Autor dá verdadeiras aulas de história africana via Twitter

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Ale Santos é autor, pesquisador, colunista e mídia ativista de cultura afro-americana. Formado em publicidade, especialista em games e storytelling, ele vem conquistando cada vez mais público com seus tweets sobre os horrores da colonização e os heróis e heroínas da resistência negra. Ano que vem, vai reunir e aprofundar seus tweets num livro, pela editora Panda Books.

 

Na conversa abaixo, Ale Santos fala sobre sua vida entre as palavras, sobre os mitos e preconceitos que cercam a diáspora dos povos africanos e sobre a urgência de contar histórias num país onde tantos insistem em negar a verdade e o passado.

Acho que a gente podia começar falando da sua trajetória, de onde vem sua vontade de contar histórias…

Vem da infância. Nasci num bairro simples do interior, avós, tios e primos morando na mesma rua, jogando bola e fazendo música, todo mundo se ajudando. E isso criou em mim uma sensação boa de pertencimento.

Lá pelos oito, nove anos de idade, aprendi a jogar RPG. E foi jogando que comecei a ver a possibilidade de criar histórias que não existiam na cultura popular, na televisão, nos videogames. Por causa do RPG, comecei a ler. Lia muito mesmo, uns quarenta e tantos livros por ano. E escrevia também. Era até um jeito de fugir dos valentões da escola: fazia as redações deles e eles me deixavam em paz…

Depois de um tempo sem emprego, meu pai passou num concurso e nos mudamos para uma cidade maior. Uma cidade estranha, racista. Passei anos entrando e saindo de escolas públicas, morando num bairro que foi ficando cada vez mais perigoso. Mas tinha minhas leituras, meus estudos. Parei numa escola municipal bem estruturada, com times de basquete e atletismo. Junto com meu irmão gêmeo, virei corredor de 100 metros rasos, cheguei a conseguir uns índices, a ganhar medalhas em jogos regionais e a ficar entre os vinte primeiros do ranking nacional.

Até que ganhei uma bolsa do Prouni para cursar Propaganda na universidade. Como precisava ganhar dinheiro para ajudar em casa, deixei o esporte. Virei redator publicitário. Achava que era uma forma de expressar minha escrita. Fazia muito jingle, muito spot, mas não tinha chance de trabalhar com fantasia. Aí comecei a olhar para os blogs e as redes sociais como forma de expressão. Criei o RPG Vale e ali fui aprendendo a dinâmica da internet. Com ele recebi alguns prêmios nacionais e as primeiras propostas de trabalho para escrever mesmo.

Lá por 2012, resolvi procurar pessoas que estavam trabalhando com storytelling no Brasil e acabei fazendo uma parceria com o Fernando Palacios e a Martha Terenzzo. Foi nesse período que comecei a dar forma a minhas ideias, a aprender técnicas de roteiro, a me profissionalizar como storyteller. Em 2013, já estava participando de um concurso de ficção científica que a Intel promove no mundo inteiro. A organização gostou tanto do conto que mandei para a edição brasileira que me chamou para ser jurado e, no ano seguinte, fui escolhido para fazer parte de uma antologia internacional, a Tomorrow Project Anthology. Foi uma virada na minha vida de escritor.

 

Aí, cinco meses atrás, você começou a escrever sobre histórias africanas no Twitter…

Quem me conhece pessoalmente sabe que tenho esse hábito de contar histórias. E acho que tenho um faro para buscar histórias que ninguém conhece. Lembro que ficava aqui, fazendo o almoço, pegava o celular e falava para os amigos no WhatsApp: “olha só, vou contar uma história para vocês”. E eles falavam: “nossa, onde você leu isso?”

Ainda não conhecia a ferramenta do thread do Twitter, achava até uma coisa meio sem sentido, mas sempre contava histórias na vida pessoal, no blog, no WhatsApp… Aí, um dia, estava aqui no sofá, meio à toa, e resolvi criar uma thread para ver se era legal. As pessoas foram curtindo e, na minha terceira thread, sobre o Rei Leopoldo II da Bélgica, a coisa explodiu, chegou a mais de 1 milhão de visualizações. Comecei a colocar para fora todas as histórias que conhecia e sentia que as pessoas queriam ouvir. Fiquei meio maluco, queria contar todas as histórias…

 

Em poucas semanas, você ganhou mais de 40 mil seguidores, começou a colaborar com a imprensa, a participar de podcasts, documentários, programas de TV…

É muito louco isso… as pessoas estão descobrindo quem eu sou e o que eu posso fazer por elas. Ainda estou nesse processo. Depois que ganhei aquele concurso internacional em 2013, achei que as editoras iriam se abrir para mim, mas não foi o que aconteceu. Continuei sendo aquele cara que bate à porta pedindo para ser publicado. Acabei desistindo da carreira de escritor, “ah, ninguém quer saber das minhas histórias, deixa pra lá”. Mas meus seguidores salvaram meu sonho no Twitter. Do nada apareceu muita gente. Mês passado cheguei a 12 milhões de visualizações. Várias editoras vieram me procurar. Hoje mesmo estou enviando o original de meu livro, uma adaptação das threads para a literatura. Vou manter a linguagem simples e impactante do Twitter, mas com mais corpo, mais referências e um visual arrebatador. Vai sair em 2019 pela Panda Books.


O mais interessante das histórias que você conta no Twitter é que, ali, com textos muito curtos, você consegue questionar preconceitos seculares sobre a história da África e dos africanos. E isso vai gerando uma memória necessária para um país que conhece tão pouco sobre seu próprio passado.

As pessoas não sabem quase nada sobre história da África. Porque não aprendem na escola, na faculdade, em lugar nenhum. Eu também não sabia. Era um dos únicos negros na minha universidade, cotista. Meus colegas já tinham viajado, conheciam coisa pra caramba. Meu conhecimento era o que estava nos livros. Fui sentindo na pele as diferenças e tentando entender por que elas existem. Pensei: “preciso estudar mais, entender minha própria negritude, ir atrás da minha ancestralidade”.

Quando comecei a trabalhar com storytelling, entendi que tudo que a gente estuda é totalmente eurocêntrico, reproduz a visão do colonizador sobre a história. Eu precisava de visões diferentes. Então comecei a mergulhar nisso e pesquisar por conta própria. Descobri muita coisa sobre as mitologias africanas, a começar pela egípcia, que é muito rica e sofreu um processo de apagamento, de embranquecimento histórico.

 

Você poderia dar umas referências para quem quer seguir esse caminho?

Recomendo as obras de Joseph Ki-Zerbo. Ele foi um dos maiores historiadores africanos, passou décadas colaborando com a Unesco na edição de História Geral da África, que está disponível gratuitamente. Recomendo também A unidade cultural da África Negra, livro em que o historiador e antropólogo senegalês Cheikh Anta Diop confronta essa ideia de que o Egito antigo era uma civilização feita por brancos. No Brasil, temos o Abdias Nascimento, um dos nomes mais importantes da história do movimento negro brasileiro. Foi o primeiro Deputado Federal negro, dedicou a vida a escrever obras que questionavam o mito da democracia racial, como O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado, de 1978.

 

Qual você acha que é o maior, o mais nocivo de todos os equívocos que se perpetuam sobre a história da África? É a ideia de que os próprios africanos foram responsáveis pela escravidão? De que os povos da África são menos desenvolvidos?

Acho que o mais devastador é o mito de que os africanos eram culturalmente inferiores. O pensador alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel foi um dos defensores dessa tese que é a raiz de todos os outros equívocos e preconceitos. Por que as pessoas acreditam que os egípcios eram brancos? Porque antes acreditaram que os africanos não tinham intelecto suficiente para construir tudo aquilo.

No Brasil temos um mito igualmente devastador: somos o país que mais escravizou, mas muitos brasileiros não acreditam na escravidão. Vivemos uma amnésia coletiva. Meu avô nasceu em 1930. Provavelmente, os avós dele foram escravos. São quatro gerações entre mim e a escravidão. É muito recente. Mas as pessoas a negam. Em 1890, dois anos depois da abolição da escravatura, o hino à Proclamação da República já dizia: “Nós nem cremos que escravos outrora / Tenha havido em tão nobre País”. Isso para não falar no caso do Ruy Barbosa queimando documentos sobre compra e venda de escravos…

Esse esforço de esquecimento faz com que até hoje exista um tabu em torno da escravidão. O Brasil não institucionalizou a dor e a vergonha. A Alemanha transformou o nazismo numa vergonha institucional. Criou leis, museus, monumentos, documentários, memória. O Brasil não. A ponto de termos um presidente eleito que diz que não existe racismo no país. Quando você não institucionaliza a vergonha, as pessoas não tomam consciência dela. Ainda mais com um sistema educacional tão frágil, que não consegue ensinar nem o básico. Se não sabemos ler, como vamos compreender a história?

 

Você acha que esse esforço para apagar os traços da cultura africana na história brasileira explica a sub-representação dos negros na ficção brasileira?

Boaventura de Sousa Santos, professor da Universidade de Coimbra que pesquisa as relações entre colonização e eurocentrismo, diz que o mito da superioridade branca impregnou toda a produção cultural e midiática mundo afora. Se só vemos pessoas brancas na TV, não é apenas pelo negacionismo. É também por essa cultura racista que acha que o branco é mais bonito, mais vendável. Já ouvi muita gente falando que é melhor colocar brancos na propaganda, porque vende mais.

Você deve ter ouvido muitos absurdos no trabalho, na faculdade, na infância. Como pensa a relação entre a sua vida e a vida dos personagens históricos que você conta no Twitter?

As histórias que conto não deixam de ser sobre mim. A emoção é um dos melhores sinais de que a história é boa. Se estou lendo livro ou assistindo a um documentário e me sinto tocado pela emoção, sei que aquela história também é sobre mim, por trazer à memória algo que vivi nesta sociedade racista. E é nesse momento que digo: “preciso contar essa história, porque vai impactar outros negros que sofreram como eu”.

Muitas vezes, a gente tem a ilusão de que os problemas são nossos, individuais. Mas, quando a gente compartilha, percebe que vários outros homens e mulheres negras sofrem com os mesmos problemas. Se conto a história do Ota Benga, o pigmeu que foi escravizado, enjaulado e exposto no zoológico junto com os macacos, é porque os colegas me chamavam de macaco na escola. Se conto a história do holocausto belga no Congo, é porque estou olhando para o genocídio dos jovens negros nas periferias do Brasil. Se conto a história do Benedito Meia-Légua, o líder quilombola que resistiu ao racismo de maneira inventiva e astuciosa, é porque quero que as pessoas também me vejam dessa forma. Tudo que conto é um pouco sobre mim, sobre minha realidade. É pessoal.

 

Às vezes, dá a impressão de que estamos ouvindo cada vez mais vozes diversas nas mídias, na cultura pop, nos espaços de discussão. As coisas estão mudando no Brasil? 

É um movimento global. E não é de hoje. Naquela coleção História geral da África, Joseph Ki-Zerbo fala sobre os intelectuais negros que começaram a surgir nas décadas de 1950 e 60, momento em que a África pôde desenvolver suas próprias universidades e metodologias de pesquisa para confrontar mitos da historiografia racista.

O conhecimento liberta. E cria uma onda. O Brasil tem vivido uma onda nas últimas décadas. Faço parte de uma geração empoderada. A Nátaly Neri, o Spartakus Santiago, o Emicida, todos fazemos parte dessa geração que se empoderou através do conhecimento e da tecnologia. As pessoas estão ficando mais conscientes porque há mais fatos compartilhados. Infelizmente, não aprendi sobre racismo com meus pais. Aprendi com o mundo. E essa geração que se empoderou já está formando novas gerações mais conscientes, com mais acesso a conhecimento, estudos, universidades.

Costumam dizer que a gente não deve dividir o Brasil em raças, mas quem faz essa divisão são as estatísticas – ainda que muita gente negue, inclusive na política. Quando você vê as estatísticas sobre quem mais morre, quem menos ganha, quem tem menos emprego, menos acesso à saúde e à educação, você vê toda a desigualdade social e racial. E só vamos reequilibrar essa desigualdade com políticas positivas para a população negra.

 

Como você enxerga seu trabalho no meio de tudo isso? Que tipo de contador de histórias você imagina ser e aonde quer chegar?

Eu me vejo como um dos tijolos que estão ajudando a reconstruir o imaginário negro brasileiro. Várias outras pessoas estão nessa missão, com impacto muito maior, mas me vejo como parte dessa reconstrução.

E não quero escrever só no Twitter. Quero fazer literatura, teatro, cinema, tudo que estiver ao meu alcance. Não me considero um historiador, estou longe disso. Não quero que as pessoas leiam meus tweets e aceitem tudo sem questionar. Quero que minhas histórias sejam uma porta para que as pessoas possam descobrir e investigar mais. E que sejam também uma porta para que eu possa dar meus próximos passos, começando a escrever ficções com um olhar afrocentrado sobre todas as coisas. Porque vejo as narrativas como algo que conecta as pessoas, que emociona e consegue espalhar uma mensagem.

 

Você lembrou que o presidente eleito negou o racismo e relativizou a escravidão no Brasil. Ele também prometeu acabar com a demarcação de terras indígenas e sinalizou que vai virar as costas para convenções internacionais sobre meio ambiente, trabalho escravo, direitos humanos… Parece que contar histórias como as suas virou algo ainda mais necessário diante dos tempos sombrios que se anunciam.

Virou mesmo. Muita gente tem me falado isso. Sei que sou pequeno perto de outros comunicadores, mas estamos crescendo. As pessoas vão começar a confrontar o senso de realidade deturpado do novo presidente. Porque a mentira não se sustenta. Ele tem uma ideologia militar, que nega fatos cruciais da história brasileira. O exército parece ter medo da consciência negra, sabe que, se 56% da população começar a pensar como negro, muita coisa vai mudar. É por isso que me vejo como um impulsionador para pessoas que queiram descobrir uma história livre, contada por outras vozes. E acredito que, quando as pessoas olharem para mim, para cada um de nós que estamos reconstruindo o imaginário negro, elas vão nos ver como um quilombo mesmo, um espaço para se proteger e resistir.

Do Estadão