Milícias proliferam e influenciarão eleições municipais

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A interferência de milícias no sistema político do Rio de Janeiro e o risco de expansão da atuação de grupos paramilitares para o resto do País causam preocupação entre autoridades públicas e estudiosos do assunto. O tema deve estar presente nas eleições municipais de 2020, especialmente na disputa pela capital fluminense, onde as milícias atuam desde os anos 1980.

Hoje, há registros de grupos milicianos no Distrito Federal e em 23 Estados, entre eles Pará, Piauí, Ceará e Rio Grande do Norte, segundo levantamento feito pelo Estado em inquéritos, informações de serviços de inteligência policial, dados do governo e notícias publicadas pela imprensa. Nesses locais, porém, o perfil das facções é, predominantemente, de grupos de extermínio e de segurança privada forçada. Na maioria dos casos, essas milícias são consideradas em estágio embrionário, se comparadas ao modelo carioca, já consolidado.

Nos últimos três meses, o Estado consultou dados oficiais e estudos sobre as milícias e suas relações com a política. A reportagem entrevistou autoridades, investigadores e pesquisadores sobre as causas deste problema nacional e a repercussão que ele pode causar nas disputas eleitorais deste ano. É possível concluir que se trata de um fenômeno ainda sem dimensão oficial no Brasil, nem política integrada de prevenção e enfrentamento.

Embora nenhuma unidade da federação conte com grupos milicianos tão organizados como os do Rio de Janeiro, autoridades públicas já tratam a questão como um possível problema para as eleições 2020. A Polícia Federal passou a monitorar a ação de milícias e de facções criminosas no processo eleitoral e identificou riscos em 18 Estados, de acordo com um mapa reservado obtido pela reportagem. O foco é o financiamento ilegal de candidatos e partidos, candidaturas de criminosos e pessoas ligadas a eles.

A situação é mais preocupante em locais com alto índice de violência, serviços públicos precários e corrupção policial. Em seis unidades da federação, Maranhão, Pará, Paraíba, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Sergipe, já foram encontradas relações de milicianos com políticos.

Na maioria dos casos, as milícias criadas fora do Rio ainda têm atuação restrita à venda de segurança privada com cobrança de taxa obrigatória dos moradores. Mas já há registros de casos em que milicianos passaram a oferecer, nas comunidades onde atuam, venda de gás, água, cestas básicas, imóveis, sinal de TV a cabo e internet, o que lhes permite controlar o território, e consequentemente, conquistar domínio político.

Em dezembro de 2019, a Polícia Civil do Piauí, com apoio do setor de inteligência da Polícia Militar, prendeu 13 pessoas – a maioria, policiais e ex-policiais – que praticavam crimes como roubo de carga, extorsão, tráfico de drogas e comércio ilegal de arma, na Operação Dictum. Em conversas monitoradas com autorização judicial, os acusados debochavam das ações de combate à milícias, combinavam roubos e venda de combustíveis, cigarros e bebidas adulteradas, e falavam abertamente sobre agressões e assassinatos. O suposto líder do grupo seria um ex-PM, preso no aeroporto voltando de viagem ao Rio, e que, em 2017, teve o nome envolvido no assalto ao Banco do Nordeste. Eles negam os crimes e a formação de milícia.

No Pará, a Polícia Civil e o Ministério Público têm registros de milícias formadas por policiais, ex-policiais e agentes de segurança que atuam como grupos de extermínio e passaram a controlar territórios, atuar com venda gás, transporte alternativo, internet e manter relação com o tráfico de drogas. No Estado, a Assembleia Legislativa chegou a abrir uma CPI das Milícias e Grupos de Extermínio que apontou em seu relatório final, em 2015, a existência de três grupos.

No Maranhão, a Operação Cifra Negra, deflagrada em 2019, levou para a cadeia milicianos – entre eles policiais, um deles conhecido como “Luis Matador” – acusados de agirem como grupo de extermínio, mas também com exploração de jogos de azar, tráfico de drogas e armas, entre outros crimes. Um dos investigados, sargento da polícia, foi candidato a vereador na cidade de Viana.

Embora não haja uma ligação clara desses grupos com possíveis candidatos a cargos públicos, as autoridades já estão em alerta. O delegado Gustavo Jung, do Grupo de Repressão ao Crime Organizado (Greco) da Polícia Civil do Piauí, que coordenou a Operação Dictum e combate milícias no Estado, afirma que os grupos locais podem começar a patrocinar políticos se não forem combatidos.

“O que a gente consegue observar ainda é o interesse econômico nos grupos locais. A gente ainda não conseguiu ver um domínio territorial, como se tem no Rio. Mas é um embrião, porque começa assim. Hoje eles atuam já muito no cigarro contrabandeado”, afirma o delegado. “Não duvido que, se não combatermos, daqui alguns anos eles se organizem e passem a ocupar cadeiras políticas, a financiar campanhas.”

O sociólogo José Cláudio Souza Alves, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), autor do livro Dos Barões ao Extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense, estuda milícias há três décadas e tem uma visão histórica do problema. “Eles têm interesse em se projetar politicamente. São grupos que, ao se fortalecerem, eles vão passar a controlar a atividade da política, vão controlar o Judiciário”, afirma em tom de alerta sobre o “cenário é muito favorável” para candidaturas de milicianos em 2020.

Nas urnas, eles deixam de ser assassinos. Nas urnas viram personalidades políticas e viram heróis. É a grande alquimia: (a urna) transforma assassinos, canalhas, monstros cruéis em heróis, em personalidades políticas, em benfeitores da comunidade.”
José Cláudio Souza Alves, sociólogo e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)
A presença de agentes do Estado, como ex-policiais, em seus quadros politiza as milícias, na opinião do ex-ministro da Defesa e da Segurança Pública Raul Jungmann. Em 2018, quando os morros e favelas fluminenses estavam tomados por tropas federais, com a intervenção decretada pelo então presidente Michel Temer, Jungmann teve uma melhor dimensão do problema e da dificuldade de combater as milícias.

“O miliciano, como agente de Estado, tem uma noção da política. Contrariamente ao tráfico de drogas, eles têm uma formação e uma noção da política e da importância da política, que evidentemente faz com que eles tenham maior propensão (a se infiltrarem)”, diz Jungmann.

Assim como milícias, facções criminosas tentam se infiltrar na política
Facções criminosas que controlam o crime de dentro e fora das prisões também buscam interferir e se infiltrar na política e no processo eleitoral, o que tem chamado a atenção de autoridades.

No Rio, o irmão do traficante Marcinho VP, “Cidinho”, tentou se eleger deputado federal em 2010 pelo PRB, mas não conseguiu. Em 2016, no Rio Grande do Norte polícia e Ministério Público gravaram, em uma interceptação telefônica, dois membros da facção Sindicato do Crime discutindo a necessidade de infiltrar um aliado na política local. O Estado foi um dos que recebeu tropas federais a pedido do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 2018.

Há registros de ação de facções na política ainda no Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio Grande do Sul.

Em São Paulo, o PCC, criado nos anos 1990 em presídios do Estado, não mostra suas aspirações políticas abertamente como as milícias do Rio. Apesar de já ter sido associado a políticos, não há registros de membros da liderança do grupo se lançando como candidatos. O pesquisador, escritor e jornalista Bruno Paes Manso afirma que a facção pode se dar ao luxo porque já controla um aparato do Estado, que são as prisões, de onde governa o mundo do crime, fazendo sua própria justiça, controlando o mercado bilionário das drogas e estabelecendo suas regras.

“O PCC virou uma agência reguladora do mercado do crime. Você tem as regras e os regulamentos que o crime obedece em São Paulo, e quem faz isso, é o PCC. Mas o PCC, em vez de dominar os territórios, em vez de ter domínio territorial do lado de fora, ele tem o domínio do sistema carcerário, onde dominam 90% do sistema.”

Manso está estudando as milícias no Rio e prepara um novo livro sobre o tema. Ele aponta diferenças entre a forma de controle entre o PCC e as milícias e também as distinções entre os discursos de legitimação dos atos. Segundo ele, a violência policial pode ser propulsora de milícias organizadas nos moldes do Rio e cita do Estado do Pará. “Uma coisa que a gente tem falado muito é que a violência policial acaba sendo a semente das milícias. Porque quando você tem uma tolerância com a polícia que mata, os caras começam a matar em defesa dos seus próprios negócios, seus próprios interesses. Então no Pará isso começou a acontecer e no Rio também.”

‘A Justiça Eleitoral tem como enfrentar a questão as milícias? Não’, afirma procuradora
Por trás do crescimento das milícias e sua expansão pelo Brasil está a dificuldade do poder público de dar uma resposta à altura. A ação de combate precisa de adequação das leis brasileiras, de integração das instituições de Estado (União, Estado e Município) e de um nova formatação de método operacional, que deixe de priorizar o confronto em territórios dominados e foque em inteligência de investigação, segundo especialistas ouvidos pelo Estado.

Chefe da Procuradoria Regional Eleitoral no Rio (PRE-RJ), a procuradora regional da República Silvana Batini atua na área criminal, mas entre 2019 e 2021 responde pela área eleitoral no Estado berço das milícias – cargo que ocupou também de 2008 a 2010. Ela afirma que “a questão das milícias nas eleições exige integração de todos os órgãos de controle”.

“Se você me perguntar se a Justiça Eleitoral tem como enfrentar a questão das milícias, não. Porque é um tema que transcende em muito a atuação da Justiça Eleitoral, é um problema da polícia, um problema da justiça comum. Vai ser necessário integração.”

A promotora de Justiça Miriam Lahtermaher, coordenadora do grupo especializado na área eleitoral do Ministério Público Estadual do Rio, explica que o órgão tem duas frentes de ação para barrar candidaturas de milicianos e pessoas ligadas a eles: com uso da Lei da Ficha Limpa e com comprovação de abuso de poder econômico ou político.

“Temos duas oportunidades para tentar barrar do processo eleitoral eventuais candidatos ou miliciano ou relacionados ao nome da milícia. A primeira oportunidade seria a impugnação do registro de candidatura. E para isso nós precisamos de uma sentença condenatória confirmada pelo tribunal, desde que haja condenação em primeira e segunda instância.”

Miriam Lahtermaher explica que a segunda via é buscar provas de que o candidato foi favorecido financeiramente ou politicamente para tentar cassar sua candidatura antes da diplomação. “Nós temos um instrumento legal que se chama ação de investigação judicial eleitoral, em que você tem que ter um abuso de poder econômico, ou abuso de poder político. É uma ação que tem que ser proposta até a data da diplomação e que o tribunal exige provas firmes para você entrar.” Segundo a promotora, nesses casos é preciso provar que o “candidato está sendo apoiado por aquele grupo de milícia, com poderio econômico”. “Que ele está se valendo desse poderio econômico, que outros candidatos não se valem.”

Segundo Silvana Batini, a Procuradoria Regional Eleitoral vai fazer uma “triagem muito rigorosa” dos pedidos de registros de candidaturas em 2020 de eventuais pessoas envolvidas com o crime organizado. “Para barrar candidaturas que não preencham os requisitos legais. Isso é o papel da Justiça Eleitoral.” E vai buscar apoio da polícia e da Justiça comum para garantir que os eleitores das comunidades sob o domínio de organizações criminosas “possam ter um ambiente de liberdade para fazer suas escolhas”. O pesquisador Ignácio Cano pondera, no entanto, que o Estado é ineficiente no combate à influência das milícias em seus territórios, tanto da esfera criminal, como no campo eleitoral. “O Estado é completamente incapaz de impedir a influência política desses grupos, tanto a milícia, quanto o tráfico, etc. Porque o Estado não tem nem contingente suficiente para ocupar todos os territórios.”

O combate integrado às milícias tem sido tentado no Rio, mas inexiste nos demais Estados, onde o problema é exclusivo de segurança pública e enfrentado de forma isolada. Em 2018, uma experiência de integração de instituições no combate à ação das milícias no Rio foi a criação do Coalizão Eleitoral, grupo encabeçado pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE), que buscou barrar a ação de organizações criminosas nas urnas.

Uma das ações preventivas contra candidaturas suspeitas foi a cassação do registro de candidatura do funkeiro MC Tikão. Alcunha artística de Fabiano Baptista Ramos, ele virou estatística nesse início de enfrentamento ao avanço do poder das milícias na política e do crime organizado. O TRE cassou em primeira e segunda instância sua candidatura a deputado federal pelo Solidariedade. Conhecido da polícia – em 2017 ele teria ajudado na fuga do traficante da Rocinha Rogério Avelino da Silva, o Rogério 157, da Rocinha, quando as Forças de Segurança Nacional ocuparam a comunidade, que estava em guerra entre traficantes -, MC Tikão nega relações com o crime organizado.

“Aonde você tem milícia, onde você tem crime organizado, efetivamente não pode se dizer que se tem democracia, direitos e garantias e representatividade. São absolutamente antípodas, não tem a menor possibilidade. Quanto maior a presença da milícia e quanto mais ela se associa, se apropria e captura órgãos do Estado, menos democracia, menos liberdade, menos segurança e efetivamente mais violência e mais mortes”, afirma o ex-ministro da Defesa e da Segurança Pública Raul Jungmann.

Jungmann faz um alerta para a possibilidade de o crime organizado ter representantes no Parlamento e se infiltrar dentro do Estado por meio da distribuição de cargos feita pelo Executivo. “A milícia controla o território, controla o voto, elege o seu representante, e seu representante vai participar da distribuição de cargos. Inclusive escolhendo cargos dentro do aparato de segurança do próprio Estado. Isso é o que eu chamo de coração das trevas”, afirma.

O procurador regional da República Marcelo Freire, que coordena o Grupo Estratégico de Enfrentamento à Violência No Rio de Janeiro, criado em 2017, defende que o combate às milícias e organizações criminosas que dominam território, a prioridade é o enfrentamento com inteligência de investigação e de asfixia aos grupos sem violência. O confronto em territórios dominados não deve ser a primeira política de enfrentamento às milícias, que deixaram de ser apenas um problema de segurança pública de competência estadual.

“Entendo que a questão da milícia é necessário se ter uma nova metodologia de investigação. Uma criação de um marco investigativo diferenciado que agregue fundamentalmente as competências e a atuação da União e das forças federais. Acho que o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, a Polícia Civil, eles desenvolvem um bom trabalho dentro de suas competências, das suas expertises, mas falta se ter um trabalho organizado da parte da União, da Polícia Federal, tanto dos órgãos de investigação, como de persecução para investigar milícia.”

Crime é uma atividade econômica, corresponde de 6% a 8% do PIB mundial. Então não vai acabar nunca, é bobagem você achar que vai acabar com o crime organizado. É seu dever combatê-lo e minimizar as suas ações. Esse é o dever. Agora, acabar, não vai acabar, é uma ilusão achar que vamos acabar com essas organizações, elas vão se transformar em outras. Elas podem ser enfraquecidas.”
Marcelo Freire, procurador regional da República
A promotora de Justiça Simone Sibilio, coordenadora do Gaeco no Rio, grupo que combate milícias no Ministério Público Estadual, afirma que a mudança na forma de se enfrentar milícia é necessária também para que se obtenha mais efetividade nos processos contra milicianos. “Se nós não mudarmos a forma de enfrentar a questão processual, mudar a forma como avaliar a prova em um processo envolvendo miliciano, claro, de acordo com a lei, dentro do devido processo legal, nós não vamos avançar. A investigação contra miliciano é muito mais difícil. E é isso que o Gaeco tem feito. Investigar de uma formadiferente.”

A dificuldade maior em se combater milícias, em relação a outras organizações criminosas, como a facção ou a de narcotraficantes, decorre da presença de agentes de segurança do Estado em sua formação. Ela serve, na opinião dos estudiosos e de autoridades, para dar credibilidade à ideia de propagada de que eles são grupos garantidores da ordem e da segurança – mesmo que sob o regime autoritário do medo e da violência e de forma ilegal -, mas também para defender interesses econômicos e para blindar suas ações criminosas e seus membros de investigações.

“A milícia ela é mais institucionalizada que o tráfico. Ela consegue de alguma maneira ter uma influência, ou estabelecer uma infiltração de seus membros dentro das instituições de uma maneira muito mais organizada que o tráfico”, diz Marcelo Freire.

Freire conclui que o Estado tem perdido a guerra contra as milícias e faz um prognóstico preocupante: “O panorama hoje é o pior possível, não tenha dúvida e a eleição do ano que vem vai refletir isso fortemente. Não tenho e menor dúvida”. “É dever do Estado combatê-las (as milícias), de forma organizada e impedindo que elas cresçam, que fomentem e possam obter novas formas de financiamento. O que está acontecendo hoje é exatamente o contrário, as organizações criminosas elas aumentam o seu portfólio de ação, elas aumentam o seu faturamento, elas têm hoje novas atividades econômicas ilícitas que elas desenvolvem, e o Estado continua atuando da mesma forma como atuava antes, desorganizadamente.”

Estadão.