Campanha do Véio da Havan contra acessibilidade mira defensores do ultraliberalismo

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Foto: Reprodução

Vamos fazer um exercício de vivência, jogar como atores em uma cena e assumir uma personagem.

A partir de agora, você é uma pessoa com deficiência e precisa dos recursos de acessibilidade. Precisa do piso tátil, do braile, da audiodescrição, da Língua Brasileira de Sinais (Libras), das legendas nos vídeos, do implante coclear, do aparelho auditivo, da cadeira de rodas, da bengala, das muletas, das próteses, das rampas, do elevadores e de toda ferramenta disponível que te ajuda na locomoção, da leitura, no lazer, nas atividades do dia a dia, no supermercado, no cinema, no shopping, na praia, no bar ou em qualquer lugar que você quiser.

Nossa história está ambientada em dezembro de 2019, bem perto do Natal, no auge das compras, no calor do começo do verão. Sorte sua, porque neste exato momento, no Brasil, há diversas legislações e normas que promovem o seu acesso. E quem não cumpre as regras pode ser multado e processado.

Nessa fábula temos também o mundo invertido, onde nunca houve nenhuma exigência legal para melhorar a vida das pessoas com deficiência e, claro, jamais foi criada qualquer ferramenta de acessibilidade. Cada um faz o quiser, se quiser, como quiser.

Você, a sua personagem, tem de viver 24 horas em cada universo, até morrer, não pode optar por um deles e nem alterar os cenários. Sua única interferência é na maneira como passará os dias, dentro e fora de casa.

Agora volte para a realidade e entre na loja de número 140 do grupo Havan, inaugurada na última sexta-feira, 20, em Chapecó (SC). O espaço é amplo, novinho, cheio de produtos. E você, com ou sem deficiência, consegue passear lá dentro. Se precisar de vaga reservada no estacionamento, de piso tátil na entrada ou de cadeira de rodas, a loja tem.

Sorte sua, porque, em dezembro de 2019, bem perto do Natal, no auge das compras, no calor do começo do verão, no Brasil, há diversas legislações e normas que promovem o seu acesso. E quem não cumpre as regras pode ser multado e processado.

Entre tantas destaco a Lei da Acessibilidade (n° 10.098/2000), a Lei Brasileira de Inclusão (nº 13.146/2015) e as especificações da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

Foi nessa loja em Chapecó que o empresário Luciano Hang, proprietário da rede de lojas Havan, fez uma transmissão ao vivo no Facebook para esculhambar as exigências da Prefeitura sobre acessibilidade, inclusão e sinalização.

“A prefeitura de Chapecó conseguiu ultrapassar o ridículo”, diz Hang, exibindo diversos documentos municipais sobre o tema. Em outro trecho, quando mostra a área externa do estabelecimento, o empresário se queixa das placas que identificam vagas reservadas nos estacionamentos. “Aqui no Brasil, os populistas arranjaram vagas para deficientes e para idosos”, tripudia.

Dois dias depois, no sábado, 21, antes da inauguração da loja de número 141, em Sumaré (SP), Luciano Hang ataca novamente e, para piorar o grotesco discurso, usa a figura do presidente da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB de Sumaré (SP), o advogado Jelres Freitas, que é cadeirante, para criticar a necessidade do piso tátil para cegos.

Os motivos de Jelres Freitas ter aceitado participar dessa pataquada somente ele sabe quais são.

As razões de Luciano Hang apostar em tamanha patifaria, por sua vez, são muito claras, totalmente escancaradas.

Hang, assim como o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o próprio presidente da República, Jair Bolsonaro, defende o liberalismo econômico, ideologia individualista que rejeita a intervenção estatal, coloca o maior número possível de decisões econômicas nas mãos das empresas e dos indivíduos, arranca do Estado e das organizações coletivas o poder de qualquer participação.

A tradução para os chiliques muito bem planejados de Luciano Hang é “eu quero fazer somente o que eu quero fazer e ninguém vai dar palpite nas minhas sandices porque o dinheiro é todo meu e eu sou o dono dessa bagaça inteira”.

Não é nem um pouco surpreendente que o dono da Havan diga de maneira bem agressiva que “todo mundo tá de saco cheio. Chega à beira da loucura o que o poder público faz com o cidadão. Não só comigo. Eles ficam desenhando lá na prefeitura, lá em Brasília, e você tem que fazer esses absurdos” ou que aponte para o que chama de “excesso e falta de bom senso de quem faz as leis nos gabinetes”.

Hang não quer dar explicações a ninguém sobre nada, muito menos sobre como pretende tratar as pessoas com deficiência. Sua empresa sequer respondeu se mantém projetos de inclusão, se contrata pessoas com deficiência, conforme determinado pela Lei de Cotas (n° 8.213/1991), quantas pessoas com deficiência trabalham na empresas e em quais funções.

Segundo a assessoria de imprensa da empresa, questionada pelo #blogVencerLimites sobre esses detalhes, “após consulta ao setor jurídico, a Havan não fará manifestação a respeito”.

Por que pessoas comuns, com e sem deficiência, que não são donas de nada, nem da loja, nem da empresa, nem do dinheiro, muito ao contrário disso, trabalham para esses donos e só têm seus diretos garantidos, inclusive à acessibilidade, por legislações e normas que contrariam o liberalismo econômico, mas ainda assim defendem e aplaudem as mesmas ideologias de Luciano Hang? Se essa defesa não tem interesses financeiros ou ideológicos semelhantes, o que revela cinismo e mau caráter, eu acredito em idolatria, burrice ou loucura.

No caso do dono da Havan, essa encenação é pura manipulação.

Estadão