Governo Bolsonaro: um ano de retrocessos e ultraliberalismo econômico

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Ao iniciar seu discurso de posse no Congresso Nacional, em 1º de janeiro, o presidente Jair Bolsonaro agradeceu aos brasileiros que lhe confiaram a missão de governar o país em um período de “grandes desafios” e “enorme esperança”, e partilhou a responsabilidade com os parlamentares presentes: “(Vou) governar com vocês”. A despeito da promessa, a gestão do presidente não foi marcada por busca de consensos, e sim por um clima de enfrentamento permanente com outros poderes e instituições da sociedade civil. O ambiente belicoso não impediu o governo Bolsonaro de terminar seu primeiro ano com avanços em uma agenda econômica fundamental para pavimentar o fim da recessão, mas contribuiu para que ele não deixasse marcas relevantes em outras áreas.

Com uma maioria reformista e não alinhada ao lado mais ideológico da agenda presidencial, o Congresso definiu os rumos da reforma da Previdência e barrou a pauta de costumes. Ao longo do ano, ampliou seu controle sobre o orçamento e impediu canetadas presidenciais que tentavam desestruturar políticas públicas consolidadas nas últimas três décadas. Em boa medida, o sistema de freios e contrapesos entre os poderes da República funcionou. Ainda assim, retrocessos acabaram ocorrendo sobretudo nas áreas do meio ambiente, cultura e educação. Às vésperas de um novo ano, paira a dúvida sobre qual será o peso de cada uma dessas agendas — a reformista e a obscurantista — em 2020.

— Se o governo focar na agenda de reformas econômicas e sociais, terminará 2020 com um resultado até melhor que o projetado. Mas se a agenda ideológica prevalecer, será o que ocorreu este ano, quando tínhamos a previsão de crescer 2,5% e terminamos crescendo 1%. A gente espera é que essa agenda econômica, que também é social, porque diminui desigualdade e gera empregos, prevaleça. A agenda mais ideológica limita investimentos externos — avalia o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

O cerne da reforma da Previdência foi a instituição de uma idade mínima (de 65 anos para homens e 62 para mulheres) para se ter acesso à aposentadoria. Bolsonaro rejeitou a proposta que já havia sido apresentada no governo Temer e entregou seu texto ao Congresso no fim de fevereiro. Com dificuldade para estabelecer uma base aliada, o governo viu a reforma avançar após Rodrigo Maia assumir a tarefa de costurar o apoio dos parlamentares, atuando em conjunto com o Ministério da Economia.

Após idas e vindas, o texto foi promulgado no início de novembro, excluindo pontos considerados inicialmente importantes pela equipe econômica, como a transição para um sistema de capitalização e a inclusão de estados e municípios, mas ainda assim garantindo uma economia projetada de mais de R$ 800 bilhões nos próximos dez anos. Na esteira da reforma, o Banco Central iniciou no fim de julho um ciclo de derrubada na taxa básica de juros, reduzindo-a de 6,5% para a mínima histórica de 4,5%. O desemprego, no entanto, pouco regrediu e ainda atingia em novembro 11,9 milhões de brasileiros. Sinais de uma retomada ainda tímida da economia. O índice Ibovespa chegou ao recorde histórico de pontuação (117 mil pontos) na última quinta.

— A reforma não é a ideal, não atinge estados e municípios, mas foi essencial para consolidar esse ciclo de corte de juros. O ponto mais preocupante é que demorou muito para avançar nas outras agendas de ajuste fiscal e na reforma tributária — destaca Zeina Latif, economista-chefe da XP.

Onde o Ano foi perdido

Nas pastas de Educação, Cultura e Meio Ambiente, o sentimento é de ano perdido. No primeiro caso, a troca de cadeiras constante impactou o funcionamento de áreas fundamentais. Abraham Weintraub, que substituiu Ricardo Vélez Rodriguez, pautou sua gestão por ataques às universidades públicas, a estudantes e aos governos anteriores. As medidas concretas para reverter o fraco desempenho da educação nas avaliações globais não vieram.

O projeto mais ambicioso, o Future-se, que tinha o objetivo de injetar recursos privados nas universidades federais, foi rejeitado pelas principais escolas. Em 2020, mais conflitos à vista: o Congresso terá de chegar a um acordo com o Executivo sobre as regras do novo Fundeb, principal instrumento de financiamento da educação básica.

Sem tantas travas legais à ação do Executivo, os retrocessos foram mais drásticos na Cultura e no Meio Ambiente. Enquanto Bolsonaro passou o ano reforçando um discurso antiambientalista, o desmatamento na Amazônia cresceu 29,5%, provocando a maior área devastada dos últimos 11 anos. Em termos práticos, o que se viu foi um desmantelamento dos órgãos de fiscalização, como o Ibama e o ICMBio, e a paralisação do Fundo Amazônia, que havia recebido, desde 2008, R$ 3,4 bilhões para conservar a floresta.

Na Cultura, o primeiro ato do presidente foi rebaixar o Ministério ao status de secretaria. As estatais, que têm papel decisivo no financiamento de projetos, cortaram patrocínios e censuraram espetáculos por questões políticas e de gênero. O ano terminou com o diretor de teatro Roberto Alvim, que se referiu a Fernanda Montenegro como “sórdida”, nomeado Secretário Especial da Cultura. Alvim empossou na Funarte o maestro Dante Mantovani, que já declarou que o rock leva ao satanismo, e colocou o jornalista Sérgio Camargo, para quem a escravidão foi “benéfica” aos descendentes, para dirigir a Fundação Palmares. O Judiciário suspendeu a nomeação de Camargo por considerá-la um “frontal ataque às minorias”.

Imprevisível 2020

Outro símbolo da ideologização do governo, o chanceler Ernesto Araújo teve atuação errática. No discurso, anunciou alinhamento automático com os Estados Unidos e com Israel, mudou a posição histórica do Brasil de condenação do embargo a Cuba, atacou líderes alinhados à esquerda e acompanhou regimes totalitários em votações sobre direitos sexuais e das mulheres na ONU. Mas, em termos práticos, a realidade se impôs. Apesar do discurso de campanha contra a China, Bolsonaro foi a Pequim e obteve um dos poucos gestos de boa vontade externa a seu governo: duas estatais chinesas foram as únicas estrangeiras a participar do megaleilão do pré-sal, que arrecadou R$ 70 bilhões em novembro.

No dilema entre as agendas econômica e ideológica, o ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, aposta que a economia prevalecerá na lista de prioridades para 2020:

— O Congresso realmente é liberal. A pauta econômica tem mais facilidade do que uma pauta de costume, que é um pouco mais polêmica. O presidente tem um timing político muito bom e ele já percebeu que pautas econômicas é que vão alavancar o desenvolvimento.

O componente de imprevisibilidade na relação entre os poderes em 2020 é agravado por um fator alheio a uma caneta presidencial ou à construção de uma base aliada. Corre no MP do Rio a investigação do caso da “rachadinha” no antigo gabinete do primogênito do presidente, Flávio. A depender dos resultados do que se apura, o ano que vem poderá ser de mais instabilidade política do que já foi o que se encerra depois de amanhã.

O Globo.