Filha de Chico Mendes rebateu, em entrevista, os comentários de Ricardo Salles
Filha do líder seringueiro Chico Mendes (1944-1988), a ativista Angela Mendes rebateu, em entrevista à Folha, os comentários do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que afirmou que não conhecia o extrativista e que era “irrelevante” debater sobre ele.
“O Chico deixou um legado de coisas vivas: de floresta preservada, de territórios produtivos, com pessoas lá dentro”, afirmou.
Aos 48 anos, a filha de Chico acusa o agronegócio de denegrir a imagem de seu pai, e defende o modelo de conservação criado a partir de sua luta.
Assassinado a tiros na porta de sua casa no Acre, o líder seringueiro defendeu populações que viviam na floresta de serem expulsas de suas terras por produtores rurais.
Sua luta, reconhecida internacionalmente, inspirou a criação das reservas extrativistas no Brasil, que preservam a vegetação nativa e mantêm a população tradicional no local, vivendo da exploração sustentável dos recursos naturais, como castanha, borracha, coco e moluscos.
Atualmente, há 94 reservas do gênero pelo país, que protegem 15 milhões de hectares.
Em entrevista ao programa Roda Viva, na semana passada, Salles sugeriu que Chico Mendes “não era isso que é contado”, para em seguida afirmar: “O fato é que é irrelevante. Que diferença faz quem é o Chico Mendes neste momento?”
Integrante do Comitê Chico Mendes, a filha chamou Salles de “ministro da mineração”, e o convidou a conhecer as reservas extrativistas.
O que a sra. achou dos comentários do ministro?
Eu fico imaginando que esse é o Brasil que temos agora, infelizmente. Ele [o ministro] conhece a história de Chico Mendes, mas trata com menosprezo, e minimiza o papel do Chico porque precisa disso. Ele precisa aparecer e defender o lado dele. E o lado dele é esse: do agronegócio, dos grandes empreendimentos. Ele não está nem aí para a questão do meio ambiente, da preservação da Amazônia, na qual nunca tinha nem estado. É um ministro que não deveria estar ocupando o cargo que está. Eu me senti indignada, como brasileira e como filha do Chico, como alguém que acompanhou a história dele.
Afinal, para responder à pergunta do ministro, que diferença faz quem é Chico Mendes neste momento? Qual é o legado que deixou Chico Mendes?
O Brasil só virou essa potência ambiental por conta dessa história. Desprezar o legado que o Chico e seus companheiros deixaram é uma babaquice sem fim. A diferença que ele faz é que o Chico deixou um legado de coisas vivas: de floresta preservada, de territórios produtivos, com pessoas lá dentro, vivendo uma relação com a floresta, produzindo. São coisas vivas, em movimento. Do outro lado, a política do governo Bolsonaro é de fragilização da legislação ambiental.
Eles têm um lado: o lado de quem não respeita o meio ambiente, que tem uma relação forte com o agronegócio, com as mineradoras, em detrimento de uma população que vive na floresta e que também produz. Só que não impacta tanto, porque produz pensando na manutenção dos recursos naturais. Não produzem pensando em devastar tudo e encher os bolsos de dinheiro, como é o caso deles.
Por que há essas grandes tragédias? Porque as pessoas estão usando a natureza sem nenhuma responsabilidade, sem nenhum compromisso.
Depois da entrevista, o ministro visitou pela primeira vez a Amazônia e foi a uma terra indígena que produz soja e milho. O que achou da escolha?
Tudo é muito bem pensado. Eu não posso falar sobre questões indígenas, porque não são do meu conhecimento. Mas por que ele não foi a uma reserva extrativista? A gente tem muitas reservas extrativistas com experiências muito exitosas. Mas, logicamente, ele não iria a um lugar desses, porque ia reconhecer que as coisas dão certo na floresta. Para mim, ele é ministro da mineração, e não do meio ambiente. Preocupação, ele não tem nenhuma.
Ainda temos muitos desafios [nas reservas extrativistas], mas as pessoas precisam saber que esse é o caminho. Porque veja bem: as pessoas que estão dentro de uma reserva extrativista, diferentemente do que está acontecendo em outras regiões ou territórios, têm a vida garantida, porque sabem que ninguém vai tirá-los ou expulsá-los de lá. Aí a gente vai construindo as políticas públicas. Algumas pessoas vão acessando, outras não. E vai ser sempre assim o mundo. Eu vejo isso como desafio, não como problema.
O ministro ainda disse que o Chico “usava seringueiros para se beneficiar, fazia uma manipulação”. É algo que realmente se diz no Acre?
Essa é uma afirmação comum entre quem está do lado do agronegócio. Aqui no Acre, tem pessoas que chamam meu pai de várias coisas. Mas são pessoas que, em algum momento, sofreram algum prejuízo por causa da luta do meu pai.
Todos os poderes do Acre, naquela época, eram dominados por pessoas ligadas ao agronegócio. Naquela época, era comum falarem mal do meu pai, dos seringueiros, porque mexiam com o amigo de alguém, com parente, com padrinho. Todo mundo tinha essa ligação. Você ouve isso. Mas ouve vindo de um lado: o lado de quem se sentiu prejudicado com o trabalho dele.
O ministro chegou a entrar em contato com vocês depois da entrevista?
Não. Não sei nem se ele sabe da nossa existência. Mas, se ele não sabe, muita gente sabe.
Alguma medida a preocupa mais na atual gestão?
Preocupa essa aproximação muito grande do governo com o agronegócio, com os grandes empreendimentos que estão querendo entrar na Amazônia, a própria questão indígena. Os indígenas, assim como os extrativistas, são populações muito fragilizadas, mas que prestam um serviço muito importante, porque têm uma relação com a floresta.
Botar a Funai dentro do ministério da Agricultura, por exemplo, é um absurdo muito grande. É como mandar a raposa tomar conta do galinheiro. As políticas ambientais desse governo estão totalmente equivocadas.
Aqui no estado [do Acre], nós também temos um problema sério. O atual governo acha que a soja vai ser a salvação do Acre.
Não vai, por uma questão de viabilidade econômica, de lógica. É um estado que não tem facilidade de acesso, tudo para nós chega mais caro. Um percentual muito pequeno do território é propício para essa atividade. Ficar exaltando a cultura do agronegócio e da monocultura aqui na Amazônia nos amedronta. A gente tem um potencial muito grande.
Alguns extrativistas na região em que Chico vivia ainda recorrem à pecuária. Isso coloca em xeque a luta do seu pai?
Não era isso que meu pai defendia. A floresta tem potencial. Tem pessoas que optaram por um lucro mais fácil, mais rápido. Mas, a longo prazo, vão perceber que fizeram a opção errada.
Veja: o gado também precisa de água. Precisa de um certo ambiente para poder se desenvolver. Se o povo começar a desmatar para criar gado, como é que esse gado vai matar a sede, como é que esse cara vai arrendar a soja dele?
O Chico nunca foi contra o desenvolvimento. Mas com equilíbrio. Para isso, as pessoas precisam manter a floresta em pé. Tem pessoas que acham que o gado é a salvação, ou que a soja é salvação. Mas vivem pressionados pelo agronegócio, ou não conseguem pensar outros caminhos. Nós temos experiências maravilhosas na floresta.
Da FSP