Veja como estão hoje ideólogos de junho de 2013

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Foto: JF Diorio/Estadão Conteúdo

“Onde você estava em junho de 2013?”, pergunta Rafael Siqueira, ex-integrante do Movimento Passe Livre (MPL) que deu início a uma onda de protestos que tomaram conta do país. Quem protagonizou um fato histórico não esquece: o então integrante do movimento estava nos atos de São Paulo contra o aumento da tarifa anunciada meses antes pelo governo.

Há dez anos, analistas e pesquisadores estudam os desdobramentos das chamadas “jornadas de junho” e usam expressões como “uma ruptura na história do Brasil”, “o despertar do gigante”, “um mês incompreendido”. Nesse meio-tempo, os então integrantes do MPL contam que seguiram suas vidas. Rafael, de 48 anos, Lucas Macedo, de 39, e Mayara Vivian, de 33, são alguns deles.

Rafael, que atualmente é professor de música, se lembra de bombas, balas, cassetete. De que a origem dos protestos começou bem antes, na passagem de 2010 para 2011, quando Gilberto Kassab, então prefeito de São Paulo, anunciou que em janeiro aumentaria a tarifa de ônibus de R$ 2,70 para R$ 3.

Na época, vários estudantes secundaristas se juntaram. As manifestações daquele ano, embora pequenas, criaram vínculos fortes entre os participantes, lembram entrevistados. Integrantes do coletivo se organizaram. Passaram a compreender como realizar atos maiores. Em novembro de 2012, já sabiam do corte de verba para o transporte público de 2013. As ações que aconteceriam em junho foram planejadas estrategicamente. Cada manifestação, cada trajeto, o sentido de cada local por onde passaram foram pensados.

Lucas Macedo, que na época ficou conhecido como “Legume” e hoje é professor de história, conta que se lembra de pessoas presas ilegalmente e da perplexidade do Estado diante do protesto que atraiu multidões.

Mayara Vivian, que atua como geógrafa, se recorda bem da noite de 6 de junho. E da foto na capa de um jornal no dia seguinte após o primeiro ato. Na imagem, catracas de papelão pegam fogo na Avenida 23 de Maio, na altura do Vale do Anhangabaú, em São Paulo.

Quem via de fora, se perguntava: de onde saíram aquelas pessoas? Eram pessoas envolvidas com a causa da mobilidade urbana, muitas integrantes do MPL, movimento social que existe desde 2005. Elas protestavam contra o aumento da tarifa do transporte e ainda defendem políticas públicas de passe livre ou tarifa zero – quando se prevê o uso de transporte coletivo sem cobrança direta do cidadão.

As jornadas foram uma série de protestos que chegaram ao auge no Brasil em junho de 2013. Começaram em São Paulo contra o reajuste da tarifa do ônibus, que à época, aumentaria 20 centavos. Rapidamente os protestos se espalharam por outras cidades do país, dando vazão a uma ampla insatisfação popular com outras demandas, como a revolta pela realização da Copa do Mundo em 2014, as denúncias de corrupção na política e o governo de Dilma Rousseff (PT). Depois dos atos de junho de 2013, que expuseram um descontentamento generalizado com a classe política, vieram a Operação Lava Jato, o impeachment de Dilma, a popularização de Bolsonaro e o fortalecimento da extrema-direita no país. É por isso que muitos pesquisadores defendem que junho é um “mês que não acabou”.

A primeira ação do MPL em 2013 foi no Jardim Ângela, na Zona Sul. Era só o começo. A manifestação do dia 6 de junho não foi uma organização rápida e tinha uma pauta clara. Mas a medida que atraía multidões – muitas sequer sabiam o motivo de estar lá – foi adquirindo uma pauta diversa com o passar do tempo e que muitos estudiosos leem como um reflexo da insatisfação com a classe política.

Rafael, Lucas e Mayara não estão mais no MPL. Outros antigos integrantes do movimento entrevistados pelo g1 preferiram não se identificar. Um deles avalia que o PT, Fernando Haddad (então prefeito de São Paulo) e Dilma Rousseff (então presidente) perderam uma oportunidade histórica de avançar numa pauta importante com movimentos sociais. Outro é firme ao dizer que o MPL acertou em tudo, “quem errou foi o governo”.

Alguns concordam que a direita quis se apropriar do formato dos atos, mas afastam qualquer implicação dos protestos iniciados pelo MPL com o crescimento do conservadorismo nos anos seguintes. “Não inventamos a direita. Ela sempre existiu”, diz Lucas. O modelo horizontalizado e apartidário não foi algo criado no Brasil. Foi também a marca de manifestações contemporâneas, como a Primavera Árabe, que eclodiu em 2011, e do movimento Occupy em Nova York e em Londres, no mesmo ano.

A força dos atos, que levavam multidões às ruas, fez com que a presidente Dilma chamasse quatro representantes do MPL para uma reunião.

“No dia 21 de junho anuncio que vou receber os líderes das manifestações pacíficas, os representantes das organizações de jovens, das entidades sindicais, dos movimentos de trabalhadores, das associações populares. Precisamos de suas contribuições, reflexões e experiências. De sua energia e criatividade, de sua aposta no futuro e de sua capacidade de questionar erros do passado e do presente.”
No dia 24, o MPL respondeu à presidente: “Ficamos surpresos com o convite para esta reunião. Imaginamos que também esteja surpresa com o que vem acontecendo no país nas últimas semanas. Esse gesto de diálogo que parte do governo federal destoa do tratamento aos movimentos sociais que tem marcado a política desta gestão. Parece que as revoltas que se espalham pelas cidades do Brasil desde o dia seis de junho tem quebrado velhas catracas e aberto novos caminhos”.

E seguia: “Nesse sentido gostaríamos de conhecer o posicionamento da presidenta sobre a tarifa zero no transporte público e sobre a PEC 90/11, que inclui o transporte no rol dos direitos sociais do artigo 6o da Constituição Federal. É por entender que o transporte deveria ser tratado como um direito social, amplo e irrestrito, que acreditamos ser necessário ir além de qualquer política limitada a um determinado segmento da sociedade, como os estudantes, no caso do passe livre estudantil”.

Com fome, Mayara aceitou um pão de queijo oferecido por Rousseff, lembra Rafael. Nos bastidores, falam que Dilma mais escutou do que falou naquele encontro.

Ninguém que esteve nas jornadas de junho continua no MPL. O movimento hoje é formado por gente nova. “Como não há aumento desde a pandemia, acreditamos que seja uma conquista da luta”, disse Milena Souza, representante do MPL desde 2015. Seu papel, afirma, é o de qualquer outra pessoa dentro do coletivo. Ela argumenta que estão acontecendo movimentações de prefeitos pedindo estudos sobre a viabilidade da tarifa zero.

“A organização continua sendo autônoma e apartidária. Nosso papel é lutar para que seja uma tarifa zero controlada pelo povo e paga pelos ricos”, disse, afastando especulações sobre o fim do movimento. Acrescenta que são contrários à privatização da CPTM e do Metrô.

Muitos dos membros que estavam em 2013 foram para outros movimentos. Nenhum deles saiu candidato a cargo político. “Ninguém aqui se candidatou nem para síndico do condomínio”, diz Mayara.

Todos os entrevistados ainda assumem uma postura apartidária, mas se reconhecem com pautas progressistas. Dez anos depois, a visão é a de que acertaram, que o movimento continua, mas a vida seguiu. Para os cinco entrevistados, é inegável que muitos movimentos populares também se fortaleceram a partir de junho de 2013.

A pauta secundarista de 2015, as ocupação de terras improdutivas e o fortalecimento do movimento indígena estão entre as “heranças” mencionadas pelos ex-integrantes. Nem todos militam como antes.

Desde setembro de 2015, com a alteração do artigo 6º da Constituição Federal, o transporte passou a ser considerado um direito social.

As conversas com Mayara, Rafael e Lucas aconteceram em momentos distintos e demonstram que existe uma relação entre o individual e o coletivo na construção de lembranças que, juntas, ajudam a contar a história do movimento que conquistou o passe livre estudantil em São Paulo para alunos da rede pública e se tornou um marco na história recente do país.

G1