Damares seduz pobres e desempregados

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Foto: Jorge William / Agência O Globo

Quarta-feira, dez horas da noite. Sob o olhar atento de seguranças, centenas de pessoas deixam o faraônico Templo de Salomão após mais um culto. Marcos Paulo, de 26 anos, está passando as férias com a família em São Paulo e não queria deixar de conhecer a sede mundial da Igreja Universal do Reino de Deus. “Sou cristão há menos de seis meses. Entrei na igreja através da minha família, porque percebi a mudança na vida dela. Eu estava num caminho meio perdido, não estava feliz”, conta o rapaz, oriundo do Mato Grosso do Sul e formado em Direito. “Ainda estou desempregado e estudando para concurso, mas Deus tem agido na minha vida”, completa. Por causa de seu contato com a Igreja Evangélica, conta que vem acompanhando o trabalho da pastora Damares Alves, atual ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do Governo Jair Bolsonaro. “Sou a favor de suas declarações, até porque ela é uma pessoa cristã, uma mulher de Deus, com uma visão do seio familiar. Ela tem tudo para fazer o país caminhar”, argumenta.

Na mesma linha opina Giovana Oliveira, de 27 anos. Ainda que ache que Damares soa às vezes “um pouco brusca demais”, acredita que seu trabalho tem tudo para dar certo, sobretudo se o Governo passe os recursos necessários para abrir “espaços de apoio” para as pessoas. Ela esclarece que não se trata de clínicas médicas, mas sim de lugares onde a pastores evangélicos possam oferecer algum tipo de apoio psicológico ou acolhimento para aqueles que precisam. “Por exemplo, se uma mulher está se separando, ela não vai poder se apoiar no marido. Se alguém está com depressão, com problemas com álcool ou drogas, ela precisa de ajuda… E quem dá esse apoio é a Igreja”, explica.

Damares, “mãe, pastora evangélica, educadora e advogada”, como se apresenta para seus mais de 680.000 seguidores do Twitter, assumiu seu cargo no ano passado dizendo que “o país é laico, mas esta ministra é terrivelmente evangélica”. Desde então vem ocupando o noticiário com declarações que atraem ultraje e aplausos e acenando com a aplicação de políticas conservadoras. A mais recente está relacionada a uma campanha voltada para jovens pregando a abstinência sexual. É com essa abordagem que ela pretende enfrentar problemas importantes, como a gravidez na infância e o aumento das doenças sexualmente transmissíveis entre os jovens. “O argumento que eu estou buscando é: uma menina de 12 anos não está pronta para ser possuída. Se vocês me provarem, cientificamente, que o canal de vagina de uma menina de 12 anos está pronto para ser possuído todo dia por um homem, eu paro agora de falar”, argumentou ao jornal Folha de S. Paulo neste domingo. Em entrevista ao jornal Correio Braziliense, publicada também neste domingo, voltou a defender a política governamental: “Eu pergunto: que dano eu vou trazer para uma criança ao dizer para ela: ‘espera mais um ano’, ‘espera um pouquinho’?. Não vamos eliminar os outros métodos preventivos. Vamos continuar falando da camisinha; vamos continuar falando da pílula; vamos continuar falando dos outros métodos. O que a gente quer, aqui na lista de métodos (contraceptivos), é apresentar mais um. O não ficar agora. Esperar um pouco mais.”

As declarações de Damares dizendo não se opor a métodos contraceptivos se contradizem com a nota técnica preparada por sua pasta para orientar a campanha, a ser operacionalizada em conjunto com o Ministério da Sáude. De acordo com reportagem do jornal O Globo, a pasta sustenta em documento obtido pelo jornal que ensinar métodos contraceptivos para esse público “normaliza o sexo adolescente”. O texto diz ainda que a prática do sexo na pré-adolescência leva a “comportamentos antissociais ou delinquentes” e “afastamento dos pais, escola e fé”.

Para Valéria Vilhena, fundadora do grupo Evangélicas pela Igualdade de Gênero, alguns dos argumentos públicos de Damares ecoam e são de senso comum, mas as soluções que propõe, em sua visão, tenham mais a ver com a agenda conservadora de setores majoritários da Igreja Evangélica do que as práticas recomendadas por especialistas na matéria. “Olhando assim, quem é contrário a uma fala dessa? Ninguém. E é muito simples, dialoga muito bem com pessoas pouco escolarizadas, exatamente porque está fora do contexto”, explica. “Damares não leva em consideração dados e estudos que mostram que a maioria dos estupros ocorrem em meninas de até 13 anos. Quando falamos de gravidez precoce, não estamos falando de meninas que ainda são imaturas e que resolveram fazer sexo de maneira irresponsável. Estamos falando de meninas vulneráveis que sofrem abusos”, acrescenta. Vilhena opina que Damares é “uma figura perigosa” justamente porque “trata com deboche temas sérios”.

O resultado das declarações, ideias e políticas de Damares ainda não são mensuráveis, mas vem agradando parte significativa do eleitorado. É o que diz a mais recente pesquisa Datafolha, de dezembro, na qual Damares é aprovada por 54% do total de evangélicos do país ―eles representam hoje pouco mais de 30% da população brasileira, atrás apenas dos católicos, que ainda são 50% do total. A pesquisa vai além e mostra a pastora evangélica como uma ministra bastante popular, atrás apenas do ex-juiz Sergio Moro, que ocupa da pasta da Justiça, e à frente de Paulo Guedes, ministro da Economia. Conhecida por 55% da população, ela marcou 43% de ótimo bom, 27% regular e 26% ruim/péssima. “Ela é muito forte no Governo e dificilmente cairia. Mesmo que não seja um ícone, reconhecida por toda a população, sua trajetória evangélica traz sensação de reconhecimento”, explica Jacqueline Teixeira, doutora em antropologia social e pesquisadora do Núcleo de Antropologia Urbana da USP.

Mais: à diferença dos demais ministros, e guardadas as margens de erro diferenciadas de cada recorte, sua popularidade se distribui mais equilibradamente. Também é forte nos setores populares onde o lulismo é tradicionalmente mais relevante após a passagem do PT pelo Governo. Damares possui o apoio de 39% daqueles que tem renda familiar mensal de mais que dez salários mínimos, 43% de dois a dez salários e 42% entre aqueles com menos de dois salários mínimos. Para efeito de comparação, Sergio Moro, que possui 53% de aprovação na média geral, sobe a 73% na faixa de renda de mais de 10 salários mínimos e desce a 46% na fatia mais pobre. A ministra também pontua bem entre todas as faixas etárias e até entre aqueles que simpatizam com o Partido dos Trabalhadores (PT): 29% dos eleitores petistas também aprovam a ministra.

“Nem todo mundo que vota no PT é do PT. São pessoas que gostam do PT, que reconhecem e se identificam com o PT e o que foi feito, mas… A gente não pode dizer que é de direita, mas essa coisa do costume é algo muito forte. As pessoas ficam cegas diante disso”, explica a deputada federal Benedita da Silva, do PT carioca e frequentadora da Assembleia de Deus. Para Benedita, que atua como coordenadora nacional do núcleo evangélico do partido, Damares “se coloca no lugar da família ideal, da família perfeita, que o Governo fala que está ameaçada pela esquerda”. Um tema sensível tendo em vista que a população brasileira é, de forma geral, conservadora, ainda segundo a parlamentar.

A antropóloga Teixeira, que mergulhou em projetos relacionados com questões de gênero e direitos reprodutivos dentro da Igreja Universal, e que agora vem se debruçando sobre a gestão de Damares, destaca a trajetória de vida e política da atual ministra. Ao contrário de outras membros do Governo, ela possui experiência no legislativo e na máquina pública. Foi secretária de assistência social de São Carlos, no interior de São Paulo, e durante os últimos 20 anos foi assessora parlamentar de deputados da bancada evangélica. Fundou a Anajure, associação de juristas cristãos com forte influência em Brasília, e envolveu-se diretamente em discussões sobre violência contra a criança e contra mulher ―sobretudo após a aprovação da lei Maria da Penha, a qual apoiou. Por outro lado, colocou-se como ferrenha militante anti-aborto e ajudou a difundir a ideia de que a educação sob o PT ensinava a chamada “ideologia de gênero”.

Em suma, Damares, de 55 anos, sempre foi o canal direto entre projetos produzidos no seio da Igreja e as pautas que circulavam no Parlamento. “Além de tudo, ela é mulher e filha de um pastor da Igreja missionário. Viveu em oito Estados do Brasil, o que também ajuda a produzir essa sensação de capilarização, de ressonância”, explica Teixeira. “Tudo isso ajuda a configurar essa aliança da atual gestão com os evangélicos e a conferir certa confiança desses setores populares com relação ao Governo”, acrescenta. “Mas essa aliança ainda é instável”.

Além de ser uma das duas mulheres a ocupar o primeiro escalão do Governo Bolsonaro, Damares é um dos membros mais estridentes dessa gestão. “Muitas pessoas tem dito que ela é louca, mas temos que tomar cuidado. Nesse exercício de transformar políticas de igreja em políticas públicas, ela consegue se comunicar com segmentos da população”, argumenta Teixeira. O EL PAÍS solicitou uma entrevista com a ministra, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.

Damares é um ponto fora da curva, mesmo dentro da bancada evangélica na Câmara. O grupo é formado majoritariamente por homens brancos conservadores e ricos, enquanto que a população protestante no Brasil é formada majoritariamente por mulheres pobres e negras. Pesquisadores vêm apontando que os evangélicos estão longe de ser um grupo homogêneo, com pensamento único ―o fato de Damares ser cristã e possuir uma trajetória política de décadas dificilmente explica por completo sua popularidade. De alguma forma, a ministra reflete as contradições e anseios desse contingente. Além de ser mulher, como a maior parte do país, foi vítima de violência sexual e doméstica quando criança. Não foge de abordar temas caros para setores progressistas, como o racismo e a causa indígena. Ao mesmo tempo que propõe a campanha pela abstinência sexual, irritando até pastores como Silas Malafaia, cita dados da Unicef sobre gravidez precoce ou estatísticas que mostram epidemias de doenças sexualmente transmissíveis, como a sífilis. E não diz ser contrária a que a educação sexual seja abordada nas escolas ―ainda que, na prática, especialistas digam que o atual governo vem freando avanços nessa área, quando, por exemplo, expõe veto a material que trate de diversidade sexual e de gênero.

“Querendo ou não, ela sempre trabalhou em assessorias voltadas para determinados direitos civis, diferentemente de outros membros do Governo. Então ela vai sempre ter uma posição minimamente mais humanizada ou moderadamente mais progressista que os demais, porque ela constituiu sua própria trajetória nessas discussões sobre direitos civis e humanos”, explica Teixeira. Além disso, Damares não raro diz ser uma mulher “empoderada”, passando a ideia de que enfrentou vários obstáculos e venceu todos eles antes de ocupar um cargo no primeiro escalão do Governo. “Essa dinâmica do empoderamento não está só com o feminismo e a esquerda. As igrejas, mesmo tendo que lidar com noção de submissão, precisa dar sentido, ressignificar essa palavra, mesmo você sendo uma mulher evangélica”, acrescenta a antropóloga.

Essa mesma mulher forte e empoderada é também a “mãe Damares” que reforça os valores da família tradicional diante de um mundo em constante mudança. Um medo dos recentes avanços que está relacionado, segundo Texeira, com as teologias “muito apocalípticas” que circulam e que “de alguma maneira estão remetendo a uma ideia final e de pensar em mecanismos de salvação, de políticas mais radicais”. Mas sua mensagem é também de cuidado e de acolhimento diante das dores cotidianas. “Na última campanha para a prefeitura do Rio, Marcelo Crivella [bispo licenciado da Igreja Universal e atual prefeito da capital fluminense] falava que iria ‘cuidar das pessoas’, enquanto Marcelo Freixo dizia que não iria cuidar, mas sim ‘trabalhar junto’. Mas as pessoas já trabalham demais, sofrem demais. Elas querem cuidado mesmo”, explica o professor e historiador João Bigon, evangélico da Igreja Batista e coordenador do Movimento Negro Evangélico no Rio de Janeiro.

Morador de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, além de mestrando em relações étnico-raciais, Bigon explica que a defesa dos valores familiares nem sempre está relacionado com uma ideologia conservadora. “As pessoas que moram em favelas e periferias muitas vezes só têm isso, a família. Para elas, a defesa da família muitas vezes não é uma questão ideológica, mas sim uma lógica de proteção”, argumenta. Ele conta que muitas mulheres buscam igrejas justamente em contexto de fragilidade familiar: por exemplo, quando está sofrendo violência doméstica e teme denunciar para a polícia, quando o marido está abusando do álcool, o filho está na vida do crime… “E a mulher busca no sagrado um reforço para unir uma família. Ela luta o tempo todo pra trazer esse filho ‘desgarrado de valores cristãos’ e a igreja muitas vezes consegue resgatá-lo. Ela diz que é pecado beber, usar droga, cria uma mentalidade que faz com que se afaste disso tudo”, explica Bigon. A antropóloga Teixeira segue na mesma linha: “A defesa da família está focada no único lugar possível existência. Ela simboliza uma espécie de segurança dentro de territórios pós-coloniais como o nosso, permeados pela sensação de violência, vulnerabilidade e instabilidade”.

Por sua vez, o antropólogo Lucas Bulgarelli usou o Twitter para lançar pistas dos motivos pelos quais o discurso sobre abstinência pode se mostrar atrativo até para pais que não se consideram conservadores. “A ideologia de gênero tem sido uma das ferramentas mais bem sucedidas da direita no Brasil. Ao disputar o sexo e o gênero no campo da política, oferece uma compreensão de mundo bastante útil para quem questiona se está sendo um bom pai ou mãe. Porque [isso] localiza as dificuldades sobre o sexo e a sexualidade como um elemento externo ao núcleo familiar e contrário a seus valores. Um mal, portanto, que vem de fora para dentro por contaminação, podendo, por consequência, ser combatido”, escreveu Bulgarelli.

Vinculado também a movimentos sociais progressistas, Bigon lembra de alguns debates que vivenciou com não-evangélicos. Como quando um vídeo que viralizou nas redes mostrava uma Damares relatando ter visto Jesus em um pé de goiaba no momento em que se pensava em se matar. “Aquilo virou meme, muitos riram e inclusive passaram a duvidar de sua sanidade mental”, recorda. “E eu disse: não podemos tratar dessa forma uma experiência que foi só dela, porque essa experiência, por mais absurdo que pareça, vai de encontro ao coração de muitos brasileiros que vão dizer que já aconteceu algo parecido. É a experiencia de fé do indivíduo e com o que ele acredita”, prossegue.

 

Nas eleições de 2006 e 2010, a maior parte da população protestante votou nos candidatos do PT ―que mantinha uma aliança pragmática com lideranças evangélicas― nas eleições presidenciais. Algo que mudou sensivelmente nas eleições de 2014, quando a maioria apoiou o tucano Aécio Neves. Mas a distância aumentou radicalmente em 2018, quando cerca de 70% dos eleitores evangélicos apoiaram Bolsonaro. Em entrevistas recentes, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva vem defendendo que seu partido se empenhe em reconquistar essa importante fatia do eleitorado.

“Eu assisti, na cadeia, a muito culto, muita gente rezando. E eles estão entrando na periferia, porque o povo, quando está desempregado e necessitado, a fé dele aumenta”, afirmou o petista ao portal UOL neste domingo. “Acho que o papel do Estado é ser laico, não ter uma posição religiosa. Mas o que o PT tem que entender é que essas pessoas estão na periferia, oferecendo às pessoas pobres uma saída espiritual, uma saída que mistura a fé, com o desemprego, com a economia”, complementou. “As pessoas estão ilhadas na periferia, sem receber a figura do Estado. E recebem quem? De um lado, o traficante que está na periferia. De outro lado, a Igreja Evangélica, a Igreja Católica, que também tem uma atuação forte ainda”.

A deputada petista Benedita da Silva faz uma autocrítica ao admitir que em determinados aspectos o PT deixou de dialogar diretamente com os evangélicos. Ela argumenta, no entanto, que o caminho para reverter isso não passa por usar o púlpito para fazer política. “O PT tem um projeto de inclusão social. Temos que falar sobre emprego, violência, políticas públicas”, opina. Também destaca que a disputa não deve se dar com a religião em si, mas com instituições religiosas que possuem um projeto de poder. “Temos que deixar claro que a fé é algo de cada um e que será sempre respeitada”. Questionada sobre como a esquerda vai abraçar as pautas feminista e LGBT ao mesmo tempo que dialoga com evangélicos conservadores, insiste em dizer que “a base da discussão e da formação política não deve estar voltada para a questão da fé, mas para os direitos individuais e coletivos, para a prática do dia a dia e não para a teoria”.

Isso significa, por exemplo, deixar claro que “ninguém vai obrigar um pastor a realizar em sua igreja um casamento homoafetivo”, um tema que “deve ser tratado no âmbito civil, não da fé”, segundo explica Valéria Vilhena, do Evangélicas pela Igualdade de Gênero. “Não podemos deixar toda essa comunidade fora do diálogo, nos fechar e achar que são todos ignorantes, desprezando a capacidade de pensarem e também de saírem do senso comum”, opina.

Em outras palavras, explica a antropóloga Teixeira, “é preciso não demonizar a pessoa evangélica”. “Precisamos dar nome aos problemas, e o problema é o Silas Malafaia, é Bolsonaro… Mas uma pessoa que decide professar uma fé evangélica não é alguém que podemos necessariamente colocar 100% na direita conservadora ou como apoiadora do nazismo, porque elas são permeadas por muitas outras camadas e pertencimentos religiosos e políticos”, explica. “E se a maioria é formada por mulheres negras, a quem é que estamos nominando quando dizemos que evangélico é isso ou aquilo?”, questiona. E conclui: “Precisamos ter uma postura que dê espaço para entender um pouco como essas pessoas estão pensando em relação à política sem necessariamente elegê-las como inimigos. Elas existem, mas existe um contingente imenso que está vivenciando isso sem necessariamente optar por um lado ou outro. Essas pessoas fazem uma leitura da política que não necessariamente é a do pastor. Elas também têm discernimento, e a partir disso precisamos pensar em pedagogias de diálogo e de troca de conhecimento”.

El País