Indulto de Bolsonaro a policiais criminosos não tem efeito prático

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O indulto de Natal concedido pelo presidente Jair Bolsonaro a agentes de segurança pública condenados por crimes culposos teve alcance restrito e pouco efeito prático. Vinte dias depois de sua edição, O GLOBO não encontrou nenhum caso de policial ou outro militar que tenha buscado na Justiça um perdão de pena com base no decreto.

O GLOBO consultou os Tribunais de Justiça (TJs), as Defensorias Públicas, os andamentos processuais disponíveis, associações de policiais e fontes com atuação nos dez estados brasileiros onde a PM mais mata em serviço. Nenhum caso de pedido de indulto foi encontrado.

Em anos anteriores, pedidos à Justiça eram quase automáticos nos dias seguintes às edições dos decretos de indulto. A não detecção de pedidos não significa que os casos não existam, mas autoridades com atuação na área afirmam que o universo de militares condenados por um crime culposo (quando não há intenção de cometer o crime) ou por excesso culposo (quando a legítima defesa extrapola o aceitável, também sem a intenção de se praticar o excesso) é muito restrito.

Penas baixas
Um apagão estatístico impede de saber a real extensão desses casos. As condenações não levam policiais à prisão, em razão de penas muito baixas estipuladas no Código Penal Militar. Um homicídio culposo praticado por um PM em serviço tem pena de um a quatro anos de detenção. Uma lesão culposa (um atropelamento a caminho de uma ocorrência, por exemplo) é punida com detenção de dois meses a um ano, em caso de condenação. As penas de reclusão acabam, assim, sendo substituídas por outras medidas, como previsto em lei.

Bolsonaro tem como discurso político o perdão a pena de militares condenados por crimes cometidos em serviço. Na Presidência, ele vem tentando emplacar a ampliação da chamada excludente de ilicitude, com isenção de culpa a PMs que matam em supostos confrontos. Parte dessa proposta foi transportada para o decreto do indulto, contrariando a sugestão formulada pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), vinculado ao Ministério da Justiça.

Os conselheiros chegaram a ensaiar uma proposta mais ampla de indulto, mas não houve respaldo da maioria deles. Indultar militares nem chegou a ser cogitado no conselho. Por fim, o colegiado encaminhou ao Planalto uma sugestão de perdoar a pena de presos apenas por razões humanitárias, como em casos de paraplegia e doenças graves.

No Planalto, Bolsonaro mobilizou as estruturas para incluir também o perdão da pena de PMs e militares federais que atuam em operações de garantia da lei e da ordem (GLOs). O decreto, editado em 23 de dezembro, perdoa policiais condenados por crimes culposos e que tenham cumprido um sexto da pena, além do chamado “excesso culposo”, por atos praticados em serviço ou em decorrência da função. O perdão se estende a militares federais que abusam da legítima defesa, sem dolo, em GLOs.

No Rio, líder em letalidade policial, onde 2,6 mil pessoas foram mortas em intervenções policiais em 2017 e em 2018, o TJ não tem registro de concessão de indulto a PMs e não sabe informar se houve algum pedido. O defensor público Leonardo Rosa, subcoordenador do núcleo do sistema penitenciário da Defensoria do Rio, diz que são “muito raros” casos de policiais condenados por crime culposo:

— Nunca vi um PM cumprindo pena por isso. Até a hipótese do excesso culposo é rara. Esse decreto foi só para dizer que estava havendo um perdão de pena ao policial.

Em São Paulo, intervenções policiais resultaram em 1,7 mil mortes em dois anos, segunda maior quantidade no país. O TJ afirma ter havido um pedido de indulto, mas não se sabe se ele diz respeito a agente de segurança ou a motivos humanitários. A Associação de Oficiais e Praças da PM de São Paulo diz que nenhum associado fez um pedido de indulto e que não há no Tribunal de Justiça Militar do estado — uma estrutura separada do TJ — nenhuma entrada de pedido de indulto.

Responsável por uma das varas com mais processos envolvendo PMs no Brasil, a 1ª Auditoria Militar de São Paulo, o juiz Ronaldo Roth estima que, nos últimos dois anos, houve apenas entre seis e oito casos de PMs condenados por crimes culposos na vara, sendo a maioria por lesões culposas. Também há casos de disparos acidentais de armas.

— O decreto foi apenas uma medida retórica, de efeito psicológico, sem mudar nada na prática — diz o juiz.

O TJ da Bahia, estado que é terceiro no ranking de letalidade pela polícia, registra um pedido de indulto, mas também sem possibilidade de especificar se contempla um policial. A Defensoria do estado não fez nenhuma solicitação.

Com mais de mil mortos em 2017 e em 2018, no Pará não houve pedidos de indulto a PMs até agora. Goiás é o quinto no ranking e, segundo o TJ, não houve deferimentos de indulto desde a edição do decreto. A Defensoria também não fez nenhum pedido.

Em Minas Gerais, com 317 mortes pela polícia em dois anos, a Justiça Militar informa que nenhum pedido foi feito por um condenado ou pela defesa. “Não há demanda para isso, já que o enquadramento é restrito”, diz a Defensoria Pública de Minas. “Não há qualquer preso militar atendido que se enquadre no perfil do decreto de indulto”, afirma a Defensoria do Rio Grande do Sul.

Medida foi tomada sem dados sobre sua extensão
O decreto de indulto a policiais e militares condenados por crimes culposos foi assinado pelo presidente Jair Bolsonaro sem que os órgãos oficiais relacionados tenham dados estatísticos sobre a real extensão da medida.

O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), que discute o indulto sob um viés técnico e faz sugestões à Presidência da República, não sabe quantos militares foram condenados por crimes culposos ou por excesso culposo. O Departamento Penitenciário Nacional também não. Os dois são vinculados ao Ministério da Justiça.

No âmbito do Judiciário, nem o Conselho Nacional de Justiça nem o Conselho Nacional do Ministério Público sabem precisar o tamanho desse universo.

O entendimento no CNPCP, segundo conselheiros ouvidos pelo GLOBO, é que a abrangência do decreto é “muito pequena”.

— É difícil imaginar que existe um PM preso por crime culposo. Ninguém fica preso por isso — diz um conselheiro.

Segundo integrantes do conselho, a abrangência é maior em casos de excesso culposo na legítima defesa — disparar quatro tiros em vez de um, sem necessidade, numa situação de suposto perigo, por exemplo. Mesmo assim, o mais provável é que esses policiais estejam fora do sistema prisional ou absolvidos em razão do enquadramento de legítima defesa, previsto no Código Penal.

A Câmara Criminal e a Câmara de Controle Externo da Atividade Policial da Procuradoria-Geral da República estudam contestar o decreto no Supremo Tribunal Federal.

— É preciso esperar para ver se vão surgir pedidos de aplicação das regras. A impressão que se tem é que serão muito poucos — diz o subprocurador-geral da República Domingos Sávio.

O Globo.