Os riscos de tratar meninas como princesas e meninos como príncipes
“No momento em que coloco a menina igual o menino na escola, o menino vai pensar: ela é igual, então pode levar porrada. Não, a menina é diferente do menino. Vamos tratar meninas como princesas e meninos como príncipes”
A declaração da pastora Damares Alves, futura ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, surgiu como uma possível resposta aos abusos sexuais a que meninas e mulheres são acometidas no Brasil. Ela colocou que as mulheres têm que ser cuidadas desde a infância e também na escola como forma de combater os casos. [a futura ministra revelou que sofreu abusos de dois pastores durante a infância].
Pesquisadoras em gênero e educação reconhecem a importância do tema, mas questionam os exemplos dados por Damares, que conformam meninas e meninos como príncipes e princesas e orientam que as escolas os tratem de maneira diferente.
Para a doutora em Educação pela USP e coordenadora da Ação Educativa, Denise Carreira, ao tomar como referência o imaginário tradicional de príncipes e princesas para tratar meninas e meninos, a futura ministra retoma uma cultura tradicional de gênero, “essa que historicamente pensou e delimitou o lugar das mulheres como o da fragilidade, da passividade, o lugar de quem cuida, das emoções, e o dos homens como o lugar da força, da racionalidade, do ser ativo, do desbravador”, avalia.
Ela critica a visão conservadora do papel das meninas e meninos na sociedade e reconhece uma mudança em fluxo, muito por conta das lutas feministas. “Hoje, até nos desenhos infantis temos princesas que questionam essa dicotomia, esse lugar tradicional de gênero. Elas são guerreiras, cientistas, desbravadoras, ou seja, não se conformam mais nesse lugar conservador.
A pesquisadora e professora da Faculdade de Educação da UFMG, Adla Betsaida Martins, pós-doutora em metodologia de ensino, gênero e direitos humanos, também questiona o teor de fábula na declaração da futura ministra. “Estamos falando de direitos humanos, não podemos levar isso para o campo da fábula. Essa visão de que meninas são princesas reforça o estereótipo de que, nós, mulheres, somos fracas, inferiores e precisamos ser protegidas. Precisamos de leis e direitos iguais, entendendo que somos diferentes dos homens, mas também de outras mulheres. O que não podemos é ter oportunidades desiguais”, atesta.
Nesse sentido, a professora da UFABC Arlene Martinez Ricoldi, doutora em sociologia pela USP, aborda a necessidade das escolas garantirem espaço para a pluralidade. “Elas têm que estar abertas a diversos credos, formatos de famílias, valores morais, sempre com um limite ético que leve à reflexão sobre o que queremos reproduzir e sedimentar nas crianças”.
Para as pesquisadoras, isso é fundamental para que as crianças entendam que há várias feminilidades e masculinidades, o que significa que meninas e meninos podem e devem ocupar outros lugares na sociedade. “Queremos reafirmar, cada vez mais, a possibilidade de que homens e mulheres assumam seu lugar de ser humano mais pleno em suas diferentes dimensões”, aponta Carreira.
O risco de acomodar meninas e meninos em papeis delimitados é o de desperdiçar diversos potenciais, como aponta Adla. “Não teríamos mulheres atuando em áreas científicas e tecnológicas, nem homens sendo reconhecidos nas áreas das Linguagens e Artes”, exemplifica. Ela ainda explica que a ausência dessa formação mais ampla desde a infância pode acarretar inúmeras perdas pessoais na vida adulta. “No caso das mulheres, é perpetuar a condição de que tenham profissões menos valorizadas, com salários menores, baixa empregabilidade e não ocupem cargos de poder”, sentencia.
Segundo as entrevistadas, há também uma dimensão política na fala da futura ministra que deve ser acompanhada de perto. “Nem todo mundo entende o feminino e o masculino da origem religiosa dela, é precisar dar conta de muitas identidades do ponto de vista dos Direitos Humanos. Há pessoas de outras religiões, ou até que não tem religião, que não veem homens e mulheres de uma forma como ela tem colocado”, observa Adla. “Para ser ministra, ela não pode impor sua fé ou visão de mundo ou impedir que famílias eduquem seus filhos de maneiras diferentes do que ela traz em seus valores”.
Damares Alves é abertamente adepta da falsa ideia da ideologia de gênero, pauta que distorce os estudos de gênero numa perspectiva igualitária para meninas e meninos, e que foi capturada por movimentos políticos que tentam não só criminalizar a atuação de professores, mas também gerar um pânico moral nas famílias, caso do Escola sem Partido.
“É preciso ter claro que gênero não é só sexualidade. Trabalhar essas questões é abordar planejamento familiar, atuar na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, orientar meninas e meninos para que tenham uma vida sexual segura, e também para que saibam reconhecer potenciais casos de abuso”, coloca Adla Martins.
Motivos para isso, não faltam: segundo o Atlas da Violência 2018, as crianças são as maiores vítimas de estupro no Brasil, o tipo mais grave de abuso sexual, que ainda compreende outros atos de violação sexual em que não há consentimento da outra parte, como carícias indesejadas e sexo oral forçado.
Dados do estudo, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), mostram que 50,9% dos casos de estupro registrados em 2016 foram cometidos contra menores de 13 anos de idade; 30% dos casos foram praticados por conhecidos e amigos da família; pais e padrastos se responsabilizam por 12% dos crimes.
Adla fala sobre a necessidade de se garantir liberdade aos professores para que atuem nesse sentido, já que muitas vezes eles são as figuras a quem crianças e adolescentes recorrem nesses casos, e também que as escolas se aproximem das famílias no sentido de explicar o que vai ser trabalhado e a importância dessas questões.
Denise Carreira reitera o que espera da ministra: “considerando suas manifestações públicas contrárias às desigualdades salariais entre homens e mulheres, e reiterando a necessidade de o Brasil superar esse quadro profundo e destrutivo de violência de gênero, esperamos que ela se coloque como guardiã da legislação, da lei Maria da Penha e dos planos nacionais de políticas para as mulheres. Temos lá o que há de mais avançado pra gente articular e construir uma sociedade onde haja de fato o respeito, a possibilidade que meninas e mulheres cresçam em ambientes de respeito e que valorizem as suas potencialidades”, observa.
Ela também projeta responsabilidade para com os meninos: “um desafio da educação é educar meninos que respeitem as meninas, que as reconheçam como sujeitos, que elas são capazes de ocupar o poder nos diferentes lugares da sociedade. Esperamos que a ministra seja guardiã, que ela defenda a legislação comprometida com a igualdade de gênero, para termos uma sociedade mais justa, solidária e que de fato respeite todos os seres humanos”.