Parlamentares de esquerda defendem bloco feminino supra-partidário em oposição a Bolsonaro
Uma mulher que atuou na Constituinte de 1988, uma feminista negra que quer honrar a memória da vereadora assassinada Marielle, a neta de um político que se destacou como vereadora e uma jovem de periferia que se formou em Harvard. Lídice da Mata (PSB-BA), Talíria Petrone (PSOL-RJ), Marília Arraes (PT-RJ) e Tábata Amaral (PDT-SP) são quatro das mulheres que vão atuar no Congresso nos próximos quatro anos e têm em comum o fato de comporem partidos que já se colocam na oposição ao governo do presidente eleito Jair Bolsonaro.
As mulheres aumentaram sua presença na Câmara dos Deputados. O número de deputadas eleitas subiu de 51, em 2014, para 77, em 2018, segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). Garantiram, assim, 15% das cadeiras da casa, ante 10% na legislatura anterior. Com isso, o Brasil passou de 159º para 132º no ranking mundial de representação feminina no período. “Contar com outras mulheres ajuda a fazer desse espaço menos solitário. Possibilita compartilhar pautas caras por nós”, afirma Talíria Petrone.
A cientista política Joyce Luz acredita na possibilidade de fortalecimento de uma oposição feminina na Câmara. Segundo ela, uma bancada temática em torno de pautas de defesa do direito das mulheres e da igualdade de gênero seria importante para agendar esses temas e aumentar o poder de convencimento junto aos parlamentares homens. “Não se pode afirmar que essas 77 mulheres abraçam a pauta feminista. Algumas já declararam que não vão carregar essas pautas”, pondera.
A deputada eleita Tábata Amaral acredita que há pautas centrais com relação ao direito das mulheres que devem ficar acima da polarização político-partidário, como a violência e a paridade salarial. “Se a gente não fizer uma coalização de mulheres supra-partidária para realmente falar de temas tão básicos, como violência, independência financeira, paridade salarial, etc, que conseguem estar acima da polarização, não vai ser possível. Não tem nenhum partido, com sua representação feminina, que conseguirá levar adiante esses temas.”
Assim como as já conhecidas “bancada da bala”, “bancada evangélica” e “bancada ruralista”, uma “bancada das mulheres” poderia resultar em eventuais vitórias. “Um dos principais discursos de Bolsonaro são justamente contra o direito da mulher, os direitos que as mulheres conquistaram na Constituição Brasileira e na sociedade”, diz a deputada Lídice da Mata, que foi uma das 26 mulheres constituintes de 1988.
Das 77 deputadas eleitas, 27 são identificadas como de oposição ao presidente eleito, segundo mapeamento da reportagem. O levantamento leva em conta a ação partidária durante as eleições, de partidos que se se posicionaram ou se coligaram contra Bolsonaro no primeiro ou no segundo turno. É o caso dos partidos: PT (10 deputadas), PSOL (5), PC do B (4), PDT (3), PSB (3), Rede (1) e PROS (1).
“A composição do futuro governo não está sendo partidária e isso compromete a construção da maioria. Se o presidente eleito continuar com essa formação deverá enfrentar grande oposição no Legislativo”, analisa Joyce. Essa indefinição pode fazer com que a oposição conte com forças que hoje ainda não têm posição definida, como o MDB e o PSDB, elevando o número de mulheres comprometidas em enfrentar Bolsonaro de 27 para 39.
Levantamento feito pelo jornal Folha de S.Paulo mostra que Bolsonaro tem uma base ainda instável no Congresso. Na Câmara, apenas três partidos integrarão oficialmente a base do futuro governo: além do PSL, DEM e PTB, que juntos têm 91 deputados. Embora fora da base, outros cinco partidos reconhecem afinidades com a agenda proposta por Bolsonaro: MDB, PSD, PRB, PSDB e Podemos.
Apesar do aumento da representatividade feminina na Câmara, o número é insuficiente para barrar a maioria em pautas do interesse das mulheres. Quando um projeto de lei vai para a votação no plenário, se pelo menos 257 dos parlamentares estiverem na casa, a maioria simples é capaz de aprovar ou rejeitar um projeto de lei ou medida provisória. Já uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), no entanto, precisa do apoio de 3/5 dos deputados, um total de 308 votos.
O PT terá na sua bancada a pernambucana Marília Arraes (PT-PE). Ela acredita que o novo governo sinaliza riscos às conquistas das mulheres, tanto em pautas como os casos previstos na legislação do aborto legal, quanto em questões mais gerais, como as questões trabalhistas, previdenciárias, educacionais, de saúde e geração de emprego e renda. Mesmo assim, segundo ela, não será fácil costurar uma aliança feminina.
“A próxima legislatura será formada por perfis diversos de mulheres. Algumas estão, na minha avaliação, equivocadamente vinculadas a um projeto que não representa, em nenhum momento, os avanços e conquistas da mulher brasileira. Mas acredito sim que haverá espaço para o diálogo com todas e para a formação de uma bancada forte”, afirma Marília.
Lídice da Mata assegura seu lugar na oposição por considerar que Bolsonaro representa “a retomada desta pauta liberal no âmbito da economia, aprofundada pela pressa de promover mais abertura para o mercado.” Como senadora, entre outras ações, Lídice assinou a PEC que ampliou o prazo de licença maternidade e paternidade, em 2015.
Bancada fragmentada
É nas pautas de cunho moral que o debate deve se intensificar, inclusive entre as mulheres. Para Marina Brito, doutora em ciência política e pesquisadora de gênero na Universidade Federal de Minas Gerais, as diferenças ideológicas e partidárias sempre foram um elemento de desarticulação na bancada feminina.
“Temas polêmicos, como o aborto, tiveram pouco espaço, já temas como a violência contra a mulher e a participação política das mulheres tinham mais adesão e maior apoio”, analisa Marina.
A cientista política também indica um movimento de renovação que qualifica como importante, “com a eleição de mulheres negras, indígenas, da periferia”, citando também os “discursos abertamente feministas”. Assim mesmo, segundo ela, o desafio de formar um bloco de oposição feminino se dará a partir de um contexto de fragmentação partidária e de divisões entre direita e esquerda, além de uma alta taxa de renovação também entre as mulheres.
“Uma bancada feminista seria composta essencialmente por mulheres de partidos reconhecidos como de esquerda, tais como PT, PSOL e PCdoB, mas mesmo no PT, algumas deputadas teriam alguma dificuldade de aderir a ela, pois tem posições políticas mais ao centro, com maiores dificuldades de encampar agendas como a da descriminalização do aborto”, analisa.
Uma das mulheres abertamente feministas eleitas para a próxima legislatura é Talíria Petrone. A favor da formação de uma frente ampla de mulheres democratas, que reúna desde representantes do PT até do PSDB, ela reconhece que é preciso também articular com segmentos progressistas “que não vão caber nesse campo amplíssimo”.
Ela cita o direito à legalização e à regulamentação do aborto como uma dessas pautas, além do enfrentamento à redução da maioridade penal. “Também tem um conjunto de pautas que são pautas que fazem parte de um campo mais progressista, que a gente entende que vai ter um reduzido número de mulheres que topem. Das 77 eleitas, a gente entende que talvez metade encampem essas pautas mais progressistas”, prevê.
Representatividade
Uma das deputadas estreantes na Câmara Federal, Talíria deverá levar ao Congresso o rosto de sua amiga, Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro assassinada em março de 2018. Talíria, que ao lado de Benedita da Silva também representa as mulheres negras no Congresso, calcula uma série de dificuldades que as mulheres terão ao longo do próximo governo. Prevê discussões tensas para os próximos anos, como a PEC 181, que deixa brecha para a condenação de mulheres que fazem aborto mesmo em casos permitidos pelo código penal. Além do projeto Escola Sem Partido, que proibiria discussões sobre gênero nas escolas.
Segundo ela, estas são algumas das pautas que indicariam retrocesso aos direitos das mulheres e que podem ser destacadas pelo próximo governo. “Tudo vai depender da disposição do conjunto de partidos do campo democrático”, pondera.
Talíria indica pautas identitárias como um dos eixos da sua atuação. Ela lembra que, nas populações que estão “à margem”, a democracia nunca chegou a funcionar plenamente, o que exige uma posição em direção às mulheres negras, lésbicas, transsexuais, ribeirinhas e trabalhadoras. Também cita o feminicídio como uma questão urgente a ser combatida.
Sexta deputada mais votada em São Paulo, Tábata Amaral deve levar à Câmara o debate sobre a violência contra a mulher. Ela avalia que o Brasil é um país machista e aposta em discussões tanto com relação à legislação quanto no âmbito educativo, esfera em que tem militado. Ela destaca que há muita desinformação circulando e que é preciso debater como levar essa discussão à sala de aula.
Tábata faz planos de atuar na Comissão de Defesa dos Direitos das Mulheres, não só em uma frente de combate à violência, para ela o primeiro passo, mas também na discussão sobre a igualdade, “tanto em oportunidades educacionais, como em igualdade salarial”. “Quando a gente fala nas diversas formas como as mulheres são presas e são rendidas pelo machismo, muitas delas começam por essa forma de violência, mas também pela dependência financeira.”
O anda rolando lá fora?
Os Estados Unidos também acabaram de passar por eleições para o legislativo e a representatividade das mulheres também aumentou. Segundo o Center for American Women and Politics, os EUA elegeu 102 mulheres para a Câmara, sendo 43 negras (ante 85 eleitas em 2016), o que representa 23% das cadeiras da casa. Para o senado foram eleitas 23 mulheres, entre elas 4 negras.
“Estamos vendo importantes avanços, especialmente na Câmara dos Representantes,” explicou o diretor Debbie Walsh em boletim. Apesar disso, segundo ele, há uma disparidade na representação entre os partidos. “Precisamos de mulheres eleitas nos dois lados”, reforçou, referindo-se aos espectros democratas e republicanos. Na Câmara, das 102 eleitas, 89 são democratas e apenas 13 republicanas.
Republicano, o presidente norte-americano Donald Trump terá a oposição de 23 mulheres no senado, já que seis democratas são remanescentes da eleição anterior. Assim como Bolsonaro, Trump tem histórico de declarações públicas machistas, como quando usou o Twitter para ofender Hillary Clinton, que um ano mais tarde disputou as eleições contra ele. “Se a Hillary Clinton não consegue satisfazer seu marido, o que a faz pensar que pode satisfazer os Estados Unidos?”, disse, em 2015.
Como no Brasil, as mulheres norte-americanas têm se articulado em marchas e movimentos contra Trump, como o Pussy Hat Project, atualmente dedicado à luta pelos direitos das mulheres por meio das artes, educação e diálogo.
Já na Irlanda, que recentemente votou referendo a favor da discriminalização do aborto, a política de cotas tem garantido a presença das mulheres no parlamento. Para a jornalista e pesquisadora de gênero Rosana Rosar, que fez mestrado em estudos feministas no país, não há consenso sobre a efetividade das cotas para reparar a baixa representação feminina na arena política, mas elas são vistas como um caminho para minimizar o desequilíbrio.
A Irlanda introduziu as cotas nas eleições gerais de 2016 e está, atualmente, em 82º lugar no ranking de ocupação feminina, na frente do Brasil, que tem lei que obriga que os partidos tenham 30% de candidatas mulheres em suas candidaturas. A ocupação na Irlanda chega a 22,2% e foi 90% superior ao último resultado, antes da implementação da política. “A introdução tardia de cotas de gênero nas eleições gerais de 2016 foi um exemplo bem-sucedido da viabilidade de um aumento rápido e significativo da representação de mulheres devido, pelo menos até agora, a uma eficiente aplicação da lei”, explica Rosana.