De novidade, governo Bolsonaro traz apenas ministros excêntricos
Aquele que, de boa-fé, aguardava o advento de uma “nova era”, se não segue embriagado na catarse das bolhas, está de ressaca. Nova mesmo, até aqui, só a excentricidade do ministério: um ministro das Relações Exteriores antipático às relações exteriores anunciou que “Deus está de volta”; um ministro da Educação antipático à diversidade já extinguiu a Secretaria de Educação Inclusiva (ambos indicados, via Facebook, por astrólogo anticomunista autoexilado); uma ministra-pastora antipática à fraternidade cristã defende ideologia de gênero particular, feita de príncipes e princesas; um ex-astronauta que veste macacão da Nasa em reunião de trabalho; todos antipáticos à ideologia do adversário, berrando uma infantil ideologia anti-ideológica. Se o primeiro escalão assusta, espere até olhar o segundo. Novo também é o grau de extremismo na repressão a minorias. Violência à vista. Prejuízo econômico também.
A novidade prometida — o combate à corrupção — não ganhou tração e parece estar em segundo plano: dos 22 ministros nomeados pelo presidente (que descumpriu a promessa de reduzir a 15 ministérios), nove têm pendências judiciais (que incluem acusações de tráfico de crianças e de fraudes a fundos de pensão, confissão de caixa dois seguida de pedido de desculpas, até condenação à perda de direitos políticos por improbidade). Bolsonaro avisou que isso não importa: “Mais grave que a corrupção é a questão ideológica”. Palavras vazias, traição à vista.
Passada a eleição, evento que esgarçou relações pessoais e consumiu nosso estoque de afetos e emoções, há de chegar a hora em que recobraremos serenidade para olhar os fatos do presente e do passado sem predisposição partidária. Bolsonaro orgulha-se de uma coisa em sua biografia: “Sou acusado de tudo, só não sou de corrupto”. Como não se aceitam autoafirmações de virtude por seu valor de face, melhor investigar, porque suspeitas há.
Um presidente democrático presta contas. As contas são de pelo menos três tipos, cada uma sujeita a uma modalidade de corrupção. “Prestar contas” pode se referir a: conta bancária e patrimônio privado; contas públicas; instituições de controle. Um cidadão interessado em vigiar a política deve cuidar dessas três frentes. As sinalizações de Bolsonaro não são promissoras em nenhuma delas.
Primeiro, a conta bancária e o patrimônio pessoal: não se explicou à sociedade como a família acumulou, ao longo de uma década de política parlamentar, um patrimônio de 13 imóveis avaliados em mais de R$ 15 milhões; tampouco se explicou como um ex-funcionário do gabinete de Flávio Bolsonaro pôde movimentar mais de R$ 1 milhão em sua conta bancária, por que pagou R$ 24 mil a Michelle Bolsonaro ou por que as entradas em sua conta coincidem com a data de pagamento da Assembleia Legislativa carioca. A funcionária-fantasma residente em Angra e o auxílio-moradia que Bolsonaro recebeu por mais de 20 anos, apesar de ter imóvel próprio, passaram batidos.
Segundo, as contas públicas: não basta anunciar cortes de gastos e reformas econômicas “para o bem do país” e omitir a dura competição distributiva pelo Orçamento. É preciso mostrar quem paga a fatura, quem ganha e quem perde, quem vive e quem morre, quem fica mais rico e mais pobre: explicar, por exemplo, o plano de perdoar uma dívida de R$ 17 bilhões de ruralistas, congelar o orçamento do SUS e manter benefícios fiscais à saúde privada. Não é só contabilidade, mas escolha dirigida por valores; ao lado da queda de braço política, ideologia. Vale insistir quando Paulo Guedes ladra e silencia.
Terceiro, Bolsonaro tenta neutralizar instituições de controle e accountability . Dois exemplos: ao atacar a imprensa e priorizar as redes sociais, foge quanto pode do contraditório e da esfera pública, espaço crucial do controle democrático; ao redesenhar ministérios e fazer transferências extravagantes de competências, não fez só remanejo técnico de funções, mas abalou a estrutura de freios e contrapesos que equilibra forças e interesses sociais dentro do edifício ministerial. Atribuir demarcação de terras indígenas ao Ministério da Agricultura e fundir ministérios da Fazenda, Planejamento e Indústria num superministério são dois exemplos. A arquitetura renovada não é inocente (e não economiza um tostão). É isso que se pode aferir até aqui da “nova era”. O que há de novo ameaça a liberdade; o que há de velho ameaça o patrimônio público.
Para que o culto à personalidade não nos roube a faculdade da razão, procure desconstruir mitos sobre o mito. Fiscalize as contas do presidente.
Conrado Hübner Mendes é doutor em Direito e professor da USP