O preço de deslegitimar o poder e a política
Estive ontem (17.6) na manifestação de São Paulo contra o preço das passagens no transporte público, no Largo da Batata, zona Oeste da cidade. Cheguei às 16 horas e permaneci entre os manifestantes até por volta das 19 horas, quando empreendi uma epopeia pra voltar pra casa.
Descendo a rua Cardeal Arcoverde de carro, acompanhei a procissão de jovens que se estendia por quarteirões. Todos no mesmo rumo, todos com o mesmo ar contrito e de determinação nos rostos.
Encontrei um estacionamento estrategicamente localizado a pouco mais de um quarteirão do Largo. “Fecha às 20 horas”, disse-me o manobrista, caixa e, provavelmente, tudo o mais naquele terreno descoberto, com chão de terra e convertido em estacionamento.
Já na Brigadeiro Faria Lima, a algumas centenas de metros do Largo, já não caminhavam pelas calçadas, mas no meio da rua. Um ou outro carro passava, desviando dos pedestres, agora donos da via, como se os motoristas pedissem desculpas por estarem onde não deviam.
Ao longe, grandes bandeiras brancas e vermelhas se erguiam de uma massa humana que me impressionou por ser tão grande a uma hora do horário previsto para o início da manifestação. Nas bandeiras brancas, as letras UJS (ou algo assim) e, nas vermelhas, PSTU.
Agora faltavam menos de cem metros pra chegar à aglomeração. Uma juventude bonita e evidentemente universitária. As idades variando entre 15 e 30 anos, no máximo. Aqui e ali, algumas pessoas maduras. Senhoras com cabelos loiros, homens grisalhos, todos com aparência próspera.
Os comerciantes iam fechando as portas e os trabalhadores da região passavam apressados. Pareciam assustados. Alguns comentavam que não sabiam como fariam pra chegar em casa, mas ninguém prestava atenção neles – além deste que escreve.
Para um carro grande, prateado, tinindo de novo, do qual não me ocupei de ver a marca. Desce um homem corpulento, cabelos grisalhos, calça social, camisa social com o botão do colarinho aberto, de onde pendia uma gravata afrouxada.
De repente, o veículo é cercado por um grupo de três garotas e cinco rapazes. O homem circunda o veículo e, com o porta-malas já aberto, tira dele vários quadros com uns 40 centímetros de largura por quase um metro de comprimento.
Os quadros de madeira recobertos por material gráfico de boa qualidade citam “corrupção”.
O motorista engravatado diz alguma coisa ao grupo de jovens e arranca com o veículo.
Chego ao limite da aglomeração. Grades de cerca de 1, 5 metro separam o extremo da calçada do Largo da via dos carros. Aproveito um poste metálico próximo pra subir nelas segurando-me nele, de forma a ter uma visão melhor da aglomeração e registrar imagens.
Um grupo de jovens passa por mim dizendo que fora “sacanagem” o que fizeram com o repórter da Globo Caco Barcelos, que seria “boa gente”. Decido ir atrás pra escutar mais, tomando cuidado em não ser percebido.
Descubro que o repórter foi expulso da manifestação e que havia um grupo que pretendia impedir o trabalho de qualquer um que fosse da Globo, porque a emissora “queima o filme” do protesto.
Percebo que as bandeiras do PSTU sumiram. Pergunto a uma garota se viu pra onde foram e ela me explica que os que as portavam foram convencidos a não exibi-las.
Presto mais atenção e vejo, a uns 50 metros, uma única bandeira vermelha, só que pequena. Olhando melhor, percebo ser do PT. Decido ir lá ver quem a carrega.
Ao chegar já não era uma bandeira, mas duas. Modestas em tamanho, diante das outras. Uma, empunhada por uma jovem negra, baixinha, que olhava assustada ao redor. A outra, por um rapaz loiro, cabelos longos e óculos. Também parecia tenso.
Começamos a conversar com os dois e logo aparece o deputado federal pelo PT paulista Paulo Teixeira, com mais duas pessoas. Fico sabendo que outros parlamentares, de vários partidos, foram ao protesto de modo a “garantir o direito dos manifestantes”.
Naquele momento, com a chegada do deputado, as pessoas em volta começam a entoar um refrão contra bandeiras partidárias. Algo como “Sem par-ti-do, sem par-ti-do”.
Os dois jovens permanecem impassíveis com suas bandeiras. Ao contrário dos que portavam as do PSTU, não foram convencidos. Foram apupados. Mas permaneciam impassíveis na missão que se impuseram.
Os gritos aumentam, mas os dois jovens continuam firmes. Uma aglomeração se forma em volta de nós. Ouço palavrões. Peço à moça e ao seu companheiro que baixem seus estandartes. O rapaz me atende, mas a moça não.
Começam empurrões e xingamentos. Ouço alguém dizer “blogueiro petralha, filho da puta”.
Alguém arranca a bandeira da mão da moça e a empurra, ela cai, seu companheiro reage, há chutes, mais palavrões. Os contrários às bandeiras são maioria esmagadora – ou melhor, são todos.
No empurra-empurra, sou separado do deputado petista e de seu grupo. E dos dois valentes porta-estandartes.
Nesse momento, uma quantidade imensa de pessoas – pareceram-me centenas – começa a entoar um cântico: “Hei, PT, vai tomar no cu!!”
Tento filmar, acredito ter filmado, mas quando chego em casa percebo que o empurra-empurra interrompeu o vídeo, no qual só se pode ouvir “Hei, PT, vai tom (…)”.
Tudo pode ser assistido no vídeo ao fim do texto.
Ouço alguém falando em “blogueiro do PT” e percebo que é hora de uma retirada estratégica. Embrenho-me na multidão até chegar à rua, que atravesso. Dali em diante, decido acompanhar tudo de longe.
Já anoitece e vejo fumaça e luminosidade colorida no meio da massa. Parecem ser fogos de artifício ou coisa que o valha, mas não consigo me certificar.
Ouço mais cânticos contra o PT. Arrisco chegar perto e uma mulher branca, alta, aparentando uns trinta e poucos anos discursa contra “mensaleiros” e diz que “O PT tem mesmo que se ferrar”.
Decido sair dali. Contorno a manifestação. Um grupo bem menor, de umas dez pessoas, entoa “O povo não é bobo, abaixo a rede Globo”.
Contorno mais um pouco a manifestação e vejo mais movimentação. E gritam “Sem violência, sem violência”. Percebo que está havendo um enfrentamento físico.
Chego próximo a um grupo bem maior em que, lá no meio, vejo cartazes em que só consigo ler “Alckmin” e “PM”, por conta do empurra-empurra. Parece haver divergência ali também.
Decido que é hora de ir. Enquanto retorno ao estacionamento, vejo os trabalhadores passando rentes à parede, passo rápido. Mulheres de saias e cabelos longos, de mãos dadas com crianças, olhar no chão.
Um homem magro, de uns quarenta anos, de boné, malha de lã bege e puída, calça suja de tinta e de tudo mais que se possa imaginar carrega uma mochila, apressado. Decido tentar falar com ele.
Digo que sou jornalista e se poderíamos conversar. Pergunto se veio participar da manifestação.
— Não, senhor, não tenho nada a ver com isso.
Insisto. O que ele acha de tudo aquilo? Fica nervoso. Diz que não sabe de nada, principalmente como vai chegar em casa, em Ferraz de Vasconcelos.
As passarelas sobre a avenida estão lotadas de trabalhadores andando apressados. Parecem robôs. Nem olham pros lados e ninguém olha pra eles. Alguns estão sentados, outros de pé nas paradas. Olhares perdidos no espaço.
Volto ao estacionamento, percebo que não conseguirei ir em frente na Faria Lima, dobro à direita, faço uma opção errada e caio, de novo, no Largo da Batata, agora intransitável.
Carros, ônibus, caminhões e até uma legião de motocicletas parados, presos entre manifestantes à frente, atrás, dos lados.
Ouço a sirene de uma ambulância. Os carros começam a subir nas calçadas, fazendo o possível pra dar passagem. A ambulância só consegue chegar até os manifestantes e estanca. Alguns saem do caminho, mas a maioria não dá a menor bola.
Um senhor de uns sessenta anos, com uma mulher mais ou menos da mesma idade no banco do passageiro, desce do carro e começa a xingar os manifestantes, falando da ambulância. Um jovem forte se aproxima, desafiador, mas é dissuadido por outros manifestantes.
Consigo chegar à Marginal do Rio Pinheiros, totalmente parada. Já são mais de oito horas da noite. Começo a tentar cortar por ruas transversais, disparo por avenidas vazias e acabo indo parar no Alto da Lapa.
Tento me localizar, que não conheço bem a região. Apelo ao GPS do celular, mas a bateria acaba.
Paro em um posto de gasolina. Três frentistas conversam com um homem mais ou menos com os mesmos cinquenta e tantos anos que eu, dono de uma Pajero negra, novinha, sendo abastecida até a tampa.
Paro o carro na bomba, mando abastecer e peço pra deixarem eu carregar um pouco o celular. Sou prontamente atendido. Digo que vai demorar um pouco. Dizem-me que “hoje não adianta ter pressa”.
Começamos a conversar. O assunto, claro, o caos na cidade. O motorista da Pajero tem sotaque nordestino. Está muito bravo com a Polícia. Xinga de tudo quanto é nome. Fala da foto da repórter da Folha com o olho arrebentado por uma bala de borracha.
Os frentistas só olham, sorridentes, mas não dão palpite. Como se estivessem em uma aula, tentando aprender alguma coisa – talvez o que “bacanas” como eu e meu novo amigo nordestino esperam ouvir deles quando forem perguntados sobre o assunto.
Pergunto como sair dali e minhas opções imediatas, segundo dizem os frentistas, é a Lapa ou voltar ao Largo da Batata.
O motorista da Pajero diz que vai me ajudar, que sabe como ir cortando até a Cerro Corá. Dali posso pegar a Rebouças, diz, pra voltar à região da Paulista, onde resido.
— Vem atrás de mim. Vou te escoltar até lá. Quando eu ligar o pisca-alerta vou entrar à esquerda e você, à direita. Vai subindo, sempre pra cima, mas fica à sua esquerda. Vai cair na Cerro Corá. De lá você pergunta.
Explico que, de lá, eu me viro.
Sigo-o até que faça a manobra combinada. Buzino, ele buzina de volta e vamos cada um cuidar da própria vida.
Surpreendo-me com a Heitor Penteado e a Rebouças. Parece que estou em um domingo às sete da manhã. Vazia. Não se vê viva alma nas ruas. Nem gente, nem carros, ônibus, motos, nada.
Já são quase 21 horas. Duas horas pra chegar até lá.
Ouço na CBN que já há manifestantes na Paulista. Decido voltar pela Rebouças até a Oscar Freire, fazer o retorno e tomá-la em direção ao Paraíso.
Tudo vazio. Assustadoramente vazio.
Continuo ouvindo a rádio que toca – ou que, segundo dizem, “troca” – notícia. Agora falam que manifestantes estão passando em frente da Globo, na Berrini. E que outros tantos estão indo ao Palácio dos Bandeirantes.
Minha mulher me liga no celular recém-carregado, preocupada. Acalmada, relata que o Jornal Nacional disse que a Globo foi xingada pela manifestação.
PT, Alckmin, Globo…
Penso comigo que foi nisso que deu a mídia deslegitimar cotidianamente a política e o poder e seus críticos estimularem a descrença nela. Sobrou pra todo mundo. Pensando bem, era até previsível.
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