Motim de “aliados” mostra como é difícil governar o Brasil
No primeiro turno da eleição presidencial de 1989, votei em Mario Covas “por falta de opção”. Aos 30 anos, foi meu primeiro voto para presidente e eu, tanto quanto qualquer outro, sabíamos que teríamos que “acertar” na primeira eleição para esse cargo após quase três décadas sem votar. Nesse aspecto, Covas parecia mais “confiável”.
Apesar disso, havia um frisson em torno da figura carismática de Lula, o que, no futuro, mostrar-se-ia justificado. Muitos entenderam que suas dificuldades em usar a norma culta do idioma, comendo esses e violando a concordância verbal, não impediriam que, caso fosse eleito, fizesse um governo do povo, pelo povo e para o povo.
Contudo, não foram as suas dificuldades com o idioma ou a falta de um diploma universitário – argumentos dos seus adversários de então para desqualificá-lo – que me impediram de lhe dar meu voto no primeiro turno. Votei em Covas porque o PT me irritara profundamente ao se negar a assinar a nova Constituição, um ano antes.
“O PT é muito radical”, dizia eu. Poucos anos antes – como praticamente toda a juventude –, eu fora à rua pelas Diretas Já porque acreditava que o mero direito de votar para presidente colocaria fim à terrível crise econômica que a ditadura militar legara ao país. A nova Constituição, pois, simbolizava a era de liberdade e democracia que se descortinava.
Mas o PT, há um quarto de século, era o que o PSOL ou o PSTU são hoje; era contra “tudo isso que está aí”. Criticava todo mundo e acenava com soluções “milagrosas” que implantariam a felicidade e a prosperidade por decreto.
No segundo turno, porém, agora tendo que escolher entre Lula e Fernando Collor de Mello, não tive dúvida: não apenas votei em Lula, mas revi meu ponto de vista sobre ser radical. Sem radicalizar, de fato não se chegaria a lugar algum. Ao menos era nisso que eu acreditava.
Hoje, porém, como tantos outros entendo que foi melhor Lula não ter vencido. Se chegasse ao poder, acabaria deposto pelos militares. Se tivesse dado o calote na dívida externa, como o PT pregava ontem e o PSOL e o PSTU pregam hoje, teria sido um desastre. A interdependência mundial, produto da queda do Muro de Berlin, era inexorável.
Ainda assim, votei em Lula no segundo turno de 1989. O que me fez mudar tanto de ponto de vista foram as sujeiras inacreditáveis que Collor e a mídia fizeram contra ele. Ao longo da década seguinte, os golpes baixos que Lula sofreu iriam unindo a nação em torno dele.
Além disso, em minha visão o “caçador de marajás” tinha a palavra picareta estampada na testa. Era estupefaciente ver senhoras e mocinhas dizendo que votariam nele porque era “bonitão” e “falava bem”. Modéstia à parte, eu era um jovem politizado e não entendia como alguém poderia ser tão ignorante ao ponto de votar sob tal “critério”.
Nem dois anos depois, achar um eleitor de Collor era literalmente impossível. Seus eleitores, em peso, alegavam que tinham “votado em branco” ou “anulado” o voto. Essa falta de vergonha na cara revoltava ainda mais. Aí foi nascendo o mito Lula. Ele se tornou o candidato dos que repudiavam a hipocrisia, acima de tudo.
Até 1994, porém, a crescente força política de Lula era produto muito mais do emocional do que do racional, pois o PT ainda era uma espécie de PSOL vitaminado.
O PT rejeitava alianças com partidos que não partilhassem, ponto por ponto, os dogmas socialistas. Acreditava ser possível disputar eleições sem dinheiro, com um discurso messiânico e promessas difíceis de concretizar em um mundo que se tornava interdependente, no âmbito do Consenso de Washington e do fracasso do socialismo soviético.
Apesar de ter votado de novo em Lula, Fernando Henrique Cardoso – quem se apropriou do Plano Real, de Itamar Franco, por este tê-lo escolhido para ser a face política do plano, pois o tucano não era economista e não inventou plano econômico algum – salvou o país de ser governado por um partido que ainda não o entendia.
Pensando exclusivamente em um novo mandato desde que venceu a eleição de 1994, FHC destruiu um plano que poderia ter funcionado. Acomodou-se com o apoio desmesurado da mídia, que lhe deu licença para tudo e se absteve de qualquer questionamento a trapalhadas como manter o câmbio sobrevalorizado.
A derrota de Lula em 1994 – em uma eleição que parecia ganha, porque o desastre Collor, em tese, mostraria que o Brasil deveria ter votado no petista – fez o PT amadurecer. Em 1998, o partido já passara por um “aggiornamento”; entendeu a necessidade de alianças e que, sem dinheiro, ninguém chega ao poder.
O PT poderia ter vencido a eleição de 1998 e, se isso tivesse ocorrido, o país não teria afundado como afundou ao longo do segundo governo FHC. Porém, aquele foi o ano do que talvez tenha sido o maior estelionato eleitoral da história brasileira. Com ajuda da mídia, o presidente tucano conseguiu esconder do povo que o Brasil estava afundando.
Em 2002, Lula e o PT chegaram ao poder por duas razões: a primeira, porque, após errar com Collor e com FHC, a parte dos brasileiros que usa o cérebro em vez do fígado entendeu que Lula era a última opção que restava. A segunda razão reside em Lula e PT terem entendido que o Brasil não é de esquerda e que só um governo de coalizão como o de FHC seria factível.
Surgem, então, o “Lulinha paz e amor” e a “Carta aos Brasileiros”. Um e outro simbolizavam o amadurecimento do PT.
Finalmente havia um partido realmente social-democrata para realizar o que fosse possível, em termos de justiça social. O PT chegou ao poder respeitando o fato de que esta é uma sociedade conservadora e de que com um ideário exclusivamente de esquerda seria impossível chegar ao poder.
O resumo da ópera é que ninguém governa o Brasil sem alianças amplas, do ponto de vista ideológico.
A direita não governa sem uma pitada de esquerda porque este é um país com carências sociais literalmente explosivas e só a esquerda tem soluções para essas questões; a esquerda não governa sem uma pitada de direita porque o poder de sabotagem de sua antítese ideológica é imenso, pois a direita controla a mídia e o grande capital.
Chegamos, pois, a março de 2014. Lula, a sucessora que escolheu e o PT vêm sendo demonizados não só pelos ultraliberais tucanos e pela extrema-direita, mas pelo novo PT, ou melhor, pelos novos PT’s – pelo PSOL e pelo PSTU, sobretudo.
Pela esquerda, Lula, Dilma e o PT sempre são acusados de se aliarem a Sarney, Renan Calheiros, Maluf etc. Inclusive pela mídia conservadora, diga-se, e pelos ultraliberais demo-tucanos. Como se fosse possível alguém governar o Brasil só com a esquerda ou só com a direita.
A recente rebelião da base aliada – PMDB à frente – acaba de mostrar como é impossível governar o Brasil sem um leque amplo de alianças, inclusive com lideranças nitidamente de esquerda ou de direita.
Sem Sarney, Renan etc., o Congresso se torna um muro intransponível à governabilidade. O governo não aprova nada. Não haveria essa miríade de programas sociais que tiraram dezenas de milhões da miséria, por exemplo. Mas, claro, a direita que integra a coalizão governista não vai aprovar programas sociais para pobres sem uma contrapartida.
É uma hipocrisia desmesurada criticar a necessidade de governabilidade. É trapaça. É uma tentativa revoltante de enganar a sociedade.
Esse discurso que nega a necessidade de alianças visa sobretudo a esses garotos que não viveram tudo o que relatei neste texto e que, por isso, acreditam que seria possível um presidente fazer o que a ex-senadora psolista Heloísa Helena prometeu em 2006, quando disputou a Presidência: resolver tudo com “uma canetada”.
O melhor que qualquer governo de coalização – mas com viés de esquerda – pode fazer é exigir, como contrapartida aos cargos que tem que dar para saciar a direita, meios de ampliar o nível de escolaridade e de consciência política do povão, para que este entenda que pobre não pode votar em candidato que representa a “massa cheirosa”.
A grande sorte do Brasil é que Lula entendeu que sem Sarney, Renan, Maluf e outras lideranças de direita, saciando sua sede por cargos, ninguém de esquerda governa este país. A alternativa a fazer governos de coalizão será voltar aos governos conservadores como os de Sarney, Collor e FHC. De triste memória.