Nova loucura de Damares, regulamentação da educação em casa foi escrita por associação de ensino domiciliar

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Nova bandeira do governo Bolsonaro, anunciada como prioridade dos cem dias de gestão, a permissão para pais substituírem a escola regular pelo ensino em casa dos filhos foi adotada pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos por influência da Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned). O diretor jurídico da entidade, Alexandre Magno Fernandes Moreira, é secretário-adjunto da Secretaria Nacional de Proteção Global do ministério desde o último dia 14.

Moreira disse ao GLOBO que o texto da Medida Provisória que o governo pretende enviar ao Congresso foi, de fato, elaborado pela Aned, mas que ainda sofrerá modificações na Secretaria de Família do próprio ministério e na Casa Civil. A redação inicial da MP, segundo ele, é enxuta e traz como premissa principal o direito expresso de as famílias optarem pelo ensino domiciliar “a qualquer tempo” durante toda a educação básica. Isso significa que pais poderiam ensinar em casa crianças do ensino infantil até o médio.

O texto sugerido da MP quer garantir que o ensino domiciliar poderá ser adotado até mesmo com crianças e adolescentes que hoje frequentam a escola regular, caso a família assim decida. O caminho inverso também ficará permitido. Ou seja, famílias que educam os filhos por conta própria permanecem com a liberdade de, se desejarem, transferi-los para a educação formal.

A redação em discussão deixa claro também a “igualdade de direitos” entre famílias que adotam o regime domiciliar e o regime escolar. O dispositivo é uma espécie de salvaguarda para que os praticantes da educação em casa possam se beneficiar de abatimento no Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF) decorrente de despesas escolares, como ocorre com as famílias que mantêm seus filhos em escolas particulares.

Outro objetivo da menção expressa em relação à igualdade de direitos é permitir que as famílias que educam os filhos em casa não percam o benefício do Bolsa Família ou tenham problemas para começar a receber a transferência de renda. Hoje, é preciso provar que as crianças e jovens estão matriculados e frequentando a escola para ter direito ao valor repassado pelo programa federal. Embora a redação da MP não cite literalmente o Bolsa Família ou o Imposto de Renda, a ideia de reforçar que os direitos são iguais tem esse objetivo principal.

Também consta do texto da MP em estudo a previsão de um registro público das famílias que adotam a educação domiciliar. Isso facilitaria a fiscalização dos alunos nessa modalidade de ensino. No entanto, a redação sugerida não detalha qual órgão ficaria responsável por esse cadastro nem que tipo de acompanhamento essas crianças teriam por parte do poder público.

— A ideia é fazer um texto bastante enxuto, deixando espaço para que questões específicas possam ser regulamentadas posteriormente — disse Alexandre Magno Fernandes Moreira, diretor jurídico da Aned e secretário-adjunto da Secretaria de Proteção Global do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.

Mec foi acionado primeiro

A primeira investida da Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned) foi com o ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, ainda no ano passado. Em dezembro, início da transição do governo, os integrantes da entidade, que reúne famílias que praticam o homeschooling, procuraram Vélez, que se mostrou simpático à ideia e disse que encaminharia o tema no MEC.

Após a posse nos cargos, já em janeiro, a Aned voltou a procurar Vélez, mas também se aproximou da equipe de Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos. A ideia passou a ser emplacar a pauta mais como um direito de liberdade das famílias e menos uma questão de política educacional.

O argumento é de que há urgência na aprovação da medida porque recentemente o Supremo Tribunal Federal (STF) “jogou as famílias na ilegalidade” ao decidir que só pode ser feita educação domiciliar no Brasil quando houver regulamentação. Com esse apelo, o governo pretende angariar apoio da bancada conservadora no Congresso, simpática à ideia. Defensores do movimento Escola sem Partido se alinham ao homeschooling como uma forma de driblar a suposta doutrinação em sala de aula.

Entre argumentos como oferecer uma educação de maior qualidade aos filhos e evitar episódios de bullying e violência, os adeptos da educação domiciliar também apontam a necessidade de preservar “princípios morais da família” e evitar “ensinamentos sobre valores contrários àqueles ensinados no seio da família”, conforme descreve o próprio site da Aned.

Esse ponto é justamente o que desperta preocupação entre educadores. A ascensão do fundamentalismo religioso combinada com a educação domiciliar, na opinião de especialistas, pode colocar em risco um desenvolvimento crítico das crianças e jovens e inviabilizar uma educação integral.

— O avanço dos fundamentalismos religiosos e morais pode formar crianças e adolescentes pouco críticos, há também casos sensíveis quando se pensa que o trabalho infantil é realizado em sua maior taxa em espaços domésticos. Como se garante que a criança está estudando? A escola acaba sendo, em um país em desenvolvimento como o nosso, um espaço também de proteção social — afirma Andressa Pellanda, coordenadora de políticas educacionais da Campanha Nacional pelo Direito à Educaçã, organização que liderou as discussões sobre o Plano Nacional de Educação.

A educadora defende que, segundo a Constituição, a formação educacional não deve estar restrita à família:

— É dever compartilhado do Estado e da família, mediada pela sociedade. Com a proposta de educação domiciliar, há riscos quanto a essa questão. O direito à educação integral, que visa o desenvolvimento pleno da pessoa, preparo para a cidadania e qualificação para o trabalho, foi pensado constitucionalmente de forma a dar às cidadãs e cidadãos brasileiros a oportunidade de uma educação que seja crítica e emancipatória.

No portal da Aned, há a informação de que, segundo os dados mais atualizados, cerca de 5 mil famílias praticam a educação domiciliar no país. O governo trabalha com um número bem mais inflado, de 31 mil famílias, segundo divulgado no plano de propostas prioritárias para os cem dias de gestão: “Regulamentar o direito à educação domiciliar, reconhecido pelo STF, por meio de Medida Provisória, beneficiando 31 mil famílias que se utilizam desse modo de aprendizagem”.

‘Argumento furado’

Pesquisadora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e doutora em Psicologia Escolar, Luciene Tognetta refuta o argumento dos pais baseado na exposição ao bullying. Especialista na área, ela afirma que o ambiente escolar é fundamental para o desenvolvimento infantil.

— Esse é um argumento extremamente furado. Eu não consigo formar alguém para a convivência senão pela própria convivência. Esse argumento ignora uma perspectiva do desenvolvimento infantil do ser humano que é a própria oportunidade dada pelo conflito, que gera a criação de habilidades e competências de convívio e de resolução receptiva de atritos — afirma a educadora, que também é coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem) da Unesp e Unicamp. — A convivência também ensina às crianças que há diversidade de opiniões, de acordo com a maneira como as famílias são organizadas. As crianças têm necessidade de conflito com seus pares e os pais não são pares. Há valores que são cultivados e formados na família, mas há outros que são potencializados e formados na relação pública.

Tognetta destaca ainda que transferir a responsabilidade escolar para a família é tangenciar os verdadeiros problemas da educação:

— A melhor maneira de proteger um filho contra os problemas da escola é que haja formação de professores, que esses espaços onde o filho aprende a conviver sejam espaços onde existam pessoas especializadas. Do ponto de vista político, a educação domiciliar pode ser uma estratégia de não ação para aquilo que dá trabalho e exige esforço em termos de criação de políticas públicas. Tapar o sol com a peneira significa não dar à escola a responsabilidade que é dela.

De O Globo