Pesquisador da Unifesp explica junho de 2013

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Acácio Augusto, Professor no Departamento de Relações Internacionais da UNIFESP, onde coordena o LASInTec (Laboratório de Análise em Segurança Interacional de Tecnologias de Monitoramento), e no Programa de Pós-graduação em Psicologia Institucional da UFES. É pesquisador no Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária da PUC-SP). Contato acacio.augusto@unifesp.br

Junho de 2013 no Brasil foi um acontecimento intempestivo.

Interpretações e disputas

Convencionou-se dizer, desde um ponto de vista sociológico, que as manifestações de rua naqueles dias e a sequência de atos que explodiram em todo país não foram como um raio em céu azul. Comumente busca-se expor uma compreensão verificável de que aquelas manifestações não surgiram sem prévia mobilização e que tiveram, de certa forma, um cenário político-social favorável, embora a dimensão dos atos tenha sido imprevisível e seus efeitos inesperados. Esta chave de análise interessa a identificação dos chamados “atores políticos e sociais” para derivar seus efeitos institucionais e os desdobramentos de suas ações para a política de representação.

Assim, chega-se à dois blocos explicativos, aqui sintetizados de forma geral e sem referência à extensa produção acadêmica e jornalístico-opinativa sobre junho de 2013: de um lado, há análises que verificam naquelas mobilizações uma grande novidade política que enterra ou coloca em xeque os processos mal resolvidos da chamada Nova República brasileira e abre caminho para novas formas de mobilização, produzindo uma certa renovação da política institucional em termos de “pautas políticas” e de “atores sociais”; de outro lado, mas seguindo a mesma chave compreensiva, há os que verão em junho de 2013 o início de uma instabilidade institucional e uma crise político-democrática que se arrasta até hoje, com efeitos que vão do impeachment presidencial, em 2016, à atual hiperrepresentação institucional da extrema direita brasileira.

São opostos que se encontram e se irmanam na busca por inscrever as revoltas de junho de 2013 na política institucional e no seu jogo de representação. Não é raro encontrar essas análises articuladas de forma combinada para sublinhar a necessidade de tradução institucional para os sintomas de esgotamento do sistema de representação que foram revelados pelas mobilizações de rua a partir de junho de 2013. Desde lá nunca leu tanto sobre crise da democracia ou ameaças a sua continuidade institucional.

Uma outra chave de análise compreensiva sobre junho de 2013 consiste em localizá-lo no cenário planetário mais amplo e inscrevê-lo numa onda de rebeliões de rua, a partir de lutas específicas, que pipocaram em todo planeta no começo do século XXI. Esta mirada, concentra-se no conjunto de protestos que se intensificaram após a crise dos subprimes, em 2008, contra as políticas de austeridade que foram a resposta dos governos, especialmente no hemisfério Norte, para salvar os bancos da bancarrota do sistema financeiro global. Nesta chave, junho de 2013 no Brasil deve ser compreendido no interior de outras mobilizações e revoltas de rua como a Primavera Árabe, em 2010 e 2011, os Indignados, na Espanha, e o Occupy Wall Street, nos EUA, em 2011, ou mesmo as mobilizações estudantis no Chile intensificadas em 2011 e 2012 e os protestos de rua na Turquia, em 2013.

Neste chamado ciclo de protestos de rua como resposta a políticas de austeridade pós-crise de 2008, nem sempre é lembrado o Dezembro Negro na Grécia, que teve marca fortemente anarquista com enfrentamentos de rua gigantescos na praça Sintagma, em Atenas. Se há um ciclo planetário de revoltas de rua, ele se inicia com a recusa antipolítica dos anarquistas gregos que produziu efeito por anos, ampliando ocupações no bairro de Exárchia e marcado por ações de depredação de prédios do governo e das polícias, além de bancos e grandes lojas, que questionavam o domínio da Troika (a coalizão entre Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) sobre o povo grego e as ações da OTAN em território grego contra a passagem de refugiados[1].

As interpretações e análises que inscrevem junho de 2013 na política mundial, e como parte de um ciclo de protestos planetários, podem levar a duas conclusões opostas: de um lado, há os que veem nesse ciclo de protestos globais sinais de esgotamento da versão neoliberal do capitalismo iniciada nos anos 1970 que havia entrado em declínio a partir de então. A resultante desse movimento, caso os protestos se avolumassem, poderia ser um questionamento do capitalismo como um todo, mas se mostrou como sinal da abertura de uma fase de renovação autoritária do neoliberalismo, como se busca demonstrar ao sublinhar que esses protestos foram seguidos pela ascensão de lideranças políticas e partidos de extrema-direita, ao Norte e ao Sul do globo. Há, de outro lado, os que inscrevem a onda planetária de protestos em uma trama, um pouco conspiratória, de reação aos governos que buscam uma ordem mundial multipolar. Esta trama seria orquestrada pela política internacional estadunidense por meio de intervenções indiretas e ações no campo computo-informacional para fomento de instabilidade política nos governos que ameaçariam o poder dos Estados Unidos. Essa chave interpretativa se escora no conceito de guerra híbrida ou em arranjos internacionais correlatos.

História das lutas e o singular bloco negro

Este breve escrito sobre os 10 anos de junho de 2013 não se interessa por essas disputas e/ou polêmicas, sintetizadas acima a partir de uma vasta literatura acadêmica, jornalística e opinativa sobre aqueles eventos, seu entorno no Brasil e suas conexões com a política internacional. Em geral, análises totalizantes e/ou compreensivas tendem a desprezar a singularidade de um acontecimento. Junho de 2013 no Brasil foi um acontecimento intempestivo, as disputas em seu entorno sublinham essa característica e são uma tentativa de conter sua potência. São análises que buscam inscrevê-lo na trama da disputa política ordinária e democrática, entre crises, reformas e ciclo acomodados em teorias em torno da representação política.

Sugiro aqui uma outra mirada histórica e analítica que considere que “a história não se encontra a serviço do conhecimento puro, mas sim da vida” (Nietzsche, 2003: 15). A história não é simplesmente decifradora das forças em luta, mas, também, uma modificadora dessas forças e das pessoas, assim como das lutas que são travadas e movem forças e pessoas. Quando analisados desta perspectiva da história das lutas, estes 10 anos apontam para questões menores do acontecimento que estão dentro e contra a história. Essa potência singular, o momento de diferença e de corte que se produziu na história política é o que interessa aqui. Como recomenda Michel Foucault (2006: 335-351), buscar uma história do presente para retomar o que se passou naquele junho fora da cronologia dos fatos ou de movimentos de causalidade que fazem com que hoje se olhe para o que aconteceu como derivado de uma constante histórica, de algo que, de certa forma, já estava dado, mas ainda não era possível ver ou prever.

Se tomarmos especificamente os treze dias de revolta nas ruas que se iniciam em São Paulo naquele junho, mas se espalham por todo país de forma diversa, veremos que a grande diferença que emerge está entre os poucos manifestantes que fizeram uso da tática black bloc. Esse corte singular, negro, feito por uma militância anônima e disposta ao enfretamento físico das forças da ordem rompeu pactos políticos, tácitos ou explícitos, provocando irritação nos governos que, em seu arco de variabilidade amplo, apressou-se em isolar o que deveria ser expurgado da cena: a pequena minoria de vândalos. Com esta expressão busca-se eliminar a ponta solta e refratária que surgiu nas ruas naquele junho, uma dimensão insuportável, seja para a leituras mais progressistas e simpáticas às manifestações, seja para as leituras mais conservadoras, que em um primeiro momento viram as manifestações como uma ameaça à ordem e algo a ser varrido imediatamente pelas forças policiais que deveriam retomar o controle das ruas. Em poucas palavras, ao isolar física e discursivamente a pequena minoria de vândalos, buscou-se neutralizar a dimensão antipolítica de junho de 2013, sua expressão propriamente anarquista.

Não à toa, seja à esquerda, em seu amplo arco de variações, seja à direita, em suas expressões mais tradicionais ou na atual alt-right, falou-se em nova política como a resposta à antipolítica das ruas[2], não só a partir do junho brasileiro, mas em relação à toda sequência de protestos globais descritos acima. E aqui, mais uma vez, a designação pequena minoria de vândalos serve a uma dupla desqualificação e a uma associação negativa à antipolítica: trata-se de uma minoria, portanto pouco representativa e sem pretensões de hegemonia, e de um grupo de vândalos, palavra tomada em sua acepção popular que designa pessoas dadas a atos de depredação e enfrentamento violento.

Desta forma está disposto o campo para dizer que os vândalos eram formados por uma minoria de anarquistas que queriam impor sua visão de mundo ao conjunto majoritário de manifestantes pacíficos. E, assim, criou-se uma espécie de consenso negativo em torno de um outro que é vândalo, anarquista e antipolítico. Fórmula que se tornou eficaz para isolar e criminalizar qualquer expressão radical de contestação do sistema político e contraste perfeito para se defender a ação racional e pacificadora das instituições democráticas. Em resumo: a violência era uma prerrogativa exclusiva das forças policiais, que a exercem de forma legítima. Não é uma coincidência que nesse ciclo planetário de revoltas de rua, a resposta de governos e organizações internacionais e da sociedade civil será a ampliação de securitizações democráticas e a criação de novas formas de representação e participação política (Augusto e Rodrigues, 2016).

reações de uma democracia securitária

Para localizar a operacionalização dessa intervenção político-discursiva, basta retomar as reações aos primeiros dias da revolta nas ruas. Imediatamente após ao espetáculo midiático criado em torno dos enfretamentos de rua, os governos e suas polícias, os jornalistas e seus ventríloquos universitários, os partidos de esquerda e de direita e seus representantes, as organizações de direitos humanos e seus ativistas, se apressaram em isolar a chamada pequena minoria de vândalos do grupo de manifestantes pacíficos formado por cidadãos de bem que buscavam melhoria das condições de vida da população. Ao operar esse corte, o que se convencionou chamar de opinião pública entregou os manifestantes, independentemente de estarem ou não em ações de enfretamento, para a violência das tropas de choque das PMs e/ou aos bancos das delegacias e tribunais[3]. E isso está documentado, basta buscar as capas de revistas semanais com matérias sobre supostos centros de treinamento black blocs e o esforço em pinçar alguém do meio da multidão de manifestantes para apontar essa pessoa como liderança do que era comparado a uma espécie de organização terrorista ou grupo de guerrilheiros[4]. Isso atingiu pessoas que sequer estavam participando das manifestações, como o emblemático caso de Rafael Braga, condenado à pena máxima prevista no artigo 16, inciso III da Lei 10.826/03, o Estatuto de Desarmamento[5].

As perseguições, detenções, prisões e condenações seguiram nos meses e anos seguintes aos atos de junho de 2013, como a detenção de dezenas de manifestantes em ato a favor dos professores no dia 15 de outubro de 2013[6], em São Paulo, e a invasão policial à casa de 23 militantes dos atos contra a Copa do Mundo FIFA, em 2014, na véspera da final no estádio do Maracanã, para detê-los de forma preventiva sob a alegação de que eram perigosos e representavam risco para a realização do evento e à integridade física de cidadãos nacionais e estrangeiros que apenas queriam assistir ao jogo final da Copa do Mundo FIFA naquele ano. Esse caso se arrasta até hoje, com uma condenação em primeira instância. Ele pode ser conhecido pelo relato, seguido de análises feitas de uma perspectiva anarquista sobre junho de 2013, no livro da professora de filosofia da UERJ Camila Jourdan (2018), que foi uma das detidas e condenadas pelo caso conduzido pelo juiz Flávio Itabaiana, da 27º Tribunal Penal do Rio de Janeiro. Naquele momento não se falou em ameaça à democracia, pois a hiperativação do judiciário e o acionamento dos dispositivos de segurança são a forma de atuação das democracias securitárias[7].

Além das contestações sobre a legalidade dos procedimentos de condução do caso, interpostas por organizações como a Anistia Internacional e a Ordem dos Advogados do Brasil, o caso que ficou conhecido como os 23 da Copa, mostra: 1) a brutalidade e, no mínimo, a desproporcionalidade da violência institucional contra pessoas que sequer se poderia dizer que participaram de atos qualificados como violentos[8], mesmo porque as detenções tiveram caráter preventivo; 2) o esforço em associar a anarquia e os anarquismos ao caos, à violência e ao vandalismo, como consta nos autos do processo; 3) o medo que as instituições e as forças da ordem têm de uma manifestação popular não controlada por mediações políticas feitas por partidos, sindicatos e organizações da sociedade civil. O medo da ordem estava projetado no que se identificou como uma pequena minoria de vândalos.

A história de uma mobilização institucional securitária gigantesca e de uma hiperativação judiciária contra os que foram às ruas a partir de junho de 2013 precisa ser lembrada se quisermos compreender as formas da democracia brasileira após esse acontecimento. Isso vai desde a ativação, em agosto de 2013, da hoje revista Lei 7.170/83, chamada de Lei de Segurança Nacional, contra manifestantes em São Paulo, até a criação, em 2016, da Lei 13.260, de 16 de março de 2016, a Lei Antiterrorismo brasileira. Na verdade, as manifestações de junho de 2013 e sua sequência foram alvo de um imenso aparato securitário que já estava sendo democraticamente montado para garantir a realização dos megaeventos, especialmente a Copa do Mundo FIFA de 2014 e as Olimpíadas Rio 2016. A descrição inicial de Natalia Viana, nessa matéria da Agência Pública, em 11 de junho de 2014, mostra de forma inequívoca o que estava em jogo e como as forças segurança estavam se preparando e agindo no pós-junho de 2013:

Um mês antes do jogo de abertura entre Brasil e Croácia no Itaquerão, a Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro anunciou com alarde que agentes do FBI estavam treinando a tropa de choque para conter protestos durante a Copa do Mundo. O gran finale do curso de ‘Controle de Distúrbios Civis’, ministrado para 27 policiais do choque e 13 policiais da CORE (unidade especial da polícia civil), guardas municipais e bombeiros foi uma demonstração à imprensa: um soldado representando um manifestante xingava uma pequena guarnição munida de escudos do choque, atirava a camiseta e o tênis sobre os homens, momento em que eles avançavam, cercavam e imobilizavam o ‘manifestante’. A simulação terminou com uma bomba de gás atirada no chão[9].

Preparação e alvos estavam muito evidentes. As condições de possibilidade para a mobilização desse aparato securitário de contenção de manifestações de rua em um regime democrático, com uma série de acordos internacionais de cooperação técnica, foram criadas pelo corte, traçado em junho de 2013, entre a pequena minoria de vândalos e os manifestantes pacíficos.

Ao acompanhar como se traçou esse corte, vemos que a singularidade do acontecimento junho de 2013 está na ação dos que se dispuseram a lançar mão da tática black bloc como meio de abrir espaços nas ruas, expressar a radical recusa ao sistema de representação e participação democrática, expor a violência do aparato securitário e alertar os desviados sobre o que se passava em meio ao clima de euforia pós-crise de 2008 que projetava o Brasil como um “player internacional”, situação sintetizada na famosa capa da revista Time, em novembro de 2009, com a imagem do Cristo Redentor da cidade do Rio de Janeiro decolando como um foguete. Era preciso produzir um corte para se livrar do que não cabia nesse foguete. Para além dessa operação político-discursiva de separação em fluxos monitorados, característica de democracias securitárias, o uso da tática black bloc nas manifestações expõe a potência da ação direta[10] em tornar visível a máquina securitária que estava se montando no Brasil para que ele pudesse ser visto internacionalmente como um “global player”[11].

A singularidade, portanto, do acontecimento junho de 2013 está em seu caráter antipolítico e no uso da ação direta por uma minoria de anarquistas, ainda que essas ações sigam, mesmo após 10 anos, sendo alvo de deturpações deliberadas ou incompreensão. No entanto, como há cem anos observou Voltairine de Cleyre sobre a ação direta nos EUA, “quer essa incompreensão tenha se dado pela ignorância ou pela desonestidade dos jornalistas, ela teve o efeito de incitar, em muitas pessoas, a curiosidade de saber tudo sobre a ação direta” (De Cleyre, 2023: 72).

Hoje, há muitos que lamentam que a direita tomou as ruas, a partir de 2015, e culpam as revoltas de junho de 2013 por isso. Mais recentemente, diante dos eventos internacionais que apontavam para ocupação de governos pela alt-right e de um governo democrático militarizado no Brasil, a partir de 2018, essas mesmas pessoas que condenam o acontecimento junho de 2013 repetem como autômatos que a democracia está em crise e ameaçada pelo fascismo. Mas como aponta Marestoni em sua pesquisa sobre junho de 2013 no Brasil, é o clamor por segurança que entope as prisões com mais de 900 mil presos, obviamente todos presos políticos, incluindo Rafael Braga (…). É o clamor por segurança que abre alas para as ocupações militares nas favelas cariocas. É o clamor por segurança que alimenta as milícias, como a que executou Marielle Franco em 14 de março de 2018. É o clamor por segurança que matou o jovem de 14 anos, executado na Favela da Maré, no Rio de Janeiro, durante uma operação da Polícia Civil, do Exército e da Força Nacional, enquanto ele voltava da escola. É o clamor por segurança que aplaude a tortura e execução a tiros e marteladas de um jovem morador da Favela do Moinho pela tropa de elite da polícia paulista. O sangue jorra e escorre sem parar (Marestoni, 2023: 138).

E essa sangria não começou em 2013, mas os blocos negros que se formaram naquele junho chamaram a atenção para a produção desse rio de sangue. Basta lembrar que foi em julho de 2013 que veio à tona o Caso Amarildo, que expôs o até então acalmado projeto de Segurança Pública carioca pelas Unidades de Polícia Pacificadora.

Anarquia e antipolítica

Tomar junho de 2013 como acontecimento é sublinhar a singularidade da ação direta pelos blocos negros que afirmaram a anarquia e problematizaram os autonomismos derivados do movimento antiglobalização do final os anos 1990 no Brasil e no mundo. Isso levou a uma recusa do consenso democrático que havia se formado em um país ainda extremamente violento e desigual. Implica abandonar o confortável lugar da neutralidade, que sempre está ao lado da ordem, para atacar as polícias e seus auxiliares oficiais e extraoficiais para expor criminalizações e afirmar a liberdade da luta que acontece de forma permanente e encontra momentos de incandescência em acontecimentos como junho de 2013.

Essa singularidade de junho se expressa em poucos trabalhos de pesquisa, como no livro de Marestoni, citado acima. Trata-se de uma pesquisa de mestrado, que partindo da análise genealógica, mobiliza de forma não hierárquica teses e panfletos, músicas e conversas, observações e análises, não para disputar com as inúmeras teses e interpretações sobre junho de 2013, a verdade sobre evento ou a reconstituição verdadeira dos fatos e seus efeitos posteriores. Trata-se de um esforço que situa a tática do bloco negro em 2013, deslocando a generalização jornalística black bloc, para mostrar o efeito demolidor da anarquia nas formas da governança democrática e seus monitoramentos e securitizações.

Leituras como essa, a qual esse texto se alinha, provocam reações (a política e a ordem são sempre literalmente reacionárias) que reconfiguram as figuras da ordem: os ativismos, a atuação das polícias em manifestações, a ação política em redes sociais digitais, as formas de representação partidária, a atuação dos movimentos sociais voltados para reivindicação de políticas públicas. Todos esses efeitos não apareceriam se naquele junho não houvesse a resistência pela ação direta dos que foram chamados de pequena minoria de vândalos.

Isto reforça o posicionamento anarquista pela ação direta como ato de revolução permanente que enuncia verdades escandalosas e incômodas aos democratas de todas as cores. Estes temem a anarquia assim como o cidadão de bem teme um menino e uma menina de rua. Se esse medo fizesse tal cidadão de bem simplesmente atravessar a rua, tudo certo, mas esse pacato cidadão chama a polícia, ou pior, puxa uma arma e se faz polícia, dando forma ao seu desejo de aniquilação e extermínio do que lhe é insopitável. E é aí que o bicho pega. Nesses 10 anos de junho de 2013 ouve-se e lê-se sobre vários junhos. Neste texto optou-se por um junho impertinente, um junho negro e anarquista, como os blocos que resistiram à tropas de choque da polícia.

E anarquia é fogo! Por vezes em labaredas incandescentes, por vezes em brasa. Ela também vive na mira dos que desejam nos ver em cinzas. Sempre há os que se apressam em decretar que o fogo apagou, seja na existência de uma pessoa, ao caracterizar a anarquia como um arroubo de juventude; seja no planeta, ao definir a anarquia como uma doutrina política infantil e irresponsável. E sempre se ouvirá, por isso, essas afirmações saídas das bocas de socialistas e liberais, esses irmãos briguentos que disputam a centralidade do Estado, o imperativo da conduta democrática e a fala de autoridade legítima, calcada na interpretação científica da história ou no bom e racional funcionamento das instituições. Cada um com suas seguranças, seus sistemas de justiça criminal, suas polícias, seus modos de produção, suas formas de propriedade, seus sistemas de representação. Em resumo, cada um com sua política, esta entendida como uma tecnologia moderna específica de condução dos assujeitados e das coletividades.

Por isso, a anarquia é antipolítica, ela escapa e se expressa pela ação direta que nunca deve ser confundida com caos, violência ou mero vandalismo. As forças da ordem, sejam quais forem, sempre buscam aniquilar ou assimilar as experimentações anarquistas, mas quando chegam, ela não está mais lá. E a cada decreto de morte da anarquia pela fala de autoridade legítima, ela se insurge e assusta os adoradores do Estado que disputam as melhores formas de conduzir os obedientes. A anarquia emerge não como a mitológica Fênix, mas pela elevação da labareda na brasa que nunca deixou de arder. Esse é junho que habitou o bloco negro em 2013.

Anarquia é o fogo negro que ilumina e discerne.

Estadão