O lixo de luxo

Crônica

Há décadas que, na véspera de Natal, minha família é tomada por um ritmo frenético de trabalho voluntário que consiste em preparar, além da Ceia Sagrada, marmitas de alumínio e pacotes contendo brinquedos usados que vamos reunindo ao longo do ano. Depois, saímos pelo bairro distribuindo as doações a uma população de rua que, nessa época, abunda aqui na região da Avenida Paulista.

Neste ano, porém, foi mais fácil. Não precisamos procurar as pessoas às quais faríamos as doações, pois elas vieram até nós. A rua em que residimos foi praticamente invadida por essas famílias desabrigadas por ações de reintegração de posse, por estarem recém-chegando a São Paulo ou por viverem nas ruas mesmo.

Não é novidade, para quem vive nos bairros ditos “nobres” de São Paulo, nas noites de véspera de Natal e Ano Novo ver famílias inteiras – quase sempre negras ou mestiças e com muitas crianças – remexendo o lixo. E elas continuam lá no dia seguinte, invariavelmente mergulhadas nessa tarefa deprimente e frenética.

Essas famílias reúnem-se em torno dos suportes para lixo fincados diante dos imóveis de modo a abrirem aqueles sacos de plástico negro em busca de comida, roupas e até de brinquedos “em bom estado” que os mais abastados jogam fora. Inquiridas sobre o que fazem, dizem que o maior desperdício nos bairros ricos é o que produz um “lixo de luxo”.

Na véspera do Natal deste ano, enquanto a esposa preparava as doações para irmos distribuir antes da meia noite, olho pela janela da área de serviço e deparo com uma cena que me reduziu o coração a pó.

A fartura de comidas e presentes do lado de dentro de minha residência contrastava, de forma lancinante, com a cena de uma família negra, esfarrapada, organizada em torno do suporte para lixo. Parecia uma linha de produção industrial. Os grandes sacos de lixo eram passados de mão em mão até serem despejados na calçada, onde era feita a triagem do que poderia ser aproveitado.

Chamei a esposa e sugeri que, como havia famílias em mais de um ponto da rua dedicando-se àquela tarefa humilhante, fizéssemos ali mesmo, à porta do nosso prédio, o que costumamos fazer perambulando de carro pelo bairro.

Mulher e filho, então, lotaram o elevador com as doações e saíram à rua ao encontro daquela pobre gente para a qual os moradores do bairro lançavam olhares de reprovação por estarem “fazendo sujeira”. Quando se aproximaram, os surpresos catadores de lixo, percebendo os embrulhos de presente e as marmitas de alumínio, cercaram-nos.

Enquanto conversavam com os desvalidos de todas as idades, vizinhos nossos romperam a indiferença e se aproximaram para saber “o que estava acontecendo”. Depois, a esposa relatou que pensaram que ela e meu filho estavam sendo assaltados (!?).

O que machuca mais, em tudo isso, não é só a visão que os favorecidos pela sorte têm dos indigentes. O mais trágico é a indiferença. Enquanto se entrega ao consumismo, essa patética classe média alta mostra que se condicionou a não se comover com tragédias sociais e a enxergar as vítimas da injustiça social como vândalos e até mesmo como criminosos.

Entregamos as doações e, com a consciência anestesiada pela caridade cômoda, voltamos ao refúgio do lar e, da janela do apartamento, ficamos assistindo ao desenlace da cena dantesca. As famílias pobres, após extraírem o possível dos sacos, colocaram tudo de volta neles, deixando a rua até mais limpa, pois o lixo de luxo nem sempre é embalado corretamente por quem o produz.