Ex-chanceler diz que nem Collor foi tão ruim quanto Bolsonaro

Todos os posts, Últimas notícias

Foto: Eduardo Matysiak/Futura Press/Folhapress

É com um pé em Portugal e outro no Brasil (e no mundo!), de olho nos patrícios e nos locais, que irei tocar esta newsletter. Ela não terá só reportagens ou crônicas. Será mais que um relato frio e menos que um tratado de geopolítica. Vai tratar dos temas sérios, dos irrelevantes, dos espantosos, dos frívolos e dos essenciais. Não nessa ordem, não na mesma extensão, mas com igual galhardia, graça e gana de aprender. Boa leitura.

A imagem medonha de Jesus empurrando o presidente brasileiro, o tronco metade homem, metade pedra, a bandeira verde-amarela parecendo um chiclete mastigado e a profética frase “Vá e impeça a guerra, Jair” — mais uma sandice de mau gosto para os alfarrábios dos annus horribilis —. viralizou nas redes antes da viagem do presidente à Rússia. Como esse, outros memes e GIFs engrupiram a audiência vendendo a mentira de que Bolsonaro teria tido alguma relevância na crise com a Ucrânia.

Em 2015, o governo Lula apregoou ter tido uma participação importante no acordo nuclear firmado entre o Irã, os Estados Unidos e outras cinco potências. No livro Passeport Diplomatique (Grasset, 2019), Gérard Araud, ex-embaixador da França nos EUA e negociador francês nas tratativas com o Irã, discorreu sobre a participação brasileira no caso. Para ele, o Brasil e a Turquia “caíram em uma armadilha” e tiveram “relevância zero” no processo.

Em um artigo recente, o ex-embaixador brasileiro em Londres e Washington, Rubens Barbosa, refutou a versão petista, corroborando o diplomata francês: “O governo americano apenas instou o Brasil e a Turquia a convencerem Teerã a transferir o urânio de baixo teor para fora do país”, escreveu.

O ex-chanceler Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores do governo Lula e ex-ministro da Defesa do governo Dilma, que esteve à frente do processo, comentou o caso e a viagem de Bolsonaro à Rússia. Para ele, “é estranho” em um ano eleitoral haver tantos militares na comitiva para uma viagem ao país acusado de promover uma guerra suja digital em campanhas como a de Donald Trump, nos EUA, e a da aprovação do Brexit, no Reino Unido.

Daniela Pinheiro: Há quem diga que o governo Lula também viajou na maionese quando se colocou como peça-chave no acordo nuclear entre os EUA e o Irã. O que acha?
Celso Amorim: Pelamordedeus, aquilo foi totalmente diferente. Nós entramos nisso com um objetivo. Nunca fingimos que fizemos uma coisa que não fizemos. Nunca escondemos que estávamos numa negociação com a Turquia, a pedido do então presidente dos EUA, Barack Obama. Num encontro na Itália, ele disse ao Lula: “Preciso de amigos que falem com quem eu não consigo falar”, referindo-se ao programa nuclear iraniano. A proposta Brasil-Turquia foi base para o acordo final com os Estados Unidos. Claro que não ficou idêntica, mas abrimos a porta para a negociação. Não foi o acontecimento do século, mas também não foi insignificante. Não há comparação possível com essa viagem inútil do Bolsonaro.

O que essa viagem quer dizer?
Essa viagem é zero porque Bolsonaro é zero, mas o Brasil não é. Bolsonaro foi à Rússia para tratar de fertilizantes, num momento em que o país está sob ameaça de declarar uma guerra. Precisava ir? Não. Faz mal ir? Não. Na verdade, Bolsonaro foi a essa viagem porque foi a viagem a que o convidaram. Ninguém o convida para nada. A minha preocupação de verdade é o que vem daí num ano eleitoral.

Como assim?
O que está fazendo na comitiva o chefe do gabinete institucional [general Augusto Heleno]? Por que tantos militares? Qual é o acordo militar que está sendo negociado para justificar tantos militares na viagem? Quando eu era ministro, nosso chefe militar rarissimamente viajava com o presidente. Ali, tem toda essa questão de espalhar fake news, Telegram, como isso foi usado de maneira suja em eleições mundo afora. Não estou dizendo que a Rússia vai fazer isso, friso isso, mas é estranho.

Para se fazer ou combinar coisa errada, não é preciso estar presente, não é?
Talvez a viagem propicie uma situação, fazer contatos, não sei. Bom, enfim, não sei. Seria uma viagem normal numa outra circunstância; como existe a crise, a viagem surpreende. Ela também revela uma faceta de Bolsonaro. Achava-se que ele era subserviente aos Estados Unidos, mas ele é sobretudo subserviente à extrema-direita norte-americana. Mas, outras coisas também me preocupam.

Como o quê?
Fico preocupado quando vejo esse general Braga Netto, ministro da Defesa, ficar falando que a viagem não vai atrapalhar a relação com a Otan. De fato, o Brasil não tinha que ter relação alguma com a Otan. É ela quem está criando essa confusão de expansão, que é o cerne da crise da Ucrânia com a Rússia.

Isso fazia sentido na Guerra Fria?
Sim, o mundo não pode mais ser dividido em Leste e Oeste. Não faz mais sentido. Eu, de fato, espero que essa viagem atrapalhe a relação do Brasil com a Otan. O que de mais importante ocorreu no mundo nos últimos tempos foi a declaração conjunta do Putin com Xi Jinping. Isso é a nova receita da nova ordem mundial. O Brasil tem que se posicionar conforme seu interesse, de maneira autônoma, juntando América do Sul e Latina e tendo uma relação pragmática tanto com os Estados Unidos como com a China e a Rússia.

Mudando de assunto, como está seu ânimo para os próximos meses de campanha eleitoral? Uma pesquisa do Datafolha de dezembro mostra que 51% dos entrevistados são contra casais LGBTs em publicidade e 44% da população avalia que o Brasil pode virar comunista após a eleição. O conservadorismo parece solidificado.
O bolsonarismo não aconteceu por acaso. Infelizmente, há um sentimento espalhado na população: racismo, ódio ao outro, não gostar de pobre. Mas muitas pessoas estão caindo na real. Outro dia, fui abordado na praia [de Copacabana] por uma senhora que votou no Bolsonaro e disse que estava “amargamente arrependida”. As coisas estão mudando. Acho que o Lula está fazendo o movimento certo ao se aproximar do centro.

Lula-Alckmin é realmente uma ideia totalmente fora da caixa.
É incrível em qualquer país. Imagine: o seu vice foi o seu opositor na última eleição presidencial. É muito raro. É um sinal de busca de conciliação e pacificação muito importante. As pessoas querem isso. O Alckmin ajuda a criar um clima. Um vice-presidente de um governo que não vai radicalizar?

…que não vai conspirar contra você.
Sim. Faltam oito meses, mas estou esperançoso que o Brasil volte à normalidade. Eu tenho participado de lives e conversado muito com muita gente, como o Aloysio Nunes Ferreira, que foi chanceler do governo Temer. Ele era um dos maiores críticos da nossa política externa e eu fui da deles. Mas estamos no campo da racionalidade, do respeito.

Isso seria o normal, mas parece um retrocesso.
O que aconteceu no Brasil não pode ser chamado de retrocesso. Retrocesso é quando você volta para algum lugar. Não foi o caso. O que houve aqui não teve paralelo. O governo Sarney foi infinitamente mais progressista e melhor do que o governo Bolsonaro. Nem o governo Collor praticou as loucuras desse governo.

Tab Uol