Como colar os cacos da esquerda

Análise

 

Colunistas, editorialistas, enfim, comentaristas em geral da grande mídia partidarizada estão eufóricos. Demorou uma década inteirinha para o governo federal regido pelo PT perder a boa imagem entre a maioria absoluta dos brasileiros, mas, finalmente, aconteceu.

O mais impressionante é que o fenômeno ocorreu em um mísero mês. Entre 1º e 30 de junho, dezenas de milhões de brasileiros de todos os estratos sociais, de todas as faixas etárias, de todas as regiões do país, de repente descobriram que estavam errados ao aprovar Dilma Rousseff.

Pior do que isso. Os acontecimentos do mês passado produziram uma divisão entre a esquerda muitíssimo mais profunda do que a que ocorreu nos primórdios do governo Lula, quando uma defecção do PT formou o PSOL, que se tornaria mais inimigo do partido do que o PSDB e o DEM.

Se o PSOL, desde o nascimento, tornou-se linha auxiliar da oposição de direita com a qual há muito vem fazendo coro nos ataques ao governo, agora – durante o junho catártico – o partido trouxera para o seu lado uma parte do PT e dos simpatizantes deste.

Culpa de Dilma, por certo, que se afastou dos movimentos sociais, dos sindicatos e da imprensa “alternativa” e se isolou em seu gabinete, atuando mais como gerente do que como presidente.

Todavia, apoiadores dos governos petistas que há uma década vêm desfrutando – de forma legítima, há que frisar – da amizade com o Poder, nunca pretenderam um rompimento definitivo. O apoio aos desatinos do Movimento Passe Livre foi, muito mais, um recado a Dilma.

A demonstração de força de setores da esquerda que há dez anos vêm se relacionando institucionalmente com os governos Lula e Dilma se deu através da união com um movimento estudantil-partidário que feriu de morte o governo federal.

No início dos protestos, quando esta página enfrentou a Onda que se formou e avisou sobre o que aconteceria – violência extremada, desmoralização do governo Dilma, danos à economia –, seu signatário, apesar de toda a sua história, foi chamado de “reacionário”.

O mesmo se deu com todo esquerdista que ousou ficar contra “as ruas”: virou “reacionário”, “falso esquerdista” etc.

Nada, porém, como o tempo. Hoje, você vê de petistas e psolistas a reacionários de ultradireita, neonazistas e até militares de pijama exaltando as manifestações.

A ficha de setores simpatizantes do governo que caíram no golpe do PSOL começou a cair quando tais setores se deram conta do que aqui se avisou tantas vezes, que a direita mais reacionária e truculenta era parte integrante das manifestações que ocorriam sob o mote da redução do preço do transporte público.

O que ocorreu foi que não dava para fazer distinção ideológica a fim de promover marchas pela redução do preço das passagens de ônibus e metrô. Dessa maneira, o MPL só visou engrossar as manifestações sem se importar com quem aderia a elas.

Um exemplo desse fato: após a rendição dos governos Geraldo Alckmin e Fernando Haddad no tocante ao preço das tarifas de ônibus e metrô, uma manifestação foi convocada para ocorrer diante da prefeitura paulistana no fim da tarde. Ainda pela manhã, este blog recebeu aviso de que na assembleia do MPL havia gente dizendo que iria quebrar a prefeitura e nem assim a manifestação foi cancelada.

Todo esse desastre ocorreu porque os ex-petistas que se tornariam fundadores do PSOL vislumbraram uma chance de ouro de se vingarem do PT por tê-los expulsado no início do governo Lula por divergirem da nova orientação do partido de não hostilizar o capital.

Assim, os setores simpatizantes e aliados do governo que aderiram à catarse junina só perceberam o buraco em que haviam enfiado esse governo e a si mesmos após a confirmação de outra das previsões que se fez aqui: de imenso prejuízo político ao governo Dilma.

Com efeito, a pesquisa Datafolha funcionou como um despertador…

Na semana passada, almocei com um amigo que esteve entre os que apoiaram as manifestações. Apesar da reticência em reconhecer o erro dessa postura, arranquei dele a concordância com que aquelas manifestações não foram boas para o país.

Disse a ele que, ironicamente, eu seria um dos menos afetados por uma eventual vitória da direita demo-tucano-pepessista na eleição presidencial do ano que vem, pois não dependo de relação com o governo para subsistir.

Vivo do comércio. Não vivo de blog, de publicação alguma, de site, de ONG, nada. E continuarei vivendo assim seja quem for que estiver no Poder.

E só para não dizer que um governo tucano me seria indiferente, no aspecto pessoal, é mais do que previsível que um eventual governo como esse sobrevenha com uma extensa lista de vinganças, sendo liderado por alguém como Serra.

O mais tétrico nesse quadro é que hoje o pré-candidato mais forte da oposição é ninguém mais, ninguém menos do que Serra. Com ele como presidente, alguns desdobramentos se tornam absolutamente previsíveis.

Em primeiro lugar, com a volta do PSDB ao Planalto haveria uma adesão incondicional de toda a grande mídia – incluindo, aí, a Rede Record – aos novos donos do Poder. Logo após serem eleitos, os acordos começariam.

Imagine, leitor, os Irmãos Marinho, Edir Macedo, família Saad, Sílvio Santos, jornalões e revistas semanais, enfim, toda a grande imprensa a serviço do governo federal. Não seria um governo, seria uma ditadura inquestionável, incontrastável.

Veja o PSDB paulista, que conta com a proteção da imprensa local: está há 20 anos no governo do Estado e continua com alta aprovação, apesar do desastre em que São Paulo mergulhou. Tudo por conta de uma mídia que atribui ao governo federal a responsabilidade do governo estadual.

E nessa mídia, com o PSDB no Poder central, haveria um forte expurgo de profissionais que no passado não aderiram à onda anti-Lula e Dilma e que atacaram o agora presidente José Serra, que, como todo jornalista sabe, tem na vingança um projeto de vida.

Os partidos realmente de esquerda da base aliada, como o PC do B, não teriam recurso a não ser irem para a oposição – com tudo o que significa deixar de ser aliado ao Poder, com perda de ministérios e cargos públicos.

Estando toda a mídia e o Poder de Estado na mão de Serra e com o Brasil organizado economicamente, com muitas centenas de bilhões de dólares em caixa, com o pré-sal etc., seriam vinte anos de governos conservadores – ou, então, eclodiria uma guerra civil, caso houvesse reversão muito brusca das políticas sociais.

Isso sem falar no saque ao patrimônio público – que fará o da era tucana (privataria) parecer brincadeira de criança – e no desmonte de políticas sociais – uma temeridade que pode incendiar o país.

Após pintar o quadro ao amigo do qual a ficha caiu após o tombo espetacular de Dilma, ele, como tantos outros que simpatizaram com as manifestações, perguntou-me o que fazer agora…

Os aliados e simpatizantes do governo Dilma que se uniram à catarse das manifestações agiram assim devido à falta de interlocução de Dilma com movimentos sociais e sindicatos, pela escassez de verbas da Secom para a imprensa alternativa e por medidas de governo consideradas “de direita”.

Pedi ao amigo a que me referi que imaginasse, agora, como seria o diálogo de todos esses setores com a Secom de um governo Serra ou com o resto desse governo. E não precisei dizer muito mais…

O que fazer?, perguntou-me de novo o amigo. E não foi o único. O que mais tenho ouvido ou lido de interlocutores, desde a pesquisa em que Dilma afundou, é isso: e agora, o que fazer?

Essa é a resposta de um bilhão de dólares.

Se houvesse uma calmaria na política para que as pessoas refletissem que não é possível alguém achar um governo bom ou ótimo em uma semana e regular, ruim ou péssimo na semana seguinte, talvez fosse possível Dilma recuperar sua boa imagem. Contudo, não será assim.

A artilharia contra o governo Dilma continua. A mídia torpedeou com facilidade a reforma política e o plebiscito. A base aliada, como era previsível com a queda de Dilma nas pesquisas, negou apoio. Enquanto isso, as traições vão aumentando.

A estratégia da reforma política para o governo retomar a iniciativa serviu apenas para a mídia pintar Dilma como desorientada, perdida, que não sabe nem o que propõe.

A irracionalidade de uma esquerda sem liderança e dividida a fez entoar um “volta Lula”, que, se não parar, além de sepultar Dilma de vez ainda afetará o próprio Lula, tirando da esquerda a única esperança que resta para não entregar o Poder a uma direita psicótica que quer fazer o país concentrar renda e pobreza em benefício de uma elite minúscula.

O que fazer, diante desse quadro? Tenho respondido aos amigos que me trazem essa questão que tampouco sei o que fazer, mas que sei, exatamente, o que não fazer.

Ninguém sonha em trazer o PSOL ou o PSTU para a coalizão à esquerda que pode impedir que o Brasil mergulhe em uma era de conservadorismo que fará esses dois partidos se arrependerem profundamente da vingança infantil que empreenderam contra o PT, mas os que estiveram com Lula e Dilma desde 2003 e que se dividiram ao longo de junho têm que pôr o rancor de lado e voltar a trabalhar juntos.

Volto a repetir – como aviso e vaticínio – que todo aquele que apoiou esse movimento esquizofrênico que fez o Brasil mergulhar em protestos violentos e sem causa e que ainda não caiu na real, está cavando a sua própria cova.

E quero repetir que este que escreve é dos que menos terá a perder com a volta da direita demo-tucana ao Poder justamente por, ao longo dos últimos dez anos e tanto, não ter obtido nada dos governos Lula e Dilma. Até por jamais ter pedido alguma coisa.

A pacificação da esquerda, porém, não depende só da militância, dos simpatizantes, dos movimentos sociais, dos sindicatos, da mídia alternativa etc.; depende, também, de Dilma. Ou ela começa a dialogar ou vai atirar o país no colo de Serra e sua turma.