Irã justifica ataque com Artigo 51 da Carta da ONU

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Foto: Iribnews/Reprodução

O Irã atacou, com mais de 12 mísseis, duas bases que abrigam tropas dos EUA no Iraque na noite desta terça (7) – madrugada de quarta (8) no horário local. Segundo o ministro de Relações Exteriores iraniano, Javad Zarif, os ataques foram feitos com base no artigo 51 da Carta da Organização das Nações Unidas (ONU).

A Carta é o tratado que estabeleceu as Nações Unidas logo após a Segunda Guerra Mundial, em substituição à Liga das Nações, como entidade máxima da discussão do direito internacional e fórum de relações e entendimentos supranacionais. O documento traz também as principais disposições com relação à manutenção da paz e segurança internacionais.

O artigo 51, citado pelo ministro iraniano, permite que Estados usem da violência em resposta a uma agressão, mas proíbe a alegação de legítima defesa antecipada diante de um possível ataque armado e não realizado. A prerrogativa para agir, no entanto, é que seja feita a imediata comunicação ao Conselho de Segurança sobre a medida adotada para a autodefesa.

Uma das dúvidas sobre o assassinato do general iraniano Qasem Soleimani é se os EUA tinham base legal para ordenar o ataque aéreo. O primeiro comunicado do Departamento de Defesa dos EUA, divulgado logo após o ataque, não falava em risco “iminente”, como determina a legislação internacional.

No entanto, os textos divulgados posteriormente pelas autoridades americanas, inclusive o comunicado feito pelo presidente Donald Trump, diziam que Soleimani planejava “ataques iminentes”.

A dúvida deu margem para que a pré-candidata democrata à Presidência dos EUA, Elizabeth Warren, criticasse o presidente americano: “o governo não consegue acertar sua narrativa”.

“Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais. As medidas tomadas pelos membros no exercício desse direito de legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurança e não deverão, de modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito, em qualquer tempo, a ação que julgar necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais”.

O caso mais conhecido de utilização do que está previsto no artigo 51 da Carta da ONU é a ação retaliatória dos Estados Unidos no Iraque após os ataques de 11 de setembro – referendado pela resolução 1.368/2001 do Conselho de Segurança da organização.

Outra ação autorizada pelo Conselho de Segurança foi a intervenção militar na Líbia, durante o período da Primavera Árabe, em 2011. A resolução permitia o uso da força para a proteção de civis.

Na ocasião, a operação foi liderada pelos principais membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN. Rússia e China, no entanto, acusaram a OTAN de atuar para além do que a resolução permitia, ditando os rumos políticos da Líbia.

Em 2018, após alegar resposta ao uso de armas químicas pelo governo Bashar al-Assad em território Sírio, Estados Unidos, França e Inglaterra fizeram uma intervenção militar por meio de bombardeios à Síria.

Na ocasião, Trump argumentou que se tratava de “ameaça à Segurança Nacional” dos Estados Unidos, o que poderia justificar uma legítima defesa preventiva. A ação foi considerada ilegal nos termos da ONU e do Direito Internacional.

Consultados pelo G1, dois professores da Fundação Getúlio Vargas, Vinícius Rodrigues e Paulo Velasco, têm pontos de vista distintos sobre o uso do artigo 51 neste novo ataque do Irã com mais de 12 mísseis.

“A utilização do artigo 51 é uma tentativa de dar um verniz legal à sua ação, uma espécie de legitimidade. O artigo 51 é polêmico e as autoridades iranianas sabem disso. Quando essa situação chegar ao Conselho de Segurança da ONU, há uma grande chance de os Estados Unidos ficarem de um lado e Rússia do outro, com os outros membros optando pela neutralidade. Ou seja, o conselho poderá não chegar a nenhuma conclusão”, explicou o professor de Relações Internacionais, Vinícius Rodrigues.

Ele consegue enxergar uma lógica nos ataques para além da mera retaliação direta.

“A impressão que tenho é a seguinte: com esses ataques, o Irã diz aos Estados Unidos que o jogo agora está zero a zero – ‘vocês mataram nosso general e agora atacamos suas bases. Estamos empatados e é melhor pararmos por aqui’. É evidente que, neste momento, a bola está com os Estados Unidos. Vamos ver agora se essa situação vai avançar para uma escalada, algo que, neste momento, não acredito. Apesar de querer se estabilizar como principal força no Oriente Médio e enxergar os Estados Unidos como um obstáculo a esse objetivo, o Irã sabe que não pode vencer uma guerra direta contra os americanos”.

Para o professor Paulo Velasco, a utilização do artigo 51 foi indevida.

“O artigo justifica a legítima defesa quando um país sofre uma agressão efetiva contra seu território – o que de forma alguma foi o caso em questão. O assassinato do general Soleimani foi uma ação pontual e ocorrida em território iraquiano. Ou seja, trata-se de um ato pontual: a morte de um ator específico, fora do território iraniano. Portanto, a meu ver, o artigo 51 não poderia ser aplicado. Mas aí, cada país utiliza uma interpretação da lei e uma retórica diplomática diferente para justificar suas ações”.

Segundo ele, o Irã foi muito cuidadoso em sua retaliação.

“Os iranianos não fizeram nada além do previsto para dar essa resposta à sua população. Atacaram uma base que nem pertence aos Estados Unidos – apenas abriga militares americanos. E pelo menos até o momento, não há notícias de mortes americanas. Por isso, com o que temos até agora, não acredito em uma escalada do confronto. Os Estados Unidos sabem que uma guerra pode comprometer sua economia – algo que Trump não quer de jeito nenhum, sobretudo neste ano, em que ele tenta a reeleição. E o Irã também sabe que declarar guerra aos Estados Unidos é suicídio. O governo iraniano é muito pragmático – não por acaso, controla o país desde 1979”.

G1