomaz Bastos. “E desapareci, na moita.” Isso para evitar bombardeio de candidatos à mesma vaga.
“Na hora de me chamar para ir ao Planalto, não tinham o meu contato.” Uma amiga do governo conseguiu encontrá-lo. “Corre que os caras vão fazer o seu anúncio hoje!”
Depois, continuou distante de Lula. Não foi procurado nem mesmo nos momentos cruciais do mensalão. “Nunca, nem pelo Lula nem pela [presidente] Dilma [Rousseff]. Isso é importante. Porque a tradição no Brasil é a pressão. Mas eu também não dou espaço, né?”
O ministro votou em Leonel Brizola (PDT) para presidente no primeiro turno da eleição de 1989. E depois em Lula, contra Collor. Votou em Lula de novo em 2002.
“Vou te confidenciar uma coisa, que o Lula talvez não saiba: devo ter sido um dos primeiros brasileiros a falar no exterior, em Los Angeles, do que viria a ser o governo dele. Havia pânico. Num seminário, desmistifiquei: ‘Lula é um democrata, de um partido estabelecido. As credenciais democráticas dele são perfeitas’.”
O escândalo do mensalão não influenciou seu voto: em 2006, já como relator do processo, escolheu novamente o candidato Lula, que concorria à reeleição.
“Eu não me arrependo dos votos, não. As mudanças e avanços no Brasil nos últimos dez anos são inegáveis. Em 2010, votei na Dilma.”
DE LADO
No plenário do STF, a situação muda. Barbosa diz que “um magistrado tem deveres a cumprir” e que a sociedade espera do juiz “imparcialidade e equidistância em relação a grupos e organizações”.
Sua trajetória ajuda. “Nunca fiz política. Estudei direito na Universidade de Brasília de 75 a 82, na época do regime militar. Havia movimentos significativos. Mas estive à parte. Sempre entendi que filiação partidária ou a grupos, movimentos, só serve para tirar a sua liberdade de dizer o que pensa.”
VENCEDOR E VENCIDO
Barbosa gosta de dizer que não tem “agenda”. Em 2007, relatou processo contra Paulo Maluf (PP-SP). Delfim Netto não era encontrado para depor como testemunha. Barbosa propôs que o processo continuasse. Foi voto vencido no STF. O caso prescreveu.
No mesmo ano, relatou processo em que o deputado Ronaldo Cunha Lima (PSDB-PB) era acusado de tentativa de homicídio. O réu renunciou ao mandato e perdeu o foro privilegiado. Barbosa defendeu que fosse julgado mesmo assim. Foi voto vencido no STF.
Em 2009, como relator do mensalão do PSDB, propôs que a corte acolhesse denúncia contra o ex-governador de Minas Gerais Eduardo Azeredo. Quase foi voto vencido no STF -ganhou por 5 a 3, com três ministros ausentes.
Dois anos antes, relator do mensalão do PT, propôs que a corte acolhesse denúncia contra José Dirceu e outros 37 réus. Ganhou por 9 a 1.
NOVELA RACISTA
Barbosa já disse que a imprensa “nunca deu bola para o mensalão mineiro”, ao contrário do que faz com o do PT. “São dois pesos e duas medidas”, afirma.
A exposição na mídia não o impede de fazer críticas até mais ácidas.
“A imprensa brasileira é toda ela branca, conservadora. O empresariado, idem”, diz. “Todas as engrenagens de comando no Brasil estão nas mãos de pessoas brancas e conservadoras.”
O racismo se manifesta em “piadas, agressões mesmo”. “O Brasil ainda não é politicamente correto. Uma pessoa com o mínimo de sensibilidade liga a TV e vê o racismo estampado aí nas novelas.”
Já discutiu com vários colegas do STF. Mas diz que polêmicas “são muito menos reportadas, e meio que abafadas, quando se trata de brigas entre ministros brancos”.
“O racismo parte da premissa de que alguém é superior. O negro é sempre inferior. E dessa pessoa não se admite sequer que ela abra a boca. ‘Ele é maluco, é um briguento’. No meu caso, como não sou de abaixar a crista em hipótese alguma…”
Barbosa, que já escreveu um livro sobre ações afirmativas nos EUA, diz que o racismo apareceu em sua “infância, adolescência, na maturidade e aparece agora”.
Há 30 anos, já formado em direito e trabalhando no Itamaraty como oficial de chancelaria -chegou a passar temporada na embaixada da Finlândia-, prestou concurso para diplomata. Passou. Foi barrado na entrevista.
DE IGUAL PARA IGUAL
É o primeiro filho dos oito que o pai, Joaquim, e a mãe, Benedita, tiveram (por isso se chama Joaquim Benedito).
Em Paracatu, no interior de Minas, “Joca” teve uma infância “de pobre do interior, com área verde para brincar, muito rio para nadar, muita diversão”. Era tímido e fechado.
A mãe era dona de casa. O pai era pedreiro. “Mas ele era aquele cara que não se submetia. Tinha temperamento duro, falava de igual para igual com os patrões. Tanto é que veio trabalhar em Brasília, na construção, mas se desentendeu com o chefe e foi embora”, lembra Joaquim.
O pai vendeu a casa em que morava com a família e comprou um caminhão. Chegou a ter 15 empregados no boom econômico dos anos 70. “E levava a garotada para trabalhar.” Entre eles, o próprio Joaquim, então com 10 anos.
RUMO A BRASILIA
No começo da década, Barbosa se mudou para a casa de uma tia na cidade do Gama, no entorno de Brasília.
Cursou direito, trabalhou na composição gráfica de jornais, no Itamaraty. Ingressou por concurso no Ministério Público Federal.
Tirou licenças para fazer doutorado na Universidade de Paris-II. E passou períodos em universidades dos EUA como acadêmico visitante. Fala francês, inglês e alemão.
Hoje, Barbosa fica a maior parte do tempo em Brasília, onde moram a mãe, os sete irmãos e os sobrinhos. O pai já morreu. Benedita é evangélica e “superpopular”. Em seu aniversário de 76 anos, juntou mais de 500 pessoas.
O ministro tem também um apartamento no Leblon, no Rio, cidade onde vive seu único filho, Felipe, 26. Se separou há pouco de uma companheira depois de 12 anos de relacionamento.
PÚBLICO
A Folha pergunta se Barbosa não tem o “cacoete da condenação” por ter feito carreira no Ministério Público, a quem cabe formular a acusação contra réus.
“De jeito nenhum. O que eu tenho do MP é esse espírito de preocupação com a coisa pública. Mesmo porque não morro de amores por direito penal. Sou especialista em direito público.”
DEVER
Nega que tenha certa aversão por advogados [ver página ao lado]. E nega também que tenha prazer em condenar, sem qualquer tipo de piedade em relação à pessoa que perderá a liberdade.
“É uma decisão muito dura. Mas é também um dever.”
“O problema é que no Brasil não se condena”, diz. “Estou no tribunal há sete anos, e esta é a segunda vez que temos que condenar. Então esse ato, para mim e para boa parte dos ministros do STF, ainda é muito recente.”
Diante de centenas de grandes escândalos de corrupção no Brasil, e de só o mensalão do PT ter chegado ao final, é possível desconfiar que a máquina de investigação e punição só funcionou para este caso e agora será novamente desligada?
“Não acredito”, diz Barbosa. “Haverá uma vigilância e uma cobrança maior do Supremo. Este julgamento tem potencial para proporcionar mudanças de cultura, política, jurídica. alguma mudança certamente virá.”
MEQUETREFE
O caso Collor, por exemplo, em que centenas de empresas foram acusadas de pagar propina para o tesoureiro do ex-presidente, chegou “desidratado” ao STF, diz o ministro. “Tinha um ex-presidente fora do jogo completamente. E, além dele, o quê? O PC, que era um mequetrefe.”
O país estava “mais próximo do período da ditadura” e o Ministério Público tinha recém-conquistado autonomia, com a Constituição de 1988. Até 2001, parlamentares só eram processados no STF quando a Câmara autorizava. “Tudo é paulatino. Mas vivemos hoje num país diferente.”
PONTO FINAL
Desde o começo do julgamento do mensalão, o ministro usa um escapulário pendurado no pescoço. “Presente de uma amiga”, afirma.
Depois de flagrado cochilando nas primeiras sessões, passou a tomar guaraná em pó no começo da tarde.
Diz que não gosta de ser tratado como “herói” do julgamento. “Isso aí é consequência da falta de referências positivas no país. Daí a necessidade de se encontrar um herói. Mesmo que seja um anti-herói, como eu.”