Dólar é alternativa popular para a crise na Venezuela
Foto: Michele de Mello
É o custo mínimo de uma viagem de moto táxi em Caracas. O valor, é claro, pode aumentar de acordo com a distância da corrida. O meio de transporte que pode ser a alternativa mais rápida para furar as filas no trânsito caótico da capital ou fugir do aperto do metrô já pode ser pago em dólares na Venezuela.
E não é só o transporte. Com a inflação induzida e a perda de liquidez do Bolívar Soberano, a moeda estadunidense já é uma alternativa recorrente para o comércio local.
No mercado popular de La Hoyada, histórico camelô no centro de Caracas, Jefrey e Verônica também já anunciam os preços dos sapatos e roupas de criança em dólares. Para a prévia do natal, havia promoção: um par por US$ 25 ou dois por US$ 20 cada, todos vindos da China ou do Panamá. “Desde outubro do ano passado já anunciamos em dólar, porque a Venezuela está dolarizada, o Bolívar já não serve. Com o dólar você ainda guarda algo, com o Bolívar, se você guarda, desvaloriza cada dia mais ”, conta o vendedor de 22 anos, Jefrey Vielma.
Apesar do uso recente dos “verdes”, o movimento nesse ano é mais fraco. Segundo os dois vendedores, a cada 10 pessoas que entram na loja, apenas duas compram. “O problema é que muita gente ganha em bolívares e, na hora de pagar em dólares, complica”, conta Veronica Pedriquez, quem se formou como professora, mas há quatro anos trabalha como vendedora.
Veronica Pedriquez e Jefrey Vielma dependem de comissão sob as vendas de produtos em dólares, no entanto, recebem salário em bolívares.
Mesmo com movimento fraco, desde 15 de dezembro, Jefrey e Verônica trabalham de 7h a 19h até 2020, cobrando uma comissão de 20 mil BsS por artigo vendido (cerca de R$ 2) e sem salário fixo. Apesar da instabilidade, Jefrey não pensa em mudar de emprego.
“Um salário mínimo não te dá nem a base. Aqui, pelo menos vendendo 20 ou 30 pares de sapato no mês você faz alguma coisa, no entanto com 150 mil bolívares [salário mínimo] você não faz nada”, conta o rapaz que diariamente percorre cerca de 24 km, de Caucaguita – na favela de Petare, uma das maiores da América Latina – até o centro fervoroso da capital.
Segundo dados de um estudo recente da Ecoanalítica, hoje circulam três vezes mais dólares que bolívares soberanos na economia venezuelana: US$ 2,7 bilhões, apenas em bilhetes físicos. Para os economistas da empresa venezuelana, os dólares são a principal moeda nas transações financeiras minoritárias.
“Há um processo de uso do papel moeda do dólar, mas não somente com o dólar, senão com o real brasileiro no sul do país e com o peso colombiano no ocidente do país, já o dólar se concentra mais no centro e oriente do país. Esse processo existe já que o bolívar é uma das moedas mais desvalorizadas do mundo e muito instável. Isso gera um grave risco que é a desaparição do bolívar, enquanto se massifica o uso de outras moedas”, afirmou o economista e pesquisador do Centro Internacional Miranda, Oscar Forero.
O uso das divisas realmente ultrapassa a região metropolitana da capital. Na Ilha Margarita, ponto turístico do país – desde 2000 considerada uma zona especial, com porto livre – apesar de em 2018 ter sido decretada a primeira “zona Petro” do país, no comércio local o que circula é o bolívar ou o dólar.
Produtos comercializados na Ilha Margarita têm uma tarja vermelha, porque são isentos de imposto por valor agregado (IVA), o que diminui 13% no preço final.
Na praia El Yaque, uma das mais frequentadas na Ilha, os pacotes turísticos para conhecer outras ilhas do estado Nueva Esparta são oferecidos em dólares, variam de US$ 40 a US$ 60, de acordo com a distância e os benefícios incluídos.
Apesar de parecer comum, por ser uma zona de muito fluxo de estrangeiros, até poucos anos atrás, as mesmas viagens eram vendidas em bolívares, conta Eduardo Gentil Urdaneta, caraquenho, que vive há mais de 20 anos em Margarita, trabalhando como guia turístico.
Por isso, até mesmo para os operadores de turismo a presença da moeda estrangeira no cotidiano da gente comum é algo estranho. “Cada vez que passa o tempo é mais comum entrar em uma loja e ver todos os preços em dólares, estando na Venezuela”, destaca com cara de espanto Eduardo Urdaneta.
Basta caminhar pelos corredores do Mercado Municipal Los Conejeros para ver os anúncios em dólares. Os comerciantes, no entanto, confirmam que, apesar da ilha ser uma zona de porto livre (sem cobrança de impostos sobre os produtos de importação), a moeda estadunidense começou a ser usada com mais frequência no último ano e meio.
O motivo, novamente, é a desvalorização do bolívar soberano. “Aqui sempre aceitamos outras moedas, mas de uns meses pra cá aceitamos mais em dólares porque, se de tarde o dólar sobe, já tudo sobe também, até as empanadas”, afirma Richard Alexander Fon Leon, artesão.
O artesão Richard tem dois filhos morando no Brasil, mas não pensa em emigrar “Ainda que estamos em crise, o venezuelano gosta de aproveitar a vida. Agora está mais difícil, mas sempre garantimos a comida e um traguito ou outro”, conta.
Duas empanadas mistas: pode ser de cação com banana da terra, marisco, carne e queijo, tudo por um dólar na barraca da Mary, professora que há dois anos diminuiu o trabalho em sala de aula para se dedicar ao negócio de empanadas iniciado há 13 anos pela mãe.
Ela conta que o preço é estabelecido entre os donos dos 25 locais de empanadas no Mercado de Los Conejeros, depois que uma das trabalhadoras faz uma pesquisa de mercado com o custo da matéria-prima para estabelecer um preço final justo.
César Nicolás Patiño, pai de Maribel Del Valle Patiño, é o resposável por fazer o recheio das empanadas. “A de cação é a mais buscada”, afirma.
Se para o consumidor o valor de uma empanada, tradicional café da manhã venezuelano, parece cara com a crise econômica, para quem produz as dificuldades também não são poucas.
Segundo Marybel Del Valle Patiño, dona da Empanadas Mary, agora já não é mais difícil encontrar a matéria- prima, no entanto, a maioria dos produtos são cobrados em dólares. Um pacote de meio quilograma de farinha de milho rende cerca de 10 empanadas e pode custar US$ 1,50.
E nessa conta também entram outras dificuldades de viver em uma ilha. O gás é distribuído às terças e quintas-feiras, e cada habitante têm direito a um botijão. Por isso, nos dias de entrega, toda a família marca um lugar na fila, desde às 3h da manhã, para poder comprar mais de um botijão de gás e abastecer o negócio.
Além disso, Margarita vive do turismo. A atividade agrícola é quase nula na ilha, então, quase todas as mercadorias são fruto de importação nacional ou internacional. Para enviar um caminhão de produtos de outra região, somente com a passagem da balsa são gastos 1,2 milhão BsS (cerca de R$ 100) ou quase dez salários mínimos.
No final das contas, a queixa, tanto dos comerciantes caraquenhos, quanto dos margaritenhos é a mesma: o salário. “Eu não tenho capacidade de poupança”, conta o guia turístico Eduardo Urdaneta.
Para o economista Luis Gavazut, essa seria outra deformação do processo de “dolarização de facto” que vive o país. “Não podemos considerar uma dolarização total porque o preço mais importante de uma economia é o salário, que é o valor da força de trabalho não está dolarizado. O que está dolarizado são os preços dos bens e serviços”, explica o analista do portal 15yÚltimo.
No Mercado Municipal Los Conejeros, na Ilha Margarita, os produtos são anunciados em dólares.
Em dezembro, a Superintendência das Instituições Bancárias (Sudeban) autorizou os bancos criarem uma modalidade de conta custódia para guardar as divisas estrangeiras dos seus clientes. Em algumas instituições, os venezuelanos também podem realizar transferências bancárias com usuário do mesmo banco, usando moedas estrangeiras e pagando uma taxa de 0,1% do valor da transação.
Os caminhos para o início dessa dolarização de facto não são conclusivos, mas existem alguns fatores que indicam como um país bloqueado, que em cinco anos (2013 – 2018), segundo a Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL), sofreu uma retração de 44,3% do seu PIB, poderia ter 56% das suas transações financeiras internas realizadas em dólares.
No camelô de La Hoyada, centro de Caracas, a circulação em dólares aumentou, mas o movimento caiu.
Além do comércio, os dólares entram na economia venezuelana através de remessas enviadas do exterior. Segundo cifras do Centro Internacional Miranda, por ano, ingressam US$ 10 bilhões por essa via (cerca de R$ 40 bilhões). “Apesar dos bloqueios e sanções, por ser a moeda hegemônica no mundo, as pessoas tendem a migrar para uma moeda mais estável”, indica Forero.
Outra fonte de ingresso e investimento com a moeda estrangeira são os cidadãos venezuelanos, tanto no país, como no exterior, que puderam acumular riqueza através do sistema de dólares subsidiados pagos pela Comissão Nacional Administradora de Divisas (CADIVI). Trata-se de um sistema criado em 2003, por conta do controle cambiário estabelecido pelo governo de Hugo Chávez para impedir a fuga de capitais no país.
Nesse período, logo após o golpe de Estado e a sabotagem da Petróleo da Venezuela S.A. (PDVSA), em 2002, o empresariado opositor buscava atacar a administração chavista, evadindo divisas e diminuindo seus investimentos no país, para desacelerar a economia.
Com o CADIVI, era o Estado quem vendia e administrava o uso de moedas estrangeiras, oferecendo um câmbio subsidiado. No início, um dólar valia 1.600 bolívares fortes e cada venezuelano inscrito no sistema poderia comprar, por ano, US$ 4 mil para viajar e US$ 2 mil para compra de equipamentos eletrônicos, bastava solicitar o crédito ao Estado e depois comprovar o gasto com notas fiscais.
No último ano de existência da comissão, em 2014, o cambio oficial para importação de bens consumo era de 6.300 bolívares fortes e 11.300 bolívares por dólar, nos casos de importação e exportação. Apesar de mais caro, o valor ainda era muito inferior ao câmbio oficial internacional.
São comuns as histórias de venezuelanos que viajavam por dois ou três dias a outro país para poder comprar os dólares do Estado e vendê-los no preço do mercado internacional.
A corrupção também chegou ao topo do sistema. Segundo o ex-ministro de planificação, Jorge Giordani, durante a direção de Manuel Antonio Barroso, entre 2006 e 2013, teriam sido desviados cerca de 25 bilhões de dólares através do CADIVI.
Apesar das ganâncias multimilionárias o setor privado segue sendo de maioria opositora e continua buscando fragilizar o atual governo através de uma guerra econômica. “Os privados não investem e não estão dispostos a usar suas divisas, que são muitas. Nesse momento giram em torno de 170 bilhões de dólares em contas bancárias no exterior, somente contabilizando ativos líquidos, e isso representa mais de 20 vezes as reservas internacionais da Venezuela para se ter uma ideia. No entanto, não trazem nada, uma fração que trouxessem seria um boom para ativar a economia venezuelana”, afirma Gavazut.
Os relatos coincidem em que a moeda estrangeira passou a tomar o lugar da moeda nacional, no início de 2019. Para o economista Luis Gavazut, além das remessas e do setor privado, há influência direta das políticas econômicas do governo.
Para ele, o dólar começa a circular na economia venezuelana através do Programa de Recuperação Crescimento e Prosperidade Econômica, iniciado em setembro de 2018, quando se adotou uma política restritiva monetária como solução ao processo hiperinflacionário na economia nacional.
Algo que implicou uma redução da frequência e magnitude dos aumentos salariais, pagamento de bônus e outros subsídios diretos por parte do Estado – diminuição do gasto público geral.
“Com tudo isso, o que se alcançou foi uma redução drástica da liquidez monetária do bolívar, com a esperança de que isso detenha o processo hiperinflacionário. Se conseguiu, já que atualmente saímos de um processo de hiperinflação, apesar de seguirmos com uma inflação galopante.Mas, como resposta dos agentes econômicos a essa escassez de bolívares em circulação, o que aconteceu foi esse processo de dolarização de facto ou de circulação do dólar e outra divisas diretamente na economia nacional”, analisa Gavazut.
Até o início de 2019, existia maior restrição no uso cotidiano da moeda estrangeira, já que a Constituição venezuelana prevê o bolívar soberano como único meio de pagamento. No entanto, a partir de fenômenos como o boicote ao sistema elétrico nacional que gerou um apagão em 22 dos 23 estados do país, em março desse ano, os “trumps” começaram a aparecer.
Sem eletricidade para poder realizar transações com cartão de débito e crédito ou transferências bancárias, o dólar, que era uma unidade de economia, passou a ser usado para comprar até o mais básico: pão e água.
“Neste momento, ao invés de promover o uso do bolívar e criar estratégias para fortalecer nossa economia, o que fizeram foi simplesmente mudar para o dólar e abandonar nosso cunho monetário. Tudo isso representa o risco de uma possível dolarização total da Venezuela, como já aconteceu em outros países”, alerta Forero.
Para esse tipo de situação, a criptomoeda petro, considerada a aposta do governo para a desvalorização da moeda nacional, também não serviria, já que, para seu uso, os venezuelanos dependem de acesso à energia e internet. O petro pode ser considerado uma alternativa similar ao Peso Cubano Convertível (CUC), utilizado durante o Período Especial em Cuba.
Gavazut defende que a única forma de impedir a dolarização de facto, estabilizar o tipo de câmbio e, como consequência, a escalada inflacionária e o desabastecimento, seria aumentando a produtividade da economia venezuelana. Em um país que tem 90% das suas exportações concentradas no petróleo, o primeiro passo seria recuperar a indústria petrolífera.
Segundo dados da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), a Venezuela tem dado sinais de recuperação. Em dezembro, foi produzida uma média de 912 mil barris diários, 12 mil a mais que em novembro. No entanto, é uma cifra ainda muito inferior aos mais de 2 milhões que o país chegou a produzir no período de Chávez.