Socióloga detona o MEC: ” tragédia…desrespeito com brasileiros”

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“De nada adianta ficar estudando o que está acontecendo do outro lado do planeta se eu não sei quem é meu vizinho”, afirma Lourdes Atié, socióloga que atua há mais de 30 anos no campo da educação como produtora de conteúdo e na formação de professores. No último mês, a especialista esteve em Londrina para falar sobre a educação necessária para o mundo de hoje.

Em entrevista à FOLHA, Atié defendeu a autonomia dos educadores e uma escola para além dos seus muros, com maior participação da sociedade. Para ela, a educação atual caminha para um excesso de conteúdo. “A escola brasileira é acelerada e se propõe a ensinar coisa demais em tempo de menos, a gente está na contramão da educação das grandes referências internacionais”, afirma.

No evento promovido pela Escola Apoena, ela falou sobre os desafios da educação diante de tantas mudanças na sociedade e defendeu posicionamento das escolas para além da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) para que encontrem sua própria identidade e se validem como verdadeiros espaços de aprendizagem.

– Como você avalia os caminhos da educação no Brasil hoje?

Em termos de resultado do que os alunos estão aprendendo, uma tragédia; em termos da forma como esse novo governo está levando o MEC (Ministério da Educação) é muito mais que uma tragédia, é um profundo desrespeito com todos os brasileiros. Embora hoje existam muitas experiências interessantes e muita gente batalhando para fazer uma educação melhor.

– Onde estão essas pessoas?

No chão da escola. São pessoas nas prefeituras, em escolas privadas, pessoas que estão no dia a dia da escola, muitas vezes em situação adversa, mas que não perderam a esperança e estão lutando para conseguir fazer uma educação compromissada para que todos os alunos aprendam. São guerreiros, porque a maré é contra.

– Qual é a educação necessária para os dias atuais?

Eu acho que é a educação verdadeira, aquela que é construída por cada um. No Brasil a gente gosta de copiar muito, vai a escolas internacionais para ver como funciona e, depois de muitos meios de comunicação dizerem o passo a passo, a gente sai copiando, essa receita definitivamente não funciona. Vejo como única saída os educadores se apropriarem do seu papel fundamental e fazerem a transformação a partir daquilo que eles estão vivendo, pela reflexão da prática pedagógica e não pelo o que as pessoas dizem o que eles devem fazer. Acho que está na hora de o professor assumir esse papel como intelectual que ele é, porque ele lida com o conhecimento.

– Como seria a educação do século 21?

Uma educação do século 21 acontece para além da escola, a escola é só um tipo de educação, mas toda a sociedade tem que ser educadora: na família, no hospital, na igreja, na rua, educação social de um modo geral, são muitas frentes em que a educação acontece, o problema do Brasil é que ninguém se responsabiliza pela educação e cobra da escola muito mais do que ela pode dar.

– Como a escola pode responder a isso?

É necessário que ela aprenda a essencializar. A escola brasileira é acelerada e se propõe a ensinar coisa demais em tempo de menos, a gente está na contramão da educação das grandes referências internacionais. Tem que abraçar a causa do ‘menos vale mais’, ensinar aquilo que faz sentido e jogar fora o que liga o nada à coisa alguma. Saber o que é melhor para nossos alunos, o que é melhor para nossa cidade, para ensinar aquilo que realmente ajude a entender o mundo. Precisa de mais tempo para aprender, menos aceleração, mais reflexão, mais estudo.

– Como fazer com que a sociedade entenda que a educação não é um papel só da escola?

Eu acho que é um movimento em todos os níveis, a começar pelo governo. Eu acho que uma prefeitura tem que discutir isso para além da Secretaria de Educação, pensar na perspectiva educativa para todas as suas secretarias. Tem que ter um projeto educativo de cidade, isso explica desde o jeito como a cidade está organizada, com segurança, de as crianças poderem voltar a circular na rua, de todos os espaços serem educativos, ter espaços culturais, bibliotecas públicas, livrarias, e todo mundo se comprometer com essa causa. E por baixo, a sociedade ser organizada pelas suas associações ou até as pessoas pelas ruas, que se comprometam a ter qualidade de vida e isso envolve poder andar na rua, a criança voltar a brincar e ficar menos tempo na escola.

– Qual é a sua opinião sobre escola em horário integral?

Botar as crianças mais tempo na escola significa roubar delas o direito de usufruir como cidadãs de uma cidade. Enquanto o mundo discute a educação para além da escola, o Brasil encarcera as crianças garantindo que o horário integral seja a melhor saída para aprender. Uma escola ruim em meio período já é uma tragédia absoluta, sem falar na pobreza das relações, você acaba se relacionando sempre com as mesmas pessoas o dia inteiro. Hoje as escolas não fecham mais, elas funcionam o ano inteiro em horário integral, ainda fazem colônia de férias, uma maluquice! As crianças não descansam nunca.

– Por que as crianças não saem mais para brincar?

Os pais acham que as crianças estão seguras dentro de casa, porque a rua é perigosa, mas elas passam dias jogando videogame. Se os pais não têm controle do que os meninos estão vendo na internet, pode ter certeza que é muito perigoso isso. A gente está roubando essa possibilidade de uma vida estar relacionada com a natureza, com a rua, ao espaço público. As nossas crianças estão ficando cada vez mais encasteladas.

– Como a nova BNCC pode direcionar para essa nova educação?

Quem tomar a BNCC como um simples currículo a ser copiado, com certeza não vai encontrar saída e vai ter resultados muito negativos, porque ela tem um excesso absurdo de conteúdos. Os educadores precisam estudar a BNCC, a aprendizagem e precisam estudar currículo também, refletir sobre sua prática para, então, construir seu próprio currículo. Mas essa questão é um compromisso de toda cidade, todo mundo deveria discutir que educação nós estamos fazendo para nossas crianças e nossos jovens?

– Qual seria o papel da escola nessa nova educação?

É ensinar e fazer aquilo que faz sentido, ter coragem de olhar seriamente para seu currículo. Os currículos escolares, de um modo geral, são uma colcha de retalhos, muito conteúdo que não se relaciona entre si e o mundo é todo misturado, não é? Então eu acho que a escola tem que ter um pacto com essas famílias, ainda tem uma guerra muito grande, que se agravou com as redes sociais.

– Como você acha que está essa relação família-escola?

Tem que ter a parceria, os pais têm que parar de ter uma postura consumidora, se a escola é particular o discurso é: “eu estou pagando”, e se é da escola pública é: “meu direito”, tem que se comportar como cidadãos, ir à escola dizer: “isso não está bom, mas eu estou aqui para ajudar, porque eu sou comprometido com essa escola”. Os professores são muito cobrados, o vínculo de confiança entre a escola e as famílias é sempre muito frágil, é sempre acusação de ambos os lados, os pais também se sentem muito desautorizados, muito avaliados pelos professores como alguém que não sabe educar os filhos. Tem uma encrenca no âmbito da relação família-escola. E a escola do século 21 não leva o mundo para dentro dela, ela derruba o muro e vai para o mundo. O movimento é ao contrário, a escola tem que abrir os portões, de nada adianta ficar estudando o que está acontecendo do outro lado do planeta se eu não sei quem é meu vizinho, se eu não sei trabalhar a questão da convivência.

– Mas o professor teria autonomia para isso?

Ele tem poder, ele só não sabe. Ele tem por lei, inclusive. O problema é que ele é cobrado de tantas coisas, que vive em um estágio de esgotamento permanente. A gente tem que olhar com mais atenção para esse profissional, que é da maior importância socialmente falando, como eu costumo afirmar: tem gente que faz sapatos, tem gente que faz chocolate, mas quem faz gente é o professor. A gente deveria aprender com os japoneses, finlandeses, coreanos que o professor é reverenciado na sociedade, porque ele tem um papel fundamental. Ele é o grande modelo para as crianças e os jovens, e pode ser também o anti-modelo. Muitas crianças só têm o professor como alguém que vai olhar para ele, então a gente tem que olhar com atenção para esse profissional. A educação é como futebol, todo mundo acha que sabe de escola porque passou um dia por ela, mas não é isso. Ali tem profissionais que estudam muito. Era preciso as pessoas pararem de achar que reconhecer professor é dar prêmio, é muito mais que isso, é um movimento social mais amplo.

– Como você avalia a formação dos professores no Brasil hoje?

Eu acho que a universidade é muito distante da escola. O que eles têm aprendido na faculdade não tem servido muito para o dia a dia na sala de aula, esse é um diálogo importante: como a universidade pode formar melhor esses profissionais? E eu acho que a formação continuada é fundamental também, mas não prescritiva, aquelas que são como a maioria das formações no Brasil, ensinar ao professor e desconsiderar sua experiência, com formações feitas para o professor e não com o professor. Na verdade, agora eu não quero mais fazer formação, quero fazer desformação, quero tirar da fôrma. Quero que os professores olhem no espelho e digam: “eu sou muito importante e eu vou à luta com muita coragem”, porque eles estão desistindo de serem professores, ficando adoecidos, as faculdades de pedagogia formam cada vez menos, hoje tem carência de mão de obra.

– Que contexto histórico nos trouxe à educação que nos encontramos hoje?

Isso começa lá em 1500 d.C. (ri). Não é de agora, é um acumulado de erros, tudo veio de forma atravessada, mal feita, é tudo imediatista, no Brasil tudo é descontinuado, aqui os governantes não têm o compromisso para além do tempo em que eles estão no poder e ainda têm o entendimento de que tem que deixar uma marca quando se está no poder, então você não tem estabilidade para fazer nada, cada hora é um modismo, mas isso vem de longe, vem do descobrimento.

– Como melhorar os índices de desempenho no ensino?

A questão é tirar o foco dos índices, porque as pessoas estão treinando os alunos para acertar provas para aumentar índice, o fato de elevar o índice para o município ou do Estado não garante que o aluno verdadeiramente aprendeu. A avaliação é resultado de um percurso de aprendizagem, aqui a gente está sempre colocando a avaliação na frente, tem que treinar o aluno porque tem que apresentar resultado, resultado é consequência de um trabalho, não é objetivo. O ranking é perverso demais, porque desautoriza o professor, o professor fica correndo atrás, treinando, a gente sabe que tem até manipulação de resultados.

– Além do estudo conceitual, o que é preciso aprender?

Hoje a gente sabe que não basta saber conteúdos conceituais, que a gente também tem fatores socioemocionais e essas habilidades estão presentes, não adianta eu saber muito matemática se eu não souber trabalhar em grupo, então são essas habilidades que o mundo contemporâneo exige: eu tenho que ser criativo, flexível, ter capacidade de saber trabalhar em grupo, saber viver sob pressão, ter capacidade de resolver problemas e aprender de forma colaborativa, então são várias habilidades que durante muito tempo a gente não deu importância, hoje a gente está vendo que as interações são fundamentais e a escola é um lugar coletivo, portanto a gente aprende também em ações coletivas, não é à toa que hoje se fala tanto em metodologias ativas, que a gente não deve tratar isso como modismo, embora muita gente esteja trabalhando isso como a bola da vez, mas é na perspectiva de que a gente aprendendo junto a gente aprende melhor.

De Folha de Londrina