Lei da Censura Prévia entrou em vigor há 50 anos

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Foto: Reprodução

Houve uma época em que a população brasileira estava impedida de ter acesso a informações contrárias ao governo. Durante a ditadura militar, emissoras de TV, jornais, estações de rádio, editoras, gravadoras e quaisquer outras empresas de mídia estavam sob censura prévia constante. Esse controle sobre o que podia ou não ser publicado começou logo após o Golpe de 1964, mas culminou com o Decreto-Lei 1077, publicado em janeiro de 1970, há 50 anos.

Logo em seu artigo 1º, o texto dizia: “Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação”. Cidadãos conservadores podem pensar que aquilo não era tão mal, afinal, não seria mesmo de “bom tom” atentar contra a moral. Porém, como cabia ao governo decidir se uma notícia feria os “bons costumes”, na prática, os canais de comunicação se viram proibidos de publicar qualquer conteúdo considerado “incômodo” para o Palácio do Planato.

Se um jornal descumprisse a lei, seria multado e teria que pagar pela incineração de todos os exemplares publicados com a informação proibida. Com medo não só dessas sanções previstas, mas também de prisões e demissões arbitrárias ou perda de verba publicitária, os veículos de comunicação não podiam, por exemplo, investigar denúncias de corrupção contra o governo. Informações que pudessem levar a instabilidade econômica também eram vetadas. Este controle era exercido por censores instalados dentro das empresas ou de Brasília, para onde muitos meios de comunicação tinham que enviar previamente o que pretendiam publicar.

– O decreto de 26 de janeiro de 1970 deve ser entendido à luz de uma dimensão do regime militar que alguns historiadores chamam de utopia autoritária. Uma ideia de que seria possível controlar todas as dimensões da vida nacional. Tanto no que diz respeito ao debate público, quanto a um controle da vida privada – explica o historiador Lucas Pedretti, ex-membro da Comissão da Verdade do Rio, acrescentando que a censura fazia parte de um aparato para garantir a “segurança nacional”.

Músicos como Chico Buarque, Elis Regina, Gilberto Gil, Gal Costa e Raul Seixas se tornaram alvos constantes da censura, que também proibiu livros de autores como Rubem Fonseca, Érico Verissimo, Jorge Amado e Maria da Conceição Tavares. Entre os filmes vetados pelos militares com base na Lei 1.077, estavam “Laranja Mecânica”, “Encouraçado Potemkin”, “Macunaíma” e muitos outros.

A censura proibiu notícias até mesmo sobre uma crise na saúde. Nos anos 70, o Brasil viveu uma escalada de meningite, que afetou, principalmente, o Estado de São Paulo. Porém, o país passava pela fase do “milagre econômico”, com crescimento industrial acentuado, e os militares achavam que a divulgação de uma epidemia de meningite arruinaria a imagem do Brasil. Enquanto a doença atingia, majoritariamente, zonas rurais e periferias urbanas, poucas notícias foram aprovadas pelo governo. Em 1974, porém, o número de casos se tornou tão alto que o governo foi obrigado a baixar a barreira. Mas o estrago da falta de informação estava feito. Naquele ano, o município de São Paulo registrou incidência de 179,71 casos de meningite por cem mil habitantes (em 1970, foram apenas 2,16 por cem mil). Em 1975, houve 411 mortes causadas pela epidemia que a ditadura tentou esconder.

Foi nessa época de recrudescimento da repressão, também conhecida como “anos de chumbo”, que alguns jornais começaram a publicar receitas culinárias aleatórias. Quando uma matéria era vetada pela censura, em vez de preencher o espaço na página com outra notícia, determinados veículos publicavam receitas gastronômicas para, de uma certa forma, informar o público leitor de que naquele espaço havia uma informação considerada contrária aos interesses do governo.

A lei 1.077 não foi a primeira nem a única a instituir a censura. Mas serviu como instrumento do regime militar para formalizar o controle e a repressão aos meios de comunicação, o que já estava previsto na Constituição Federal de 1967, na Lei de Imprensa, também de 67, e no Ato Institucional n° 5, mais conhecido como o AI-5, de dezembro de 1968. Todos os textos explicitavam a intolerância do governo em relação a conteúdo contrário à moral e aos bons costumes. Cabia ao Ministério da Justiça aprovar ou não as informações.

De acordo com Lucas Pedretti, os efeitos da censura prévia para a sociedade foram perversos, impedindo a discussão de assuntos como o racismo.

– Há documentos que mostram, por exemplo, que o debate sobre preconceito racial devia ser proibido. Isto significa que ao longo de mais de duas décadas, a sociedade brasileira se viu privada de debater o racismo, que é um problema fundamental e estrutural da realidade brasileira.

Após o fim do regime militar, em 1985, traços do seu caráter autoritário ainda se faziam presentes. A Lei de Imprensa (Lei 5.250) de 9 de fevereiro de 1967, que regulava “a liberdade de manifestação do pensamento e de informação”, só foi revogada em 2009, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

Caetano Veloso e a ministra Carmen Lúcia, durante audiência no STF, em novembro de 2019Caetano Veloso e a ministra Carmen Lúcia, durante audiência no STF, em novembro de 2019 | Foto de Jorge William/Agência O GLOBO
Escorados na memória recente da censura, jornalistas e artistas estão sempre a postos para criticar qualquer movimento que possa remeter a essa página do passado. Em 4 de novembro de 2019, o STF abrigou uma audiência pública reunindo representantes do governo e personalidades como o cantor Caetano Veloso, o produtor de cinema Luiz Carlos Barreto e a atriz Dira Paes. O encontro foi motivado pelo decreto que alterou o Conselho Superior de Cinema, reduzindo a participação de profissionais do setor e membros da sociedade civil. No encontro, os artistas lembraram o cancelamento de um edital para TVs públicas com uma linha voltada a séries sobre identidade de gênero. A decisão foi tomada após o presidente Jair Bolsonaro criticar projetos de temática LGBT pré-selecionados no processo.

Bolsonaro também foi criticado por associações de jornalistas por seus ataques públicos à imprensa. Em novembro do ano passado, por exemplo, ele recomendou à população que deixe de comprar o jornal “Folha de S. Paulo”, após o diário publicar reportagens contrárias a seu governo. Ele tanbém exlcuiu o jornal de uma licitação de periódicos para o governo federal.

Segundo o jornalista Muniz Sodré, professor da UFRJ, novas formas de censura estão se apresentando. Na opinião dele, a propagação de notícias falsas no whatsapp e nas redes sociais são uma forma moderna de censura.

– É um tipo novo de censura, talvez mais perigoso do que aquela escandalosa, que mandava censor cortar notícia em jornal. Esse tipo de intervenção a gente ainda não está suficientemente preparado para enfrentar e sequer nos damos conta de que se trata é censura – afirma Muniz Sodré, para quem a divulgação de mentiras se torna especialmente perigosa quando sustentadas por grupos ou partidos políticos e acompanhadas de ataques à imprensa. – O público penaliza a censura e o próprio censor. O problema hoje é maior porque ainda não se sabe como penalizar a mentira, a disseminação de boatos.

O Globo