Brasil vive vexame internacional por colocações de chanceler sobre gênero

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À diplomacia de nada servem destemperos. Para um autoproclamado conservador —como é o chanceler brasileiro— devia de algo servir a tradição diplomática do país.

Não é o caso. Ao impor ao bem-capacitado corpo diplomático do Brasil a ideologia bolsonarista segundo a qual “a palavra gênero significa o sexo biológico: feminino ou masculino”, o ministro Ernesto Araújo quebra com a própria tradição diplomática brasileira.

Relatos por parte de diplomatas europeus e latino-americanos, jornalistas e ativistas brasileiros vindos de Genebra —onde no momento ocorrem as sessões do principal órgão de direitos humanos das Nações Unidas— são uníssonos em um sentimento: perplexidade.

Perplexidade diante de um país que apequena seu papel diplomático de principal negociador, desde 2009, em resoluções sobre acesso a medicamentos, inclusive HIV/Aids, e, desde 2011, em resoluções condenando violência contra LGBTs.

Ao contrário da política de combate à violência contra mulheres defendida pela ministra Damares Alves em fevereiro deste ano na própria ONU, diplomatas brasileiros picotaram nesta semana em Genebra uma resolução que pedia o fim de discriminação contra mulheres e meninas.

O Brasil exigiu que toda e qualquer menção a gênero fosse retirada do texto (como quem pudesse com uma única tecla deletar a violência que mulheres sofrem por serem mulheres). Exigiu que fosse deletada a garantia de acesso à educação sexual (o que nada mais significa do que educar a população sobre métodos contraceptivos como o uso de camisinhas, ou implementar políticas de combate à violência sexual contra mulheres e meninas).

Outra resolução debatida nessa sessão da ONU diz respeito a acesso a medicamentos, inclusive para tratamento de HIV/Aids. A nova ideologia de gênero de Araújo pode prejudicar a liderança histórica brasileira também neste tema. Os resultados perversos desta postura já são vistos internamente.

Especialistas têm questionado se o departamento de HIV/Aids do Ministério da Saúde continuará a levar em consideração as peculiaridades de populações vulneráveis em suas políticas de combate a HIV/Aids como homens que fazem sexo com homens e pessoas trans.

Quando despimos palavras como feminismo e gênero da pecha negativa imposta por ideólogos da linha do chanceler brasileiro, percebemos que a população brasileira é melhor do que sua elite política.

Pesquisa Datafolha em parceria com a ONG Oxfam Brasil mostrou que mais de dois terços da população brasileira concorda com teses em prol da igualdade entre homens e mulheres —86% discordam de que mulheres só deveriam cuidar da casa e filhos e 64% concordam ser discriminatório que mulheres ganhem salário menor que homens.

O que o chanceler quer nos fazer crer é que se está diante de uma cruzada globalista contra o desmantelamento da família. Quer nos fazer crer que se está combatendo uma ideologia segundo a qual inexiste diferenças entre os sexos.

Tal delírio é propagado pelo nome de ideologia de gênero. Este termo —sem respaldo algum na realidade—  tem mobilizado milhares a apoiar ideias obscurantistas em matéria de direitos sexuais e reprodutivos em países tão diversos como Colômbia, Costa Rica, Hungria e EUA.

Depois de destruídas as palavras que tradicionalmente articularam a política externa brasileira, o que nos resta?

Dos escombros da política externa brasileira resta a solidão de um país outrora considerado líder por seus pares. Brasil participa até o momento de um grupo de países que apoia combate à violência contra LGBTs, bem como repudia discriminação contra mulheres junto com parceiros latino-americanos e europeus. Foi este grupo de países que nos olhou nas Nações Unidas com perplexidade esta semana.

Temos agora o apoio de países cujos governos autoritários em nada expressam princípios morais com os quais compartilhamos. Fomos ovacionados por governos como Arábia Saudita, Paquistão, Bahrein, Filipinas. Fomos aplaudidos por governos que executam LGBTs em praça pública, que matam centenas de civis em sua guerra às drogas, países onde apenas recentemente mulheres obtiveram o direito de dirigir automóveis.

Lembro aqui de Orwell. Lembro de Novafala, o idioma do governo autoritário imaginado por Orwell. A missão deste idioma autoritário era destruir palavras. “Tenho a impressão de que você acha que nossa principal missão é inventar palavras novas. Nada disso! Estamos destruindo palavras —dezenas de palavras, centenas de palavras todos os dias. Estamos reduzindo a língua ao osso”, escreveu o autor britânico em “1984”.

O Brasil pleiteia sua reeleição no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Submerso nos escombros de sua ideologia de gênero, quem o apoiará? O que restará de nossa liderança diplomática tradicionalmente exercida quando reduzirmos a linguagem de direitos iguais para mulheres e LGBTs a osso?

Da FSP