Casos de racismo ficam impunes em Câmaras de vereadores

Todos os posts, Últimas notícias

Chamar alguém de “macaco de auditório” e “negro de alma branca” ou dizer em público que “negros já estão quase todos brancos” são posturas que podem ser caracterizadas como crimes de racismo ou injúria racial. Se for pego em flagrante, o autor dessas frases não tem direito a pagar fiança para deixar a prisão e ainda pode ser condenado a três anos de cadeia. Mas em Câmaras Municipais de todo o país, vereadores que deram essas declarações não receberam qualquer punição.

A prática passa impune sob justificativas como “falta de intenção” e “imunidade parlamentar”. Advogados ouvidos pelo GLOBO, porém, dizem que essas teses não deveriam ser aplicadas a casos do tipo. Segundo a advogada Priscila Pamela C. Santos, diretora do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, a imunidade parlamentar não serve para acobertar práticas criminosas, além de ser questionável falar em falta de intenção, já que, em geral, frases racistas têm o objetivo de diminuir o outro.

Há exemplos por todo o país, em legislativos de todos os tamanhos. Em setembro de 2019, o vereador paulistano Fernando Holiday (Novo) foi chamado de “macaco de auditório” por Camilo Cristófaro (PSB), que já acumulava denúncia de racismo contra um vereador descendente de japoneses. Nenhum dos dois casos resultou em punição.

— O racismo aqui (no Brasil) é velado, subjetivo e deixa dúvidas. As Câmaras Municipais, como são um ambiente corporativista, se sentem pouco confortáveis em dar punições quando pairam dúvidas — disse Holiday.

Há um mês, o vereador foi chamado de “pretinho de merda” por um assessor de Toninho Vespoli (PSOL), segundo relata. De acordo com a assessoria de imprensa de Vespoli, a Corregedoria apura o caso. Procurado, Cristófaro não respondeu.

Também em São Paulo, em julho deste ano, o vereador Arnaldo Faria de Sá (PP) se referiu ao ex-prefeito Celso Pitta como “um negro de verdade, negro de alma branca”. O pedido de cassação está na Corregedoria. Segundo a vereadora Elaine do Quilombo Periférico (PSOL), a maioria do colegiado, no entanto, sinalizou votar com o relator do caso, Adilson Amadeu (DEM), que deu parecer contrário à denúncia sob a justificativa de que não há “qualquer indício de intenção proposital racista”.

De acordo com Elaine, parlamentares disseram na reunião que Faria de Sá, que foi deputado federal por oito mandatos, “ainda está aprendendo” e já foi punido com a exposição pública. O vereador declarou, por nota, que seu caso ainda está sendo avaliado na Câmara.

Enquanto faz pressão para garantir punição a Faria de Sá, Elaine lembra casos de racismo que sofre no dia a dia. Numa reunião da corregedoria com outros seis vereadores, ela afirma que foi chamada de “uma outra vereadora” — e não por seu nome — e foi a única pessoa na sala a não receber água.

— Pior do que ninguém me oferecer um copo d’água é nenhuma das pessoas naquela mesa se incomodar com o fato de não terem servido água a uma vereadora — disse Elaine. — As pessoas têm muita dificuldade de olhar para mulheres como eu, negra, e entender que aquela pessoa tem capacidade de apresentar argumentos válidos, dentro de um espaço como a Corregedoria. Isso dói. E é uma prática do racismo estrutural.

O maior parlamento municipal da América Latina está longe de ser exceção. Em Belo Horizonte, Ciro Pereira (PTB) não foi punido por ter feito, em agosto, uma publicação nas redes sociais em que coloca a foto do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva junto a lideranças religiosas e escreve na legenda que o petista “busca as forças ocultas africanas”. Procurado, ele não quis se manifestar.

A falta de punição aos crimes de racismo e injúria racial praticados por vereadores é recorrente. Em 2015, o então vereador curitibano Mestre Pop (PSD) ouviu de Zé Maria, na época no Solidariedade, uma declaração de cunho racista — para o autor, tratava-se de uma piada: “Sabe por que preto entra em igreja evangélica? Para poder chamar o branco de irmão”, disse Zé, segundo denúncia de Pop.

— Foi proposital, expressão do corporativismo (da Câmara). Fiquei completamente sozinho naquele momento, não recebi nem apoio do meu partido, na época o PSC — relatou Pop.

Procurado, Zé Maria não quis se pronunciar.

Seis anos depois, a Câmara de Curitiba continua sendo um espaço inóspito, relata Carol Dartora (PT), primeira vereadora negra eleita no legislativo da cidade:

— No dia em que o movimento negro veio à Câmara reivindicar um projeto de lei que tinha sido arquivado, vereadores acusaram a minha assessoria de estar invadindo gabinetes, entendendo que, por serem negros, só poderiam ser meus assessores — disse a parlamentar.

Em Rio Grande (RS), também não houve punição a Wilson Batista Duarte Silva, que, numa discussão sobre cotas em concursos em abril de 2014, declarou que “negros já estão quase brancos” e que se vê “negrinho com uma polaca”. Procurado, ele não quis se manifestar. Na época, Silva negou o teor racista da declaração e disse que “sempre” teve assessor negro.

O Globo