Racismo é contagioso, diz reitora negra

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Foto: Zo Guimarães/Folhapress

Integrante de um grupo pequeno, mas agora organizado, de reitores negros, Luanda de Moraes celebra a redução da desigualdade racial no ensino superior, mas denuncia a persistência do racismo na sociedade brasileira e, em especial, nas universidades, onde ele é mais sutil.

À frente da Uezo (Fundação Centro Universitário Estadual da Zona Oeste), que recebe alunos vindos de áreas pobres do Rio de Janeiro, ela acaba de formar com mais seis colegas um grupo de reitores negros que levará à frente posicionamentos conjuntos sobre temas como a Lei de Cotas.

A norma, que reserva vagas nas universidades, deve ser revista no ano que vem, e Luanda avalia que há risco político de retrocesso.

Isso ocorre no momento em que a crise econômica e o enxugamento de políticas públicas trazem risco de interromper a trajetória do ensino superior rumo à equidade racial, como mostrou o Ifer (Índice Folha de Equilíbrio Racial).

À Folha ela falou sobre racismo, políticas de ação afirmativa e representatividade.



O que te motivou a entrar na vida acadêmica? Sempre tive a convicção de que precisava retribuir à sociedade, porque sou fruto do ensino público. Sou filha de uma mulher negra e de um homem também negro. Sou originária da periferia do Rio de Janeiro. Fui aprovada no vestibular, na minha primeira tentativa, para engenharia química na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Descobri que eu gostava tanto de química ao estudar para o vestibular.

Como foi isso? Naquele momento, precisei estudar muito mais do que de hábito, porque, devido à precariedade do financiamento das escolas públicas, elas só conseguem oferecer uma educação limitada. Então, mesmo sempre tendo bons resultados nas provas, eu ainda estava muito distante dos estudantes de escolas particulares ou mesmo federais.

Mas preciso dizer que o meu pai também foi engenheiro químico, e ele chegou lá porque teve o apoio da minha mãe. Em casa éramos muito incentivados a ser fortes. Éramos alimentados de diálogos para encarar a opressão que vivíamos fora de casa. Porque, ainda que morando na periferia, ainda que estudando em escolas públicas, eu era vítima de um racismo muito forte.

Pode falar mais sobre isso? Um feto negro já sofre racismo. Ainda dentro do ventre materno a mãe sofre, e essa criança vai sofrer junto. Isso vai sendo impregnado na vida. Uma lembrança clara que tenho é da escola primária, eu tinha oito ou nove anos. Uma colega ia na segunda-feira com rabo, na terça de maria chiquinha, na quarta com o cabelo solto e na quinta com coque. E eu ia com o meu cabelo black. A colega perguntava: você vai vir com esse cabelo todos os dias? Quando ela falou isso, eu tinha todas as respostas e ela teve que ouvir um longo sermão. Isso só foi possível porque tinha referências em casa de pessoas que frequentaram o movimento negro. Outro caso de que me lembro na escola municipal é que a diretora todo final do dia entregava um brinde pra criança mais limpinha. Eu era amiga de uma menina loira e nunca ganhei, ela sempre ganhou. Na minha família, sempre fui vista como a chatinha criteriosa com higiene. Ainda assim, a diretora nunca conseguiu me ver como a criança mais limpinha.

Ainda sofre racismo? Ainda. Mas falando da infância e da adolescência, essas questões marcam muito os jovens. Já é dificil vencer as limitações naturais inerentes a qualquer pessoa, como por exemplo timidez, medo, insegurança, e é muito mais difícil para a população negra que sofre essas violências. É por isso que a gente diz que a sociedade brasileira é estruturada na prática do racismo. Em muitos outros casos as pessoas desistem por falta de oportunidades.

Hoje eu ainda sofro racismo quando eu frequento determinados restaurantes e lugares. É algo muito presente. Os casos de racismo têm sido muito publicizados, a coisa está bem escrachada. Os racistas estão com muita disposição, mas nós também estamos para mudar essa realidade.

E na universidade, o racismo é diferente? Mais sutil? Sim, porém existe e, se você não estiver bem ligada, acaba sendo envolvida. A partir da implementação das ações afirmativas, o debate interno da universidade foi ampliado e ela foi se democratizando, por isso o debate começa a ser mais direto e palpável. Mas nós encontramos racismo sim e é realmente uma luta diária.

O que é ser envolvida? É quando você não consegue atuar contra. Por exemplo, quando identifica um caso e não reage porque ele está camuflado, porque existem relações de hierarquia. Tinha aquela campanha que perguntava onde você esconde o seu racismo. Você esconde o seu racismo quando não enxerga, por exemplo, o docente negro que pode ser o seu diretor de unidade, quando não enxerga uma docente que pode ser sua reitora negra.

Por que há tão poucas reitoras negras no país? Em muitos casos não existe nem mesmo uma candidatura, porque quem faz o reitor são as relações pretéritas à eleição. Em muitos casos essas relações nem conseguem ser construídas por porque, pela ação do racismo, os negros e negras sao afastados desses espaços de poder.

Agora estamos formando um grupo de reitores negros e negras de universidades públicas no Brasil. Hoje, até onde eu sei, somos apenas sete, cinco reitoras e dois reitores. Esse número já foi ainda menor, já foi zero, é muito baixo, mas existe. Posso concluir que existe sim um resultado das políticas de ações afirmativas para esse dado, porque elas conseguiram transformar as instituições de ensino superior em espaços mais plurais e, portanto, capazes de produzir e disseminar reflexões sobre o processo de formação da sociedade brasileira.

Como esse processo se relaciona com as ações afirmativas? A política de ações afirmativas aumenta a representatividade e isso incentiva as pessoas.

Trazendo a minha questão pessoal, e posso ampliar isso para a população negra em geral, eu tive pessoas que me representavam quando criança e adolescente. Não quando eu ligava a televisão, porque quando ligava parecia que não estávamos no Brasil, mas na Noruega. Mas tinha a representatividade na minha família, naquela bolha. Precisamos ampliar o número de bolhas. Para isso, precisamos de políticas públicas de ingresso e permanência.

O que vocês pretendem com esse grupo de reitores negros? Ainda estamos discutindo, mas pretendemos nos mostrar na sociedade brasileira e contribuir para o debate da revisão da Lei de Cotas, que está prevista para 2022.

A Lei de Cotas deve ser mantida como está? Deve ter alguma mudança? A gente precisa lembrar as cotas sempre existiram aqui no Brasil, mas nunca foram para contemplar negros e indígenas. Desde o Brasil colônia, foram sempre para privilegiar brancos estrangeiros, latifundiários, empresários. Mas ainda é preciso ampliar o número de vagas, ampliar a atenção para a permanência e atentar para a questão do controle das fraudes, porque isso está tirando de fato o lugar da população que de fato precisa.

Precisamos ainda incluir mais o negro, seja aumentando o número de vagas ou o percentual, e é preciso olhar o antes também. Os jovens estão sendo retidos no ensino fundamental e no ensino médio.

Vê algum risco de retrocesso na revisão? Diante da nossa realidade governamental, essa é uma grande preocupação. Se não tivermos apoio na Câmara e no Senado, a lei pode ser enfraquecida. Existe uma discussão que a lei de cotas causa conflitos raciais. Imagina: conflito racial maior que o racismo é o quê?

Como responde a esse argumento dos conflitos raciais? Quando se diz que a política de cotas pode trazer conflitos raciais, vejo como uma bela jogada arquitetada pelo movimento racista. As primeiras leis brasileiras excluiam negros e negras da escolas públicas. A lei das sesmarias, que ainda gera resultados nas nossas questões fundiárias, excluiu os negros. A Lei Áurea não previu trabalho nem salário. As pessoas foram para a rua, e aí vieram leis como a da vadiagem para tirar as pessoas da rua. E depois vem essa política de segurança. Então é inegável que é preciso políticas públicas de reparação e inclusão.

Mas, quando nós começamos a ocupar os lugares, isso causa um incômodo muito grande. Voltando à questão do racismo na universidade: eu disse que, quando a gente não percebe, a gente é envolvido. E isso acontece porque a ação racista te engana, você fica embriagada e muitas vezes você se questiona. E é por isso que você tem que estar ligado, porque você não está em questão. Em questão está o sistema racista.

LUANDA SILVA DE MORAES, 43

Reitora da Uezo, é graduada em engenharia química pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, com mestrado e doutorado pelo Instituto de Macromoléculas da UFRJ

Folha de S. Paulo

 

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